quarta-feira, 1 de maio de 2024

Limitado pela aldeia


Dia desses me perguntaram, em uma rede social, sobre as razões que me levam a falar, escrever, cantar, compor, apenas coisas do Brasil. A pergunta, feita de forma gentil, clamava no final por mais opiniões minhas sobre o que acontece no mundão além de nossas fronteiras. Vesti a carapuça. Sou mesmo daqueles que tem uma visão muito precária do que acontece fora da aldeia. Tento responder.
Sou um homem comum, filho de mãe pernambucana e pai catarinense, criado por uma avó nascida no sertão das Alagoas, precariamente alfabetizada, e por um avô do litoral de Pernambuco com um pouco mais de estudo formal. Entre os meus familiares, fui o primeiro a terminar o ensino médio e a entrar numa universidade pública.
O Brasil em que fui criado passa longe, muito longe, de salões empedernidos, bancos acadêmicos, bolsas de valores, altares suntuosos, restaurantes chiques e esquinas elegantes. O Brasil dos meus olhos de criança e das minhas saudades de adulto é o dos campos de futebol, mercados populares, terreiros de macumba e rodas de samba.
Faço, do ponto de vista de minha vida profissional, exatamente o que queria fazer quando entrei na faculdade de História – dou aulas. Apesar de trabalhar com pesquisa, publicar livros e o escambau, meu negócio é mesmo ser professor.
Lido com alunos do ensino médio e do ensino superior. Prefiro os primeiros. Divirto-me com a garotada. Lecionar me permite não usar terno, gravata, sapato e cinto para trabalhar. Este foi, acreditem, um aspecto que pesou na escolha do babado.
Não tenho temperamento para ser dono de porríssima nenhuma. Fujo de responsabilidades que impliquem em dar ordens a alguém. Canto Noel, João do Vale, Wilson Batista, Geraldo Pereira e Pixinguinha enquanto trabalho e vejo nisso, como no batuque, um privilégio.
Dou aula sobre pecuária no Brasil Colonial puxando toada de boi-bumbá; falo da abolição da escravidão cantando o samba da Mangueira de 1988 e sou – por opção e formação – tamoio, inconfidente, conjurado, balaio, cabano, malê, farrapo, capoeira, jagunço e quilombola.
Peço licença ao invisível quando atravesso encruzilhadas.
Não ficarei rico nem a cacete e tenho a decência de não almejar fortuna. Não falta, porém, a comida na mesa e os caraminguás para fazer, vez por outra, uma graça com a mulher amada e tomar a cerveja gelada com os do peito. Acompanho o futebol e componho umas cirandas, afoxés e sambas. Tenho a vida simples e digna que todos os trabalhadores brasileiros merecem ter.
Acho um drible de Mané Garrincha mais elegante que desfile de moda, a feira de Caruaru mais sofisticada do que qualquer loja de grife, a dança do mestre sala mais nobre que o plié de um bailarino clássico e o gibão de couro de Luiz Gonzaga mais imponente que as fardas e galardões dos generais. Sou adepto da festa e das frestas, homem de ritos encantado pela solidão das toadas, comovido pelas marchas dos ranchos e enfeitiçado por curimbas de todo tipo.
Insisto, por tudo isso, em lançar sobre o Brasil uma mirada grávida de encantamentos, crenças, sons, defesas milagrosas, gols impossíveis, cheiros de litorais, aromas de florestas e afeto desmesurado pelo povo miúdo que, na sabedoria da escassez, reinventa a vida e civiliza o chão de onde vim e é a raiz melhor do que eu sou.

Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas, Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros

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