Estava
acomodado com outra pessoa. Estávamos no segundo andar de uma cabana
e eu estava trabalhando. Foi isso que quase me matou, beber toda a
noite e trabalhar o dia inteiro. Continuava jogando a garrafa pela
mesma janela. Costumava levar aquela janela até uma vidraçaria na
esquina e eles a arrumavam para mim, colocavam um novo vidro na
janela. Fazia isso uma vez por semana. O homem olhava para mim
estranhamente todas as vezes, mas sempre aceitava meu dinheiro, que
parecia normal para ele. Eu andava bebendo muito, continuamente há
15 anos, e, certa manhã, acordei e lá estava: o sangue escorrendo
pela minha boca e pelo meu cu. Cagalhões pretos. Sangue, sangue,
cachoeiras de sangue. Sangue fede mais que merda. Ela chamou um
médico e a ambulância veio me buscar. Os paramédicos disseram que
eu era grande demais para ser carregado pelas escadas e me pediram
para caminhar.
– Tudo
bem, caras – eu disse.
– Ficamos
agradecidos... não queremos que faça muita força.
Lá
fora subi na maca. Eles a abriram para mim, e me estendi ali em cima
como uma flor a fenecer. Uma flor infernal. Os vizinhos estavam com
as cabeças para fora das janelas, ficavam nos degraus da escada
enquanto eu passava. Viam-me bêbado na maior parte das vezes.
– Olhe,
Mabel – disse um deles –, lá se vai aquele homem terrível!
– Deus
tenha piedade de sua alma! – era a resposta.
Boa
e velha Mabel. Escapou-me boca afora uma golfada de sangue que
atingiu a ponta da maca, e alguém pronunciou:
– OOOOOhhhhhh.
Embora
eu estivesse trabalhando, não tinha nenhum dinheiro, então fui
levado novamente para a ala de caridade. A ambulância estava cheia.
Tinham compartimentos na ambulância e todos estavam tomados por
outras pessoas.
– Casa
cheia – disse o motorista. – Vamos lá.
Foi
uma viagem péssima. Balançamos e sacudimos. Fiz todo o esforço que
podia para não botar mais sangue para fora, porque não queria
deixar ninguém fedendo.– Oh – ouvi a voz de uma negra –, não
posso acreditar que isso esteja acontecendo comigo, não posso
acreditar, oh, Deus, me ajude!
Deus
é muito popular em lugares como esse.
Colocaram-me
em um porão escuro e alguém me deu alguma coisa para tomar em um
copo com água e isso foi tudo. De vez em quando eu vomitava um pouco
de sangue no pote que ficava perto da cama. Havia quatro ou cinco de
nós ali. Um dos homens estava bêbado... e insano... mas parecia
forte. Ele saiu de seu catre e vagueou pelos arredores, andou aos
tropeços, caindo por cima de outros homens, derrubando as coisas no
chão:
– Eu
era, era, eu, eu sou o juba, o joba, jujoba, eu era, uepa, juba.
Peguei
o jarro de água para bater nele, mas ele não se aproximou o
suficiente. Finalmente caiu em um canto e desmaiou. Fiquei em um
porão a noite inteira e até o meio-dia do dia seguinte. Então me
levaram para o andar de cima. A ala estava superlotada. Fui colocado
em um canto escuro.
– Oh,
ele vai morrer naquele canto – disse uma das enfermeiras.
– É...
– disse a outra.
Levantei,
numa noite, e não consegui chegar até o banheiro. Deixei sangue
sobre toda a parte central do piso. Caí e estava muito fraco para me
levantar. Chamei por uma enfermeira, mas as portas que davam acesso
para aquela ala eram cobertas de estanho de três a seis polegadas de
espessura e ninguém poderia me ouvir. Uma enfermeira vinha fazer uma
ronda uma vez a cada duas horas, procurando por mortos. Levavam
muitos mortos embora durante a noite. Eu não conseguia dormir e
costumava ficar observando a retirada. Puxavam um sujeito de um catre
para a maca e puxavam um lençol por sobre a cabeça dele. Aquelas
macas estavam sempre muito bem lubrificadas. As rodinhas não faziam
nenhum barulho. Gritei:
– Enfermeira!
– sem saber exatamente por quê.
– Cale
a boca! – um dos velhos me disse. – Queremos dormir!
Desmaiei.
Quando
retomei a consciência, todas as luzes estavam acesas. Duas
enfermeiras estavam tentando me erguer.
– Disse
para você não sair da cama – falou uma delas.
Eu
não conseguia falar. Tambores rufavam em minha cabeça. Senti que
estava me esvaziando. Parecia que conseguia ouvir tudo, mas não
conseguia ver, apenas clarões de luz, era o que parecia. Mas nada de
pânico nem medo, apenas uma sensação de estar esperando,
aguardando por algo sem me importar.
– Você é muito grande –
disse uma delas –, suba nesta cadeira.
Colocaram-me
em uma cadeira de rodas e me empurraram pelo corredor. Sentia-me como
se não pesasse mais de três quilos.
Então
estavam ao meu redor: pessoas. Lembro de um médico vestindo um
avental verde, um avental de operação. Parecia estar furioso.
Estava falando com a enfermeira-chefe.
– Por que esse homem não
recebeu uma transfusão? Ele está quase sem nada.
– Seus papéis
passaram pelo andar inferior enquanto eu estava no andar de cima e
foram preenchidos antes que eu os visse. E, além disso, doutor, ele
não tem nenhum crédito sanguíneo.
– Quero um pouco de sangue aqui
em cima e quero AGORA!
“Quem raios será esse sujeito”, pensei,
“muito estranho. Muito incomum para um médico.”
Começaram as
transfusões... nove bolsas de sangue e oito de glicose.
Uma
enfermeira tentou me alimentar com rosbife e batatas e ervilhas e
cenouras na minha primeira refeição. Ela colocou a bandeja na minha
frente.
– Raios,
não posso comer isso – eu lhe disse. – Esse negócio vai me
matar!
– Coma
– ela disse –, está na sua lista, é a sua dieta.
– Traga-me
um pouco de leite – eu disse.
– Coma
isso – ela disse e se afastou.
Deixei
a comida onde estava.
Cinco
minutos depois, ela voltou correndo pela ala.
– Não
COMA ISSO! – ela gritou. – Você não pode COMER ISSO!! Houve um
erro na lista!
Ela
levou tudo embora e voltou com um copo de leite.
Assim
que a primeira bolsa de sangue esvaziou-se dentro de mim,
colocaram-me em uma maca com rodas e me levaram para a sala de raio
X. O doutor me mandou ficar em pé. Eu não conseguia, acabava sempre
caindo de costas.
– PORRA
DO CARALHO! – ele gritou. – VOCÊ ME FEZ DESPERDIÇAR OUTRO
FILME! AGORA FIQUE EM PÉ E NÃO CAIA!
Tentei,
mas não consegui ficar em pé. Caí de costas.
– Oh,
merda – ele disse para a enfermeira –, leve-o daqui.
Domingo
de Páscoa, a banda do Exército da Salvação tocou bem embaixo da
nossa janela às cinco horas da madrugada. Tocaram músicas
religiosas horrorosas, tocaram mal e muito alto, e isso era para mim
como mergulhar em um pântano, sentia a música correr pelo meu
corpo, quase me matou. Senti-me tão perto da morte naquela manhã
como jamais tinha me sentido antes. Estava a um centímetro de
distância, um fio de cabelo de distância. Finalmente foram embora
para outra parte do pátio e comecei a voltar à vida. Diria que,
naquela manhã, eles mataram provavelmente meia dúzia de
prisioneiros com aquela sua música.
Então
meu pai apareceu com a minha puta. Ela estava bêbada, e eu sabia que
ele tinha dado dinheiro a ela para beber e que também a havia
trazido, deliberadamente, para que eu a visse bêbada. Fez isso para
me entristecer. O velho e eu éramos inimigos de longa data... ele
acreditava em tudo aquilo que eu não acreditava e vice-versa. Ela
cambaleava em frente à minha cama, embriagada, o rosto rubicundo.
– Por
que você a trouxe aqui nesse estado? – perguntei. – Por que não
esperou até outro dia?
– Disse
que ela não prestava! Sempre disse que ela não prestava!
– Você
a embebedou e então a trouxe aqui. Por que você continua fazendo
isso comigo?
– Eu
disse que ela não prestava, eu avisei, eu avisei!
– Seu
filho da puta, se você disser mais uma palavra, vou tirar essa
agulha do meu braço e cagar você a pau!
Ele
a tomou pelo braço e os dois partiram.
Acho
que telefonaram para eles dizendo que eu ia morrer. A hemorragia
continuava. Naquela noite, um padre veio me visitar.
– Padre
– eu disse –, sem ofensas, mas, por favor, gostaria de morrer sem
nenhum rito, sem nenhuma palavra.
Fiquei
surpreso, então, porque ele balançou e se inclinou para trás sem
acreditar no que tinha ouvido, foi quase como se eu tivesse batido
nele. Digo que fiquei surpreso, porque imaginava que esses rapazes
levassem as coisas de maneira mais tranquila. Mas, enfim, eles também
tinham que limpar os próprios rabos.
– Padre,
fale comigo – disse um velho –, você pode falar comigo.
O
padre foi até ele e o velho e todos os demais ficaram felizes.
Treze
dias depois da noite em que fui internado, estava dirigindo um
caminhão e carregando sacos de 25 quilos. Uma semana mais tarde,
bebi meu primeiro copo de cerveja... o copo que, diziam, iria me
matar.
Acho
que algum dia vou morrer em uma ala de caridade de merda. Parece que
simplesmente não consigo me livrar disso.
Charles Bukowski, in Sobre bêbados e bebidas
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