No
momento em que lhes escrevo, me encontro num estado emocional e
psicológico deplorável, quiçá calamitoso. Sei que vocês (nem o
governo, aleluia!) não têm nada com isso e minha revelação
equivale mais ou menos à que, por exemplo, faria um ator de quinta
categoria ou em surto psicótico, explicando à platéia, antes do
espetáculo, que sua performance, naquele dia, será inferior à do
elenco de um circo falido homiziado num arraial de Cabrobó. As vaias
que recebesse seriam mais que merecidas e acredito que também farei
jus a vaias (linchamento eu acho um pouco de exagero, embora, na
conjuntura em que vivemos, até compreensível, todos andam muito
tensos) e penso seriamente em não botar os pés fora de casa neste
domingo, nem que seja no interesse de preservar minha mãe de
referências desairosas, pela desdita de ter parido um filho como eu.
Estou
escrevendo num laptop mesozoico, movido a corda, com uma fonte de
energia adicional acionada a querosene e já sob a proteção do
Estatuto do Idoso. Tive um pouco de dificuldade em arrumar querosene,
mas descolei dois litros numa loja que vendia geladeiras fabricadas
no início do século passado. E, ecologicamente consciente quanto ao
uso de combustíveis produtores de poluição, também mandei montar
um filtro para conter as emanações nocivas exaladas do meu
instrumento de trabalho. Havia até escolhido um assunto para ocupar
este espaço que hoje envergonhadamente avacalho, mas não consigo
abordá-lo, porque, refletindo melhor (sic), devo estar também em
surto e não tenho condição de falar sobre coisa nenhuma que não
minha patética situação.
Os
poucos heróis que persistem em ler-me há anos devem lembrar-se de
minhas queixas quanto a computadores. De fato, todo mundo sabe que
esses aparelhos frequentemente se entregam a comportamentos
exasperantes e que é prudente não ter martelos, marretas ou
machados à mão, quando se usa um deles. Mas, na minha profissão,
como agora em quase todas, com a possível exceção da de gari, não
dá para escapar. E, na verdade, sempre exagerei um pouco, para
ironizar os — perdão — computadólatras. Fui dos primeiros
escritores brasileiros a usar computador para escrever e posso mesmo
dizer que, não por inteligência ou aptidão, mas porque minha
burrice alcança o grau dois numa escala que vai crescentemente a
dez, a experiência acabou me conferindo uma certa habilidade em seu
manejo.
Há
algum tempo, meu computador principal funcionava bem, embora
obsoleto, o que não quer dizer muito em informática, porque
qualquer um deles já é obsoleto ao ser retirado da caixa da
embalagem. Quebrava meu galho satisfatoriamente, tanto assim que
passei longo tempo sem xingá-lo, nem privadamente nem em público, e
somente uma vez quis jogá-lo pela janela, não o tendo feito por
receio de machucar ou matar algum passante. Mas, recentemente, ele
passou a insistir em apresentar umas falhazinhas levemente
aporrinhantes e aí dei o mau passo: resolvi encomendar um novo e
atravessei o Rubicão, só que, ao contrário de Júlio César (o
imperador, não o jogador, apesar de mais famoso), comecei a tomar
uma sova que estou tomando até agora e tudo indica que devo
continuar tomando por ainda não sei quanto tempo, quem sabe o resto
da vida.
Ele
veio com tudo em cima, últimas novidades, dos programas aos
componentes. Celebrei sua chegada e, em processo que redundou em
humilhação, cometi a imprudência de gabar-me exuberantemente aos
amigos. “Agora estou com um Rolls-Royce” era o mínimo que eu
dizia, sem saber que o que tinha caído nas minhas mãos equivalia a
um Rolex de cinqüenta reais, em camelô que não dá desconto. Desde
o dia em que ele foi entregue, minha ocupação mudou. Deixei de ser
escritor, o que, se pode representar um alívio para a literatura
nacional, acarreta a desvantagem de eu não poder mais ganhar a vida
e cogitar em pleitear uma vaga na Casa dos Artistas, com base na
minha experiência pregressa de cantor de banheiro. Entre muitos
outros cretinismos que me afligem, está o cronográfico, de maneira
que não sei há quanto tempo dedico uma média de pelo menos dez
horas diárias a tentar fazer o diabólico aparelho funcionar, mas
deve ser coisa de pelo menos um mês. E com a agravante de que não
fomos feitos um para o outro: ele é sádico e eu não sou
masoquista. Tentei discutir o relacionamento, mas, como sabemos, isso
não dá certo, pois algumas incompatibilidades não podem mesmo ser
superadas. Volta e meia me vem a tentação de presenteá-lo a algum
desafeto, mas me contenho a tempo, porque ninguém merece vingança
tão cruel.
Não
farei, Deus me guarde, seus olhos de penico e não vou pormenorizar o
que tenho enfrentado, mas o sofrimento já me deve ter rendido alguns
séculos, talvez milênios, de redução de estada no Purgatório.
Consolo parco agora, mas deverei mudar de opinião assim que
transpuser a catraca a que se refere meu amigo Toinho Sabacu, de quem
lhes falei na semana passada. Todo dia ouço de alguém que isso vai
passar e tudo será resolvido. Sim, com certeza, eis que tudo passa
neste mundo, mas acho que eu passo antes. O último diagnóstico
técnico que obtive foi que se trata de interferências
sobrenaturais. Altamente científico, mas, como não disponho de
ninguém do ramo, aceito indicações de rezadeiras, exorcistas,
pais-de-santo e similares. Aceito também (vejam como é a vida,
nunca pensei que usaria estas palavras) correntes de energia positiva
das almas caridosas que se apiedarem. O que não impede a internação
numa clínica psiquiátrica que já ocorre a meu alarmado médico,
e/ou a aposentadoria definitiva. Ou mesmo adeus, mundo cruel.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
Nenhum comentário:
Postar um comentário