Onde
fui parar? O que fiz? Como as coisas acabaram? Bem, este é
basicamente o fim, então, as respostas devem estar nas próximas
páginas. Duvido que surpreendam você, mas nunca se sabe. Não sei
se você é inteligente ou burro. E, até onde sei, você podia ser
Albert Einstein ou um vencedor de prêmios literários, ou talvez só
alguém medíocre como eu.
Então,
poderíamos também passar logo para a perseguição. Vou contar para
você agora como foi que as coisas acabaram no inverno da minha vida.
O fim começa assim: Deprimido.
Passei
assim o domingo todo, depois, a segunda-feira, na escola. Alguma
coisa se revoltava dentro de mim, começando no estômago e subindo
até esticar os braços para arrancar minha pele por dentro. Ardia.
Na
quarta-feira, na escola, conversei um pouco com Greg, sobretudo,
porque ele tinha uma expressão abatida.
— O
que aconteceu? — perguntei, quando passei por ele num dos
corredores.
— Ah,
deixa pra lá — respondeu. — Nada.
Mas
nós dois sabíamos que, na verdade, era bastante óbvio que os caras
para quem ele tinha comprado a heroína não ficaram muito
impressionados com o esforço dele, nem mesmo depois de aparecer com
o dinheiro.
— Eles
pegaram você, não é? — perguntei. Dei um sorriso cheio de pesar
quando falei isso, e Greg sorriu também.
— É,
me pegaram. — Fez que sim com a cabeça. O sorriso dele era
irônico, de quem sabe das coisas. — Decidiram me bater pelo
inconveniente que causei... O cara da heroína não tinha mais nada,
e eles tiveram que procurar outro cara. Não se comoveram.
— Parece
justo. — Foi a minha conclusão.
— É.
Acho que sim.
Nos
separamos uns minutos depois, e eu me virei, olhei para o Greg e
tentei rezar por ele, como todas aquelas orações que eu fazia antes
nessa história. Mas não consegui. Simplesmente não consegui. Não
me pergunte por quê. Torcia para ele ficar bem, mas não conseguia
reunir forças para rezar para isso.
E
para que serviam as orações? Elas não tinham ajudado nem um pouco
no meu caso. Mas lembra? Eu nunca saí por aí rezando por mim, não
é? Talvez fosse isso por trás de tudo. Eu. Talvez a única razão
para eu rezar pelos outros, para começo de conversa, era para ter
boa sorte. Era verdade? Era? Não. De jeito nenhum. Não era.
Talvez
as orações funcionassem mesmo.
É
bem provável, se você parar pra pensar, porque, quando voltei para
casa, Sarah tinha começado a falar no telefone para substituir as
sessões de amasso intenso no sofá. Steve aos poucos voltava a
andar, Rube havia tomado algum jeito, mamãe e papai pareciam felizes
e, sem dúvida, Rebecca Conlon estava feliz, fantasiando com Dale
Perry...
Parecia
que tudo estava dando certo para todo mundo.
Menos
para mim.
Com
frequência, eu me pegava entoando a palavra infelicidade, feito a
criatura lamentável que era.
Resmungava
para mim mesmo.
Choramingava.
Me
queixava.
Me
coçava por dentro.
Aí
eu ria.
De
mim.
Aconteceu
quando eu estava do lado de fora de casa, à noite, depois do jantar.
As
salsichas e os cogumelos, mas, principalmente, a angústia que eu
carregava, estavam se ajeitando no meu estômago, quando uma
gargalhada muito esquisita irrompeu de dentro de mim. Quando ergui os
pés do chão, sorri e, então, coloquei minha mão num poste para
descansar.
De
pé ali, deixei a gargalhada sair, e os passantes devem ter pensado
que eu era louco, drogado ou algo assim. Olhavam para mim como se
dissessem: “Do que você está rindo?" Mas andavam rápido,
para as próprias vidas, enquanto eu ficava ali, dando uma pausa na
minha.
Foi
aí que decidi que precisava decidir uma coisa.
Precisava
decidir o que ia fazer e o que ia ser.
Estava
de pé ali, esperando que alguém fizesse alguma coisa, até perceber
que a pessoa que eu estava esperando era eu mesmo.
Tudo
dentro de mim estava dormente, vagamente vivo, quase como se não
ousasse se mover, esperando a minha decisão.
Respirei
e disse: — Muito bem.
Foi
tudo de que precisei.
Duas
palavras e, ao correr para casa, sabia que o que eu ia fazer era
voltar, me limpar um pouco e correr os cinco quilômetros até a casa
de Rebecca Conlon para perguntar se ela queria fazer alguma coisa no
fim de semana. Quem ligava para o que os outros pensavam? Eu não
ligava para o que mamãe ou papai iam dizer, o que Rube ou Steve iam
dizer, o que Sarah ia dizer, ou o que você ia dizer. Simplesmente
sabia que era isso que eu precisava fazer.
— Agora
mesmo — enfatizei enquanto corria, jogando os ombros para a frente
e seguindo como se estivesse atrás de um coelho de mentira. Fiquei
enjoado enquanto corria, como se a comida estivesse se transformando
em ácido. Mesmo assim, corri mais forte, pulei para o portão da
frente e para dentro de casa, e vi.
Sarah
ao telefone.
Telefone.
Isso,
telefone pensei. Claro. Correr até lá e falar com ela cara a cara
parecia muito assustador agora, então o novo plano era ir até um
telefone público em algum lugar. Peguei uns trocados da gaveta,
anotei numa das mãos o número dos Conlon, que estava na caderneta
do meu pai e corri para o telefone público mais próximo.
— Ei!
— Uma voz me acompanhou na calçada. Era Steve, gritando da
varanda. Eu nem o vira quando entrei correndo em casa. — Aonde você
vai? Parei, mas não respondi à pergunta. Voltei rapidamente, me
lembrando de súbito o que ele havia me dito da última vez que
falara comigo na varanda, na noite que Rube e eu devolvemos a placa
de "dê a preferência".
“Vocês
são uns perdedores.” Foi isso que ele disse, e agora eu subia os
degraus, apontando um dedo para ele, enquanto ele se inclinava na
grade e se esticava.
Apontei
para ele e falei: — Se você voltar a me chamar de perdedor, vou
quebrar a sua cara. — Falei sério, e pude perceber pela expressão
em seu rosto que ele sabia que eu estava falando sério. Ele até
sorriu, como se soubesse de alguma coisa. — Eu sou um lutador —
concluí. — Não um perdedor. Tem diferença.
Meus
olhos se fixaram nos dele apenas por mais um segundo. Falei sério.
Falei sério cada palavra. Steve gostou. Eu gostei mais ainda.
O
telefone público.
Saí
de novo, obcecado.
O
único problema com o plano do telefone público agora era que eu não
encontrava um. Pensei que havia um num certo lugar na rua Elizabeth,
mas tinham tirado de lá. Só consegui continuar correndo, dessa vez,
na direção da casa dos Conlon, até, mais ou menos, uns três
quilômetros adiante, encontrar um. Se tivesse corrido mais dois
quilômetros, poderia ter falado pessoalmente.
— Ai,
cara. — Apoiei as mãos nos joelhos quando cheguei ao telefone. —
Cara. — Percebi, de repente, que correr tinha sido a parte mais
fácil. Agora eu precisava discar o número e falar.
Meus
dedos pareciam garras no disco do telefone pré-histórico enquanto
eu ligava para o número e...
Esperei...
...
ando.
Estava
tocando...
Toc-ando.
Toc-ando.
Toc-ando.
Não
foi ela quem atendeu, e tive que explicar à pessoa quem eu era.
— Cameron.
— Cameron?
“Cameron
Wolfe, vaca estúpida!” Eu queria gritar, mas me controlei. Em vez
disso, falei com voz tranquila e digna: — Cameron Wolfe. Trabalho
com o encanador.
Percebi,
após dizer essas palavras, que ainda estava sem fôlego. Estava
ofegante ao telefone, mesmo quando Rebecca Conlon finalmente atendeu
do outro lado da linha.
— Rebecca?
— Sim?
A
voz, a voz.
Dela.
Gaguejei,
mas não perdi a fala. Me concentrei e fiz tudo com um objetivo, com
desejo, quase com um orgulho severo, sereno. Minha voz rastejava para
ela. Pedia. Apertando o telefone. Vai em frente. Anda. Pergunta.
— Pois
é, eu estava imaginando... Minha garganta doía. — Fiquei
imaginando se... Sábado.
Esse
seria o dia.
Não.
Não?
Sim,
não. Você me ouviu.
Embora
Rebecca Conlon não tivesse dito a palavra não quando me rejeitou
num tipo de encontro entre nós dois, no sábado. Ela falou: "Não
posso", e, olhando para trás agora, fico imaginando se a
decepção na voz dela era de verdade.
Claro
que fico imaginando, porque ela continuou falando e dizendo que não
podia fazer nada no domingo nem no fim de semana seguinte por causa
de alguma coisa de família ou outra coisa de algum tipo. Não
adiantava fingir. Ela estava dando a si mesma um terreno seguro longe
de mim. Eu nem tinha perguntado sobre o domingo ainda, entende? Nem
sobre o fim de semana seguinte! A dor no meu ouvido tomou conta de
mim. Parecia que o céu negro acima ia desabar. Senti como se
estivesse inspirando as nuvens acinzentadas acima da minha cabeça, e
muito devagar a ligação foi sumindo.
— Bem,
talvez outro dia. — Dei um sorriso malicioso ao telefone. Minha
voz, porém, ainda parecia simpática e digna.
— Claro,
será ótimo, sim. — Voz ótima, simpática. A última vez que a
ouviria? Provavelmente, a menos que ela fosse burra o bastante para
ficar em casa no fim de semana seguinte, quando papai e eu íamos
terminar o serviço.
Sim,
a voz dela e, por alguma razão, eu não tinha certeza se ela ainda
era tão real para mim. Estava longe demais agora para ser real.
Então
tá, nos falamos depois — terminei, mas não ia falar com ninguém
depois.
— Então
tá, tchauziiinho. — Acrescentou raiva à mágoa.
Ouvir
Rebecca desligar foi uma coisa violenta. Prestei atenção, e o som,
de algum modo, estava partindo minha cabeça. Muito devagar, soltei o
fone e o deixei pendurado ali, quase morto.
Capturado.
Julgado.
Enforcado.
Saí,
deixando o fone pendurado ali, e fui embora, para casa.
A
volta não foi tão ruim quanto você poderia imaginar, porque uns
pensamentos que brigavam na minha cabeça fizeram o tempo voar. Cada
passo deixou uma marca invisível na calçada, que só eu podia
farejar no meu caminho para o futuro. Boa sorte.
Voltando
pra casa, percebi outro telefone público em um lado da rua e me
sentei ali, fazendo piada comigo mesmo e rindo.
— Hum
— foi tudo que disse para mim mesmo quando continuei andando e
aliviei a coceira no ombro com minha mão cansada, que se esticava na
ponta de um cotovelo dobrado e torcido.
Dessa
vez, vacilei na frente do portão, fiquei parado ali por um tempo e
fui para a cama às dez e meia.
Não
dormi.
Suei,
estremeci, sozinho.
Vi
coisas coladas nos meus olhos. Jogadas dentro deles.
Vi
tudo. Cada detalhe. Desde um taco de beisebol e um bastão de
críquete, tratamento de flúor, um poste sem placa, sonhos, pais,
irmãos, mãe, irmã, Bruce, amigo, garota, voz, sumindo, indo para
dentro. De mim.
Minha
vida esmagava a cama.
Senti
lágrimas que pareciam martelos descendo pelo meu rosto.
E
me vi indo até o telefone.
Falando.
Cambaleando
para casa.
Então,
lá para uma da manhã, eu me pus de pé, vesti o jeans e saí
descalço para o quintal.
Para
fora do nosso quarto.
Corredor
afora.
Pela
porta dos fundos.
Noite
fria.
Passando
pelo concreto e indo para o gramado, até parar.
Fiquei
parado ali e fitei o céu e a cidade ao meu redor. Fiquei parado, com
as mãos na cintura, e vi o que tinha acontecido comigo, quem eu era
e o modo como as coisas sempre haviam sido para mim. Verdade. Não
havia mais desejo, nem interrogações. Eu sabia quem era e o que
sempre seria. E acreditei quando meus dentes se tocaram e meus olhos
foram inundados.
Minha
boca se abriu.
Aconteceu.
Sim,
com a cabeça erguida para o céu, comecei a uivar.
Com
os braços esticados junto ao corpo, uivei, e tudo saiu de mim.
Visões jorraram da minha garganta, e vozes antigas me cercaram. O
céu ouviu. A cidade, não. Não me importava. Tudo que me importava
é que eu estava uivando para ouvir minha voz, e então eu ia me
lembrar de que o garoto tinha intensidade e alguma coisa para
oferecer. Uivei, ah, tão alto e desesperado, dizendo ao mundo que eu
estava aqui e não ia me deitar.
Nem
hoje.
Nem
nunca mais.
Sim,
uivei, e, sem que eu soubesse, minha família estava parada no vão
da porta dos fundos, me observando e se perguntando o que eu estava
fazendo.
Primeiro,
tudo está em preto e branco.
Branco
no preto.
É
onde caminho, através das páginas.
Destas
páginas.
As
vezes, tenho um pé nas páginas e nas palavras e outro nas coisas de
que elas falam. As vezes, estou lá de novo, fazendo planos com o
Rube, brigando com ele, trabalhando com papai, sendo xingado de
animal selvagem pela minha mãe, vendo a vida da Sarah cair das mãos
do Bruce, e dizendo a Steve que vou quebrar a cara dele se ele me
chamar de novo de perdedor. Vejo até a heroína comprada pelo Greg,
subindo pela chaminé, entorpecendo o ar acima do telhado. Um pé
anda na direção da casa de Rebecca Conlon e trabalha lá, e
telefona para lá. Outro pé fica parado na imagem na qual pende
morto o telefone público estrangulado, só com os restos da minha
voz dentro dele.
As
vezes, quando estou mergulhado nas páginas, as letras de cada
palavra são como os imensos edifícios da cidade. Fico de pé
embaixo deles, olhando para cima.
Algumas
vezes, corro.
Rastejo.
Através.
De
cada página.
As
vezes, os sonhos me cobrem; outras, arrancam a carne da minha alma ou
levam embora meu cobertor, me deixando sozinho, com frio.
Dedos
tocam as páginas.
E
me viram.
Sigo
em frente.
Sigo
sempre.
Tudo
é grande.
As
páginas e as palavras são o meu mundo, que se estende diante dos
seus olhos e das suas mãos, para serem tocados. De modo vago, posso
ver seu rosto me fitando, quando olho de volta. Você consegue ver
meus olhos Mesmo assim, continuo andando, através de um sonho que me
conduz por estas páginas.
Chego
ao ponto em que me vejo sair para o quintal no frio congelante. Vejo
cidade e céu, e sinto o frio. Fico parado a meu lado.
Jeans.
Pés
descalços.
Sem
camisa, tremendo.
Braços
de garoto.
Bem
retos, esticados.
O
vento aumenta, e as folhas de papel voam e caem ao nosso redor,
quando estamos parados ali. O som de uivos se embaralhava
desesperadamente nos meus ouvidos, e eu o ouço.
Insisto
nesse desespero, porque. Preciso dele. Quero ele. Sorrio.
Os
cães latem, muito longe, mas se aproximando. A meu lado, me ouço
uivar. Esse é um sonho bom.
Uivar.
Alto. Intenso.
As
últimas folhas de papel ainda caem. Estou vivo.
Nunca
estive tão...
Olho
para baixo. As palavras são minha vida. Os uivos continuam.
Fico
ali, com páginas espalhadas até os tornozelos e o uivo nos ouvidos.
Markus Zusak, in O Azarão
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