segunda-feira, 8 de abril de 2024

Da prudência humana

Não a altura: a escarpa é o mais terrível!
A escarpa, onde o olhar se precipita lá embaixo e a mão se agarra lá em cima. Ali o coração tem vertigem com sua dupla vontade.
Ah, amigos, adivinhais também a dupla vontade de meu coração?
Eis a minha escarpa e o meu perigo, que o meu olhar se precipite na altura e a minha mão queira se ater e se apoiar — na profundidade!
Ao homem se aferra minha vontade, com cadeias me amarro ao homem, porque sou impelido para cima, rumo ao super-homem: pois para lá quer ir minha outra vontade.
E para isso vivo cego entre os homens; como se não os conhecesse: para que a minha mão não perca inteiramente a sua fé em algo firme.
Eu não vos conheço, homens: essa escuridão e consolo frequentemente me rodeia.
Fico sentado junto ao portão, exposto a qualquer velhaco, e pergunto: quem quer me enganar?
Eis a minha primeira prudência humana: deixo-me enganar, para não me manter em guarda contra os velhacos.
Ah, se eu me mantivesse em guarda contra os homens: como poderia o homem ser uma âncora para meu balão? Muito facilmente seria eu impelido para o alto e para longe!
Esta providência se acha sobre o meu destino: que eu tenha de existir sem precaução.
E quem não quiser morrer de sede entre os homens, deve aprender a beber de todos os copos; e quem quiser permanecer limpo entre os homens, deve saber se lavar também com água suja.
E assim falei muitas vezes, para meu consolo: “Muito bem! Adiante, velho coração! Uma infelicidade te sucedeu: goza disso como tua — felicidade!”.
Mas eis minha outra prudência humana: eu poupo os vaidosos mais que os orgulhosos.
A vaidade ferida não é a mãe de todas as tragédias? Onde o orgulho é ferido, porém, ali cresce algo ainda melhor que orgulho.
Para que a vida seja boa de contemplar, é preciso que seu espetáculo seja bem representado: mas isso requer bons atores.
Bons atores me pareceram todos os vaidosos: eles representam e querem que as pessoas gostem de assistir a eles — todo o seu espírito está nessa vontade.
Eles encenam a si próprios, inventam-se; em sua vizinhança gosto de assistir à vida — isso me cura da melancolia.
Por isso poupo os vaidosos, porque são médicos de minha melancolia e me prendem aos homens como a um espetáculo.
E depois: quem pode medir, no vaidoso, toda a profundidade de sua modéstia? Sou bom e compassivo com ele devido à sua modéstia.
De vós ele quer aprender a fé em si mesmo; ele se alimenta de vossos olhares, come o louvor em vossas mãos.
Até em vossas mentiras ele acredita, quando mentis bem a respeito dele: pois no mais fundo seu coração suspira: “Que sou eu?”.
E, se a virtude genuína é aquela que não sabe de si: o vaidoso não sabe de sua modéstia! —
Mas eis a minha terceira prudência humana: não deixo que a visão dos maus me seja estragada por vossa covardia.
Sou feliz em ver as maravilhas que o sol quente faz nascer: tigres, palmeiras, cascavéis.
Também entre os homens há belas crias do sol quente e coisas dignas de admiração nos malvados.
É certo que, assim como vossos maiores sábios não me pareceram tão sábios, também a maldade dos homens achei aquém de sua fama.
E muitas vezes perguntei, balançando a cabeça: Por que ainda chacoalhar, ó cascavéis?
Em verdade, também para o mal ainda há um futuro! E o sul mais quente não foi ainda descoberto para o homem.
Quantas coisas se chamam extrema maldade, que só têm doze pés de largura e três meses de duração! Mas um dia dragões maiores virão ao mundo.
Pois, para que ao super-homem não falte seu dragão, o superdragão que dele seja digno: para isso, muitos sóis quentes ainda precisarão arder sobre a úmida selva!
Vossos gatos selvagens precisarão haver se tornado tigres, e vossos sapos venenosos, crocodilos: pois o bom caçador deve ter uma boa caça!
Em verdade, ó bons e justos! Há muito do que rir em vós, especialmente vosso temor daquele que até agora se chamou “Demônio”!
São tão alheias à grandeza vossas almas, que o super-homem vos seria terrível em sua bondade!
E vós, sábios e sabedores, vós fugiríeis da incandescente lava de sabedoria em que o super-homem banha alegremente a sua nudez!
Ó vós, homens mais elevados que meus olhos já conheceram! Eis a minha dúvida a vosso respeito, e o meu riso secreto: eu adivinho que ao meu super-homem chamaríeis — Demônio!
Ah, cansei-me desses homens mais elevados e melhores: de sua “altura” eu ansiava me afastar, ir para cima, para longe, para o super-homem!
Um horror se apoderou de mim, quando vi nus esses homens melhores: então me cresceram asas, para voar para futuros distantes.
Para futuros distantes, para Suis mais meridionais do que um artista algum dia sonhou: ali onde os deuses se envergonham de toda vestimenta!
Mas a vós quero ver disfarçados, a vós, próximos e semelhantes, e bem adornados, e vaidosos, e dignos, como “os bons e justos” —
E disfarçado sentarei eu mesmo entre vós — de modo a não reconhecer a vós e a mim: eis minha última prudência diante dos homens.

Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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