quarta-feira, 22 de maio de 2024

Cartas


[Para Jon e Louise Webb]
25 de março de 1961

[…] O que me incomoda é quando leio sobre os velhos grupos de Paris, ou alguém que conhecia alguém nos velhos tempos. Eles faziam na época também, os nomes antigos e agora. Acho que Hemingway está escrevendo um livro a respeito agora. Apesar de tudo, porém, não consigo cair nessa. Não suporto escritores ou editores ou qualquer um que queira falar de Arte. Por 3 anos morei num hotel de um beco imundo – antes da minha hemorragia – e ficava bêbado todas as noites com um ex-presidiário, a arrumadeira do hotel, um indiano, uma moça que parecia usar uma peruca mas não usava e 3 ou 4 andarilhos. Ninguém sabia diferenciar Shostakovich de Shelley Winters e nós pouco nos lixávamos. A coisa mais importante era encarregar alguém de sair correndo em busca de birita quando ficávamos sem. Começávamos pelo fim da fila, com o nosso pior corredor, e se ele falhasse – você precisa entender, na maior parte do tempo havia pouco ou nenhum dinheiro – nós íamos um tantinho mais fundo, com o sujeito que era um pouco menos pior. Acho que é bazófia, mas eu era cavalo campeão. E quando o último entrava cambaleando pela porta, pálido e envergonhado, Bukowski se levantava com uma invectiva, vestia seu manto andrajoso e mergulhava com raiva e confiança noite adentro, rumo à Dick’s Liquor Store, e eu dava um golpe no cara e o forçava e espremia até que ele ficava tonto; eu entrava com imensa raiva, sem mendicância, e pedia o que queria. Dick nunca sabia se eu tinha algum dinheiro ou não. Às vezes eu o enganava e tinha dinheiro. Mas na maior parte das vezes eu não tinha. Mas de qualquer maneira ele estalava as garrafas na minha frente, botava elas num saco, e aí eu as pegava com um raivoso “Coloca na minha conta!”.
E aí ele começava com a velha dança – mas, jesus, cê já me deve tanto e tanto, e você não fez nenhum pagamento em um mês e…
E aí vinha o ATO DE ARTE. Eu já tinha as garrafas na minha mão. Não seria nada sair caminhando. Mas eu as estalava de novo no balcão diante dele, arrancando-as do saco e empurrando-as na direção dele, dizendo “Toma, você quer essas coisas! Vou fazer meu maldito negócio em outro lugar!”.
Não, não”, ele dizia, “leve-as. Não tem problema.”
E aí ele tirava aquele triste papelzinho e adicionava o valor ao total.
Deixa eu ver isso”, eu exigia.
E aí eu falava: “Pelo amor de Deus! Eu não lhe devo tanto assim! Que item é esse aqui?”.
Tudo isso era para fazê-lo acreditar que eu lhe pagaria um dia. E aí ele tentava me passar a perna de volta: “Você é um cavalheiro. Não é como os outros. Eu confio em você”.
Por fim ele adoeceu e vendeu sua loja, e quando veio o seguinte eu abri uma conta nova…
E o que aconteceu? Às oito horas num domingo de manhã – OITO HORAS!!!, que droga – houve uma batida na porta –, e eu abri e eis ali um editor. “Ah, eu sou tal e tal, editor de tal e tal, recebemos o seu conto e o consideramos muitíssimo inusitado; vamos usá-lo na nossa edição de primavera.” “Bem, entre”, tive de dizer, “mas não tropece nas garrafas.” E aí eu fiquei sentado enquanto ele me falava sobre sua esposa que o tinha em alta estima e sobre seu conto que certa vez havia sido publicado em The Atlantic Monthly, e você sabe como eles vão falando. Por fim ele foi embora, e mais ou menos um mês depois o telefone da recepção tocou e alguém queria falar com Bukowski, e dessa vez era uma voz de mulher, “Sr. Bukowski, nós achamos que o senhor tem um conto muito inusitado e o grupo estava discutindo-o numa noite dessas, mas achamos que ele tem uma fraqueza e achamos que o senhor poderia querer corrigir a fraqueza. Era isto: POR QUE O PERSONAGEM PRINCIPAL COMEÇOU A BEBER ANTES DE MAIS NADA?”.
Eu falei “Esqueça o negócio todo e mande o conto de volta” e desliguei.
Quando voltei, o indiano levantou o rosto por cima de seu drinque e perguntou: “Quem era?”.
Falei “Ninguém”, a resposta mais precisa que eu podia dar.

Charles Bukowski, in Sobre bêbados e bebidas

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