segunda-feira, 1 de abril de 2024

Santiago


Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia e ia sempre ajudá-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.
O velho pescador era magro e seco, e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas. As manchas escuras que os raios do sol produzem sempre, nos mares tropicais, enchiam-lhe o rosto, estendendo-se ao longo dos braços, e suas mãos estavam cobertas de cicatrizes fundas, causadas pela fricção das linhas ásperas enganchadas em pesados e enormes peixes. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente.
Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis.
Santiago — disse-lhe o garoto quando desciam do banco de areia para onde o barco fora puxado —, eu gostaria de tornar a sair com você. Tenho ganhado algum dinheiro.
O velho ensinara o garoto a pescar e por isso ele o adorava.
Não — respondeu-lhe o velho. — Você está num barco de sorte. Fique com eles.
Mas lembre-se daquela vez em que passamos mais de oitenta dias sem apanhar coisa alguma e depois pescamos dos grandes, todos os dias, durante três semanas.
Lembro-me muito bem — tornou o velho. — E sei que no período de má sorte você não me abandonou nem duvidou de mim.
Foi papai quem me fez mudar de barco. Ainda sou um garoto e tenho de obedecer a ele.
Eu sei — concordou o velho. — É natural.
Papai não tem muita fé.
Não — tornou a concordar o velho. — Mas nós temos, não é verdade?
Sim — afirmou o garoto. — Deixe-me oferecer a você uma cerveja na Esplanada, depois levamos estas coisas para casa. Aceita?
Por que não? — respondeu o velho. — Entre pescadores…
Sentaram-se na Esplanada e alguns pescadores começaram a fazer troça do velho, mas ele não se zangou. Outros, os de mais idade, olharam para ele e sentiram-se tristes. Mas não o demonstraram e continuaram conversando, sem lhe dar importância, sobre as correntes e as profundidades a que tinham descido as suas linhas, sobre o bom tempo e as coisas que tinham visto ou feito durante o dia. Os pescadores que nesse dia haviam sido bem-sucedidos tinham chegado e limpado os espadartes, levando-os estendidos ao comprido sobre duas tábuas — dois homens sustentavam a ponta de cada tábua — para o armazém de peixes, onde ficavam à espera de que o transporte frigorífico os levasse para o mercado em Havana. Aqueles que tinham apanhado tubarões carregavam-nos para a fábrica do outro lado da baía, onde eram içados e limpos, os fígados extraídos, as barbatanas cortadas, as peles raspadas e a carne cortada em tiras para salgar.
Quando o vento soprava do nascente, a baía era invadida pelo cheiro que vinha da fábrica; hoje, porém, mal se notava o cheiro, pois o vento soprara para o norte e depois amainara rapidamente. Por esse motivo, a Esplanada estava muito agradável e batida de sol.
Santiago — começou o garoto.
Que é? — perguntou o velho. Tinha o copo na mão e pensava nas suas aventuras de muitos anos atrás.
Posso sair com o barco para apanhar sardinhas para você amanhã?
Não, vá jogar beisebol. Eu ainda sei remar e o Rogério pode atirar as redes.
Mas eu gostaria de ir. Já que não posso ir pescar com você, queria ajudar de algum jeito.
Você me pagou uma cerveja — replicou o velho. — Agora já é um homem.
Que idade eu tinha quando você me levou no barco pela primeira vez?
Cinco anos e você por pouco não morreu porque icei o peixe antes da hora e ele ia dando cabo do barco. Lembra-se?
Lembro-me da cauda do peixe que batia e sacudia o barco todo, da travessa que rangia quase estalando e do ruído das pancadas que você dava nele com o martelo. Lembro também que você me atirou para a proa, onde estavam os rolos molhados de linha, e não posso me esquecer do barco estremecendo e das suas marteladas… até parecia que você estava pondo uma árvore abaixo… e de todo aquele sangue doce me salpicando.
Lembra mesmo tudo isso ou fui eu que lhe contei depois?
Lembro tudo desde que saímos juntos pela primeira vez.
O velho examinou-o com os seus olhos queimados pelo sol, muito carinhosos e confiantes.
Se você fosse meu filho, eu o levaria comigo e desafiaria a má sorte — disse ele. — Mas você tem seu pai e sua mãe e está num barco de sorte.
Posso ir apanhar as sardinhas? Sei de um lugar onde é fácil encontrar isca.
Ainda me restam algumas de hoje. Ponho-as numa caixa com sal e servem para amanhã.
Deixe eu ir arranjar isca fresca.
Uma só — disse o velho. As suas esperanças e confiança nunca o tinham abandonado, mas agora estavam arrefecendo como a brisa quando se levanta no ar.
Duas — devolveu o garoto.
Duas — concordou o velho. — Não vai roubá-las, não é?
Roubaria se fosse preciso — respondeu o garoto. — Mas não é.
Obrigado — disse o velho pescador. Era demasiado simples para compreender quando alcançara a humildade. Mas sabia que a alcançara e sabia que não era nenhuma vergonha nem representava nenhuma perda do verdadeiro orgulho.
Com esta corrente, amanhã vai ser um bom dia — profetizou o velho.
Para que lado vai? — perguntou o garoto.
Para o largo, e voltarei para junto da costa quando o vento mudar. Quero sair antes do amanhecer.
Vou ver se consigo que o patrão do meu barco vá também para o largo — disse o garoto. — Assim, se você apanhar qualquer coisa grande de verdade, podemos ajudá-lo.
Seu patrão não gosta de ir para muito longe.
Não — concordou o garoto. — Mas irá, se eu vir qualquer coisa que ele não possa ver, como uma ave pairando sobre as águas, e disser que é um cardume de dourados.
Então ele tem a vista tão ruim assim?
Está quase cego.
É estranho — disse o velho. — Ele nunca foi à cata das tartarugas. É isso que dá cabo dos olhos.
Mas você foi à procura das tartarugas durante anos, lá para a Costa do Mosquito, e os seus olhos estão bons.
É que sou um velho muito estranho.
Mas se sente suficientemente forte para aguentar um peixe dos grandes?
Acho que sim. E conheço as manhas de todos eles.

Temos de levar as coisas para casa — lembrou o garoto. — Para eu ter tempo de ir deitar a rede e apanhar as sardinhas.



Foram buscar a tralha do barco. O velho pôs o mastro às costas e o garoto pegou a caixa de madeira que continha os rolos da dura linha entrelaçada, o gancho e o arpão. A caixa de isca estava escondida na popa da embarcação, juntamente com o martelo que servia para abater os peixes maiores quando eram puxados para junto do barco. Ninguém iria roubar o velho, mas era melhor levar a vela e as linhas mais pesadas para casa, porque a umidade lhes era prejudicial e, ainda que nenhum habitante da localidade fosse roubá-lo, o velho pescador pensava que um arpão e um gancho eram tentações desnecessárias para se deixar num barco.
Seguiram juntos pela rua em direção à cabana do velho e entraram pela porta que estava sempre aberta. O velho encostou à parede o mastro com as velas enroladas em volta e o garoto pôs a caixa e as outras coisas no chão. O mastro era quase da altura do único quarto da cabana, que era construída de guano, a resistente madeira das palmeiras-reais. Dentro só havia uma cama, uma mesa, uma cadeira e um canto no chão sujo, onde se podia cozinhar a carvão. Nas paredes castanhas do duro guano viam-se uma imagem colorida do Sagrado Coração de Jesus e uma outra da Virgem de Cobre. Ambas eram relíquias de sua mulher. Em tempos, houvera na parede uma fotografia da esposa, mas ele a tinha tirado porque se sentia muito só ao olhá-la todos os dias; agora estava escondida numa prateleira, debaixo de sua camisa lavada.
O que você tem para comer? — perguntou o garoto.
Uma panela de arroz com peixe. Quer provar?
Não. Vou comer em casa. Quer que acenda o fogo?
Não, não é preciso.
Posso levar a rede?
Naturalmente.
Não existia nenhuma rede e o garoto se lembrava muito bem de quando a tinham vendido. Mas esta era uma cena que repetiam todos os dias. Também não havia nenhuma panela de arroz com peixe e o garoto também sabia disso.
Oitenta e cinco é um número de sorte — disse o velho. — Gostaria de me ver trazer um peixe que pesasse mais de quatrocentos quilos?
Se gostaria! Vou agora preparar a rede para ir apanhar sardinhas. Por que não se senta à porta para apanhar sol?
Sim, tenho aqui o jornal de ontem e vou ler as notícias do beisebol.
O garoto não sabia bem se o jornal de ontem também era uma fantasia, mas o velho o tirou de debaixo do colchão.
Foi o Pedrito quem deu para mim no botequim — explicou ele.
Agora tenho de ir procurar sardinhas. Guardarei todas juntas, no gelo, as suas e as minhas, e amanhã cedo poderemos separá-las. Depois, quando eu voltar, você me contará o que eles dizem no jornal a respeito do beisebol, certo?
[…]

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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