Dia
desses me perguntaram, em uma rede social, sobre as razões que me
levam a falar, escrever, cantar, compor, apenas coisas do Brasil. A
pergunta, feita de forma gentil, clamava no final por mais opiniões
minhas sobre o que acontece no mundão além de nossas fronteiras.
Vesti a carapuça. Sou mesmo daqueles que tem uma visão muito
precária do que acontece fora da aldeia. Tento responder.
Sou
um homem comum, filho de mãe pernambucana e pai catarinense, criado
por uma avó nascida no sertão das Alagoas, precariamente
alfabetizada, e por um avô do litoral de Pernambuco com um pouco
mais de estudo formal. Entre os meus familiares, fui o primeiro a
terminar o ensino médio e a entrar numa universidade pública.
O
Brasil em que fui criado passa longe, muito longe, de salões
empedernidos, bancos acadêmicos, bolsas de valores, altares
suntuosos, restaurantes chiques e esquinas elegantes. O Brasil dos
meus olhos de criança e das minhas saudades de adulto é o dos
campos de futebol, mercados populares, terreiros de macumba e rodas
de samba.
Faço,
do ponto de vista de minha vida profissional, exatamente o que queria
fazer quando entrei na faculdade de História – dou aulas. Apesar
de trabalhar com pesquisa, publicar livros e o escambau, meu negócio
é mesmo ser professor.
Lido
com alunos do ensino médio e do ensino superior. Prefiro os
primeiros. Divirto-me com a garotada. Lecionar me permite não usar
terno, gravata, sapato e cinto para trabalhar. Este foi, acreditem,
um aspecto que pesou na escolha do babado.
Não
tenho temperamento para ser dono de porríssima nenhuma. Fujo de
responsabilidades que impliquem em dar ordens a alguém. Canto Noel,
João do Vale, Wilson Batista, Geraldo Pereira e Pixinguinha enquanto
trabalho e vejo nisso, como no batuque, um privilégio.
Dou
aula sobre pecuária no Brasil Colonial puxando toada de boi-bumbá;
falo da abolição da escravidão cantando o samba da Mangueira de
1988 e sou – por opção e formação – tamoio, inconfidente,
conjurado, balaio, cabano, malê, farrapo, capoeira, jagunço e
quilombola.
Peço
licença ao invisível quando atravesso encruzilhadas.
Não
ficarei rico nem a cacete e tenho a decência de não almejar
fortuna. Não falta, porém, a comida na mesa e os caraminguás para
fazer, vez por outra, uma graça com a mulher amada e tomar a cerveja
gelada com os do peito. Acompanho o futebol e componho umas cirandas,
afoxés e sambas. Tenho a vida simples e digna que todos os
trabalhadores brasileiros merecem ter.
Acho
um drible de Mané Garrincha mais elegante que desfile de moda, a
feira de Caruaru mais sofisticada do que qualquer loja de grife, a
dança do mestre sala mais nobre que o plié de um bailarino
clássico e o gibão de couro de Luiz Gonzaga mais imponente que as
fardas e galardões dos generais. Sou adepto da festa e das frestas,
homem de ritos encantado pela solidão das toadas, comovido pelas
marchas dos ranchos e enfeitiçado por curimbas de todo tipo.
Insisto,
por tudo isso, em lançar sobre o Brasil uma mirada grávida de
encantamentos, crenças, sons, defesas milagrosas, gols impossíveis,
cheiros de litorais, aromas de florestas e afeto desmesurado pelo
povo miúdo que, na sabedoria da escassez, reinventa a vida e
civiliza o chão de onde vim e é a raiz melhor do que eu sou.
Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas, Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros
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