terça-feira, 7 de maio de 2024

Do Amor e Outros Demônios (excerto)


[...]
Bernarda já assumira com mão firme o comando da casa, enquanto o marquês vegetava no pomar. Sua primeira preocupação foi restabelecer a fortuna distribuída pelo marido, com base nas procurações do primeiro marquês. Este, em seu tempo, obtivera licenças para vender cinco mil escravos em oito anos, com o compromisso de importar ao mesmo tempo dois barris de farinha por cada um. Graças a suas artimanhas de mestre e à venalidade dos aduaneiros, vendeu a farinha combinada, mas também vendeu de contrabando três mil escravos a mais, o que o converteu no traficante individual mais afortunado do século.
Foi Bernarda quem descobriu que o bom negocio não eram os escravos, e sim a farinha, embora o grande negócio, na realidade, fosse o seu inacreditável poder de persuasão. Com uma só licença para importar mil escravos em quatro anos e três barris de farinha por um escravo, deu a tacada de sua vida: vendeu os mil negros acertados, mas em vez de três mil barris de farinha importou doze mil. O maior contrabando do século.
Ela passava então a metade do tempo no trapiche de Mahates, onde estabeleceu o núcleo dos seus negócios nas proximidades do rio Grande de la Magdalena para o tráfico de tudo com o interior do vice-reinado, Chegavam à casa do marquês notícias esparsas dessa prosperidade, da qual ela não prestava contas a ninguém, Durante o tempo que passava ali, mesmo antes das crises, ela parecia outro mastim enjaulado. Dominga de Adviento disse melhor: "Ficava de rabo aceso".
Sierva María ocupou pela primeira vez um lugar estável na casa quando sua escrava morreu. Arrumaram para ela o quarto esplêndido onde viveu a primeira marquesa. Nomearam um preceptor que lhe deu aulas de espanhol peninsular e noções de aritmética e ciências naturais e tentou ensiná-la a ler e escrever, sem sucesso, porque ela dizia não entender as letras. Uma professora laica a iniciou na apreciação da música. A menina demonstrou interesse e bom gosto, mas não teve paciência para aprender nenhum instrumento. A professora desistiu, desapontada, e disse ao despedir-se do marquês: — Não é que a menina seja negação para tudo, o que há é que ela não é deste mundo.
Bernarda quisera aplacar os seus rancores, mas logo ficou evidente que a culpa não era nem de uma de outra, mas da natureza de ambas. Vivia em pânico desde que acreditou descobrir na filha certa condição fantasmal. Tremia só de pensar no instante em que olhava para trás e dava com os olhos inescrutáveis, da criança lânguida com seus tules vaporosos e a cabeleira silvestre que já lhe batia pelos joelhos.
Menina! — gritava. — Estás proibida de me olhar assim.
Quando estava mais concentrada em seus negócios, sentia na nuca o hálito sibilante de cobra pronta para o bote e dava um pulo de susto.
Menina! — gritava. — Faz barulho antes de entrar.
Ela lhe aumentava o medo com um chorrilho de frases em língua ioruba.
De noite era pior, porque Bernarda acordava com a sensação de que alguém a havia tocado: era a menina no pé da cama olhando-a dormir.
Foi inútil a tentativa da campainha no pulso, porque o pé-ante-pé de Sierva María a impedia de soar. "A única coisa que essa guria tem de branco é a cor", dizia a mãe. Tanto era assim que alternava seu nome com outro nome africano que tinha inventado: María Mandinga.
A relação deu em crise numa madrugada em que Bernarda acordou morta de sede por causa dos excessos do cacau e achou uma boneca de Sierva Maria flutuando dentro da tina. Não lhe pareceu uma simples boneca boiando na água, mas algo pavoroso: uma boneca morta.
Convencida de que era um feitiço africano de Sierva Maria contra ela, decidiu que na casa não havia lugar para as duas. O marquês aventurou uma mediação tímida e Bernarda cortou em seco: “Ou ela ou eu”. Acabou Sierva María voltando para o galpão das escravas, mesmo quando a mãe estava no trapiche. Continuava sendo tão hermética como ao nascer, e analfabeta total.
Mas Bernarda não andava bem. Procurara reter Judas Iscariote igualando-se a ele, e em menos de dois anos perdeu o rumo dos negócios e da própria vida. Fantasiava-o de pirata núbio, de ás de copas, de rei Melchior, e o levava aos subúrbios, sobre o quando aportavam os galeões e a cidade se entregava a uma farra de meio ano.
Improvisavam-se tabernas e bordéis extramuros para os comerciantes que vinham de Uma, de Portobelo, de Havana, de Veracruz, na disputa dos gêneros e mercadorias de todo o mundo descoberto. Certa noite, morto de bebedeira numa cantina de remadores de galé, Judas se aproximou de Bernarda muito misterioso.
Abre a boca e fecha os olhos — disse.
Ela abriu, e ele lhe enfiou na língua uma barra de chocolate mágico de Oaxaca. Bernarda percebeu e cuspiu, pois desde criança tinha uma aversão especial pelo cacau. Judas a convenceu de que era uma substância sagrada que alegrava a vida, aumentava a força física, levantava o ânimo e fortalecia o sexo.
Bernarda deu uma risada explosiva: — Se fosse assim, as freirinhas de Santa Clara seriam touros de lida.
Já estava presa ao mel fermentado que consumia com suas colegas de escola desde antes do casamento e continuou a consumi-lo não só pela boca como pelos cinco sentidos no ar quente do trapiche.
Aprendeu com Judas a mastigar fumo e folhas de coca misturadas com cinza de imbaúba, como os índios da Serra Nevada. Experimentou nas tabernas a maconha da índia, a trementina de Chipre, o peyote do Real de Catorce, e pelo menos uma vez o ópio chinês trazido por traficantes filipinos. Entretanto, não foi surda à propaganda de judas em favor do cacau. De volta de todos os demais, reconheceu-lhe as virtudes e o preferiu a qualquer outro. Judas deu para ladrão, proxeneta, sodomita ocasional, tudo por vício, pois nada lhe faltava.
Numa noite infeliz, diante de Bernarda, enfrentou de mãos nuas três galeotes da frota, numa briga de jogo de cartas, e o mataram a cadeiradas.
Bernarda se refugiou no trapiche. A casa ficou à matroca e se não naufragou logo foi graças à sabedoria de Dominga de Adviento, que acabou de formar Sierva María como queriam os seus deuses. O marquês soube por alto da derrocada da esposa. Chegaram do trapiche rumores segundo os quais ela vivia em estado de delírio, falava sozinha, escolhia os escravos mais bem-dotados para partilhá-los em suas noites romanas com as antigas colegas de escola. A fortuna vinda pela água, pela água foi embora, e ela ficou à mercê dos frascos de mel e dos pacotes de cacau que mantinha escondidos aqui e ali, para não perder tempo quando as ânsias a acossavam. A única coisa segura que lhe restava eram suas bilhas atulhadas de dobrões de ouro puro, que em tempos de vacas gordas havia enterrado debaixo da cama. Era tamanha a sua decadência que o marido não a reconheceu quando voltou de Mahates pela última vez, ao cabo de três anos contínuos, pouco antes de Sierva María ser mordida pelo cachorro.
Em meados de março, os perigos da raiva pareciam conjurados. O marquês, contente com sua sorte, propôs-se corrigir o passado e conquistar o coração da filha com a receita de felicidade aconselhada por Abrenuncio. A isso dedicou todo o seu tempo. Tratou de aprender a penteá-la e fazer a trança. Tratou de ensiná-la a ser branca de lei, a restaurar para ela seus sonhos fracassados de nobre nativo, de tirar-lhe o gosto pela iguana em escabeche e pelo ensopado de tatu. Tentou quase tudo, menos indagar de si mesmo se aquele era o modo certo de fazê-la feliz.
Abrenuncio continuou visitando a casa. Não era fácil entender-se com o marquês, mas interessava-lhe a inconsciência dele num subúrbio do mundo intimidado pelo Santo Ofício. Assim passavam os meses do calor, ele falando sem ser ouvido debaixo das laranjeiras em flor, e o marquês apodrecendo na rede a mil e trezentas léguas marítimas de um rei que nunca ouvira falar nele. Numa dessas visitas, foram interrompidos por um lamento lúgubre de Bernarda.
Abrenuncio se alarmou. O marquês fez-se de surdo, mas o queixume seguinte foi tão dilacerante que não era possível ignorá-lo.
Alguém está precisando de um responso disse Abrenuncio.
É minha esposa em segundas núpcias — disse o marquês.
Pois está com o fígado em pandarecos — disse Abrenuncio.
Como sabe? — Porque está gemendo com a boca aberta — disse o médico.
Empurrou a porta sem pedir licença e na penumbra do quarto procurou ver Bernarda, que não estava na cama. Chamou-a pelo nome e ela não respondeu. Então abriu a janela, e a luz metálica das quatro mostrou-a no chão, em carne viva, nua e aberta em cruz, cercada pelo fulgor de suas flatulências letais. Sua pele tinha a cor mortiça da atrabile rejeitada. Ergueu a cabeça, ofuscada pelo resplendor da janela aberta de repente, e não reconheceu o médico à contraluz.
Bastou a este um olhar para ver o destino dela.
É o canto da coruja, minha filha.
Explicou que ainda era tempo de salvá-la, desde que se submetesse a uma cura urgente de purificação do sangue. Bernarda o reconheceu, refez-se como pôde e se desmandou em impropérios. Abrenuncio os suportou impassível enquanto tornava a fechar a janela. já de saída, parou junto à rede do marquês e precisou o prognóstico: — A senhora marquesa morrerá o mais tardar no dia 15 de setembro, se antes não se pendurar numa viga.
Sem se alterar, o marquês disse: — O ruim é que o dia 15 de setembro ainda está longe.
Prosseguia com o tratamento de felicidade a Sierva María. Do morro de São Lázaro, viam para o lado do oriente os pântanos fatais, e para o do ocidente o enorme sol vermelho que afundava no oceano em chamas.
Ela lhe perguntou o que havia do outro lado do mar e ele respondeu: "O mundo". Para cada gesto dele, a menina encontrou uma ressonância inesperada. Uma tarde, viram aparecer no horizonte, com as velas enfunadas, a Frota de Galeões.
A cidade se transformou. Pai e filha se divertiram com os títeres, os engolidores de fogo, as incontáveis novidades da feira que chegaram ao porto naquele abril de bons presságios. Sierva María aprendeu mais coisas sobre brancos em dois meses do que nunca dantes. Buscando fazê-la, outra, também o marquês ficou diferente, e de um modo tão radical que não pareceu uma mudança de caráter, e sim uma troca de natureza.
A casa se encheu de quantas dançarinas de corda, caixas de música e relógios mecânicos se viam nas feiras da Europa. O marquês espanou a tiorba italiana. Encordoou-a, afinou-a com uma perseverança que só o amor era capaz de explicar, e tomou a se acompanhar nas canções de antigamente cantadas com a boa voz e o mau ouvido que nem os anos nem as turvas recordações tinham alterado. Ela lhe perguntou num daqueles dias se era verdade, como diziam as canções, que o amor tudo podia.
É verdade — respondeu ele —, mas será melhor não acreditares.
Feliz com as boas notícias, o marquês começou a pensar numa viagem a Sevilha, para que Sierva María se restabelecesse dos seus pesares ocultos e terminasse seu aprendizado do mundo. As datas e o itinerário já estavam acertados, quando Caridad del Cobre o acordou da sesta com a notícia brutal: — Senhor, a coitada da minha menina está virando cachorro.
Chamado com urgência, Abrenuncio desmentiu a superstição popular de que os raivosos acabavam iguais aos bichos que os tinham mordido.
Verificou que a menina estava com um pouco de febre, e embora se considerasse a febre uma doença em si mesma e não um sintoma de outros males, não a subestimou. Advertiu ao atribulado senhor que a criança não estava a salvo de qualquer mal, pois a mordida de um cão, com ou sem raiva, não preservava contra nada. Como sempre, o único jeito era esperar. O marquês perguntou: — É a última coisa que me diz? — A ciência não me deu meios para lhe dizer mais nada — replicou o médico no mesmo tom ácido. — Mas se não acredita em mim, ainda lhe resta um recurso: confie em Deus.
O marquês não entendeu.
Eu juraria que o senhor era incrédulo — disse.
O médico se virou sem sequer fitá-lo.
Quisera eu, senhor.
O marquês não se confiou a Deus, mas a tudo o que lhe desse alguma esperança. Na cidade havia outros três médicos formados, seis boticários, onze barbeiros sangradores e um sem-número de curandeiros e mestres em feitiçaria, embora nos últimos cinquenta anos a Inquisição tivesse condenado mil e trezentos a diferentes penas e queimado sete na fogueira. Um jovem médico de Salamanca abriu a ferida fechada de Sierva María e pôs-lhe umas cataplasmas cáusticas para extrair os humores rançosos. Outro tentou a mesma coisa com sanguessugas nas costas. Um barbeiro sangrador lavou a ferida com a urina dela própria e outro a fez bebê-la. Ao fim de duas semanas ela havia suportado dois banhos de ervas e duas lavagens emolientes por dia, e levaram-na à beira da agonia com cozimentos de antimônio natural e outros filtros mortais.
A febre cedeu, mas ninguém ousou proclamar que a raiva estivesse conjurada. Sierva María sentia-se morrer. A princípio resistia com o orgulho intacto, mas após duas semanas sem nenhum resultado tinha uma úlcera de fogo no tornozelo, a pele escaldada por sinapismos e vesicatórios, e o estômago em carne viva. Passara por tudo: vertigens, convulsões, espasmos, delírios, solturas de ventre e de bexiga, e se retorcia no chão uivando de dor e de fúria. Até os curandeiros mais afoitos a abandonaram à própria sorte, convencidos de que estava louca ou possuída pelos demônios. O marquês já tinha perdido todas as esperanças, quando apareceu Sagunta com a receita de Santo Huberto.
Foi o final. Sagunta se desfez de seus lençóis e se besuntou com unguentos de índios para esfregar seu corpo no da menina nua. Esta resistiu de pés e mãos apesar de sua fraqueza extrema, e Sagunta a submeteu à força. Bernarda ouviu de seu quarto a gritaria demente.
Correu para ver o que acontecia e encontrou Sierva María esperneando no chão, e Sagunta em cima dela, envolvida na maré de cobre da cabeleira e ululando a oração de Santo Huberto. Chicoteou ambas com as cordas da rede. Primeiro no chão, as duas encolhidas pela surpresa, e depois perseguindo-as pelos cantos até que lhe faltou fôlego.
O bispo da diocese, dom Toribio, de Cáceres y Virtudes, alarmado com o escândalo público dos vexames e desvarios de Sierva María, mandou ao marquês um chamado sem precisar razões, data ou hora, o que foi interpretado como indício de suma urgência. O marquês superou a dúvida e apareceu no mesmo dia, sem se anunciar.
[…]

Gabriel García Márquez, in Do Amor e Outros Demônios

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