Quando,
entre os marinheiros, correu a notícia de que Zaratustra se achava a
bordo — pois um homem das ilhas bem-aventuradas havia subido
juntamente com ele —, houve grande curiosidade e expectativa. Mas
Zaratustra silenciou por três dias e estava frio e surdo de
tristeza, de modo que não respondeu nem a olhares nem a perguntas.
Na tarde do segundo dia, porém, abriu novamente os ouvidos, embora
ainda se mantivesse calado: pois havia muita coisa estranha e
perigosa a ouvir naquele barco, que vinha de longe e navegava para
mais longe ainda. Zaratustra era um amigo de todos os que fazem
longas viagens e não querem viver sem perigo. E olha! Enfim sua
própria língua se soltou, à força de escutar, e o gelo de seu
coração se rompeu: — então ele se pôs a falar assim:
A
vós, ousados tenteadores, tentadores,99 e quem se haja uma vez
lançado com velas astutas em mares terríveis, —
A
vós, ébrios de enigmas, amantes do crepúsculo, cuja alma é
atraída com flautas a todo abismo traiçoeiro:
— pois
não quereis sentir e seguir um fio com mão covarde; e, onde podeis
adivinhar, detestais deduzir —
Apenas
a vós relato o enigma que vi — a visão do mais solitário.
—
Recentemente
caminhava eu, sombrio, por um crepúsculo pálido como um cadáver —
sombrio e rijo, com lábios cerrados. Não apenas um sol havia
declinado para mim.
Uma
trilha que subia teimosamente entre os seixos, maldosa, solitária,
não mais animada por ervas e arbustos: uma trilha de montanha
rangendo sob a teimosia de meus pés.
Mudos,
andando sobre o zombeteiro chiar do cascalho, pisando os pedregulhos
que os faziam deslizar: assim meus pés forçavam o caminho para o
alto.
Para
o alto: — não obstante o espírito que os puxava para baixo, para
o abismo, o espírito de gravidade, meu demônio e arqui-inimigo.
Para
o alto: — embora ele estivesse em minhas costas, meio anão, meio
toupeira; aleijado; aleijador; pingando chumbo em meu ouvido,
pensamentos-gotas de chumbo em meu cérebro.100
“Ó
Zaratustra”, cochichou zombeteiramente, sílaba por sílaba, “ó
pedra da sabedoria! Tu te arremessaste para cima, mas toda pedra
arremessada tem de — cair!
Ó
Zaratustra, pedra da sabedoria, pedra da funda, destruidor de
estrelas! Arremessaste a ti mesmo tão alto — mas toda pedra
arremessada — tem de cair!
Condenado
a ti mesmo e a teu próprio apedrejamento: ó Zaratustra,
arremessaste longe a pedra — mas sobre ti ela cairá!”
Então
calou-se o anão; e isso durou muito. Mas seu silêncio me oprimia; e
estar assim a dois é, em verdade, mais solitário do que estar a um!
Eu
subia, subia, sonhava, pensava — mas tudo me oprimia. Eu semelhava
um doente ao qual seu triste martírio torna cansado e que é
despertado, ao adormecer, por um sonho ainda pior. —
Mas
existe algo, em mim, que chamo de coragem: até agora, sempre matou
em mim todo desânimo. Por fim, essa coragem me mandou parar e falar:
“Anão! Ou tu, ou eu!” —
É
que a coragem é o melhor matador — coragem que ataca: pois
em todo ataque há fanfarra.
O
homem, porém, é o animal mais corajoso: assim superou qualquer
animal. Com fanfarra superou também qualquer dor; mas a dor humana é
a dor mais profunda.
A
coragem também mata a vertigem ante os abismos: e onde o ser humano
não estaria diante de abismos? O próprio ver não é — ver
abismos?
A
coragem é o melhor matador: coragem também mata a compaixão. Mas
compaixão é o abismo mais profundo: quanto mais fundo olha o homem
no viver, tanto mais fundo olha também no sofrer.
Mas
coragem é o melhor matador, coragem que ataca: ela mata até mesmo a
morte, pois diz: “Isso era vida? Muito bem! Mais uma vez!”.
Mas
há muita fanfarra num dito como esse. Quem tem ouvidos, que ouça. —
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra
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