sexta-feira, 8 de março de 2024

O Azarão | 14


Onde fui parar? O que fiz? Como as coisas acabaram? Bem, este é basicamente o fim, então, as respostas devem estar nas próximas páginas. Duvido que surpreendam você, mas nunca se sabe. Não sei se você é inteligente ou burro. E, até onde sei, você podia ser Albert Einstein ou um vencedor de prêmios literários, ou talvez só alguém medíocre como eu.
Então, poderíamos também passar logo para a perseguição. Vou contar para você agora como foi que as coisas acabaram no inverno da minha vida. O fim começa assim: Deprimido.
Passei assim o domingo todo, depois, a segunda-feira, na escola. Alguma coisa se revoltava dentro de mim, começando no estômago e subindo até esticar os braços para arrancar minha pele por dentro. Ardia.
Na quarta-feira, na escola, conversei um pouco com Greg, sobretudo, porque ele tinha uma expressão abatida.
O que aconteceu? — perguntei, quando passei por ele num dos corredores.
Ah, deixa pra lá — respondeu. — Nada.
Mas nós dois sabíamos que, na verdade, era bastante óbvio que os caras para quem ele tinha comprado a heroína não ficaram muito impressionados com o esforço dele, nem mesmo depois de aparecer com o dinheiro.
Eles pegaram você, não é? — perguntei. Dei um sorriso cheio de pesar quando falei isso, e Greg sorriu também.
É, me pegaram. — Fez que sim com a cabeça. O sorriso dele era irônico, de quem sabe das coisas. — Decidiram me bater pelo inconveniente que causei... O cara da heroína não tinha mais nada, e eles tiveram que procurar outro cara. Não se comoveram.
Parece justo. — Foi a minha conclusão.
É. Acho que sim.
Nos separamos uns minutos depois, e eu me virei, olhei para o Greg e tentei rezar por ele, como todas aquelas orações que eu fazia antes nessa história. Mas não consegui. Simplesmente não consegui. Não me pergunte por quê. Torcia para ele ficar bem, mas não conseguia reunir forças para rezar para isso.
E para que serviam as orações? Elas não tinham ajudado nem um pouco no meu caso. Mas lembra? Eu nunca saí por aí rezando por mim, não é? Talvez fosse isso por trás de tudo. Eu. Talvez a única razão para eu rezar pelos outros, para começo de conversa, era para ter boa sorte. Era verdade? Era? Não. De jeito nenhum. Não era.
Talvez as orações funcionassem mesmo.
É bem provável, se você parar pra pensar, porque, quando voltei para casa, Sarah tinha começado a falar no telefone para substituir as sessões de amasso intenso no sofá. Steve aos poucos voltava a andar, Rube havia tomado algum jeito, mamãe e papai pareciam felizes e, sem dúvida, Rebecca Conlon estava feliz, fantasiando com Dale Perry...
Parecia que tudo estava dando certo para todo mundo.
Menos para mim.
Com frequência, eu me pegava entoando a palavra infelicidade, feito a criatura lamentável que era.
Resmungava para mim mesmo.
Choramingava.
Me queixava.
Me coçava por dentro.
Aí eu ria.
De mim.
Aconteceu quando eu estava do lado de fora de casa, à noite, depois do jantar.
As salsichas e os cogumelos, mas, principalmente, a angústia que eu carregava, estavam se ajeitando no meu estômago, quando uma gargalhada muito esquisita irrompeu de dentro de mim. Quando ergui os pés do chão, sorri e, então, coloquei minha mão num poste para descansar.
De pé ali, deixei a gargalhada sair, e os passantes devem ter pensado que eu era louco, drogado ou algo assim. Olhavam para mim como se dissessem: “Do que você está rindo?" Mas andavam rápido, para as próprias vidas, enquanto eu ficava ali, dando uma pausa na minha.
Foi aí que decidi que precisava decidir uma coisa.
Precisava decidir o que ia fazer e o que ia ser.
Estava de pé ali, esperando que alguém fizesse alguma coisa, até perceber que a pessoa que eu estava esperando era eu mesmo.
Tudo dentro de mim estava dormente, vagamente vivo, quase como se não ousasse se mover, esperando a minha decisão.
Respirei e disse: — Muito bem.
Foi tudo de que precisei.
Duas palavras e, ao correr para casa, sabia que o que eu ia fazer era voltar, me limpar um pouco e correr os cinco quilômetros até a casa de Rebecca Conlon para perguntar se ela queria fazer alguma coisa no fim de semana. Quem ligava para o que os outros pensavam? Eu não ligava para o que mamãe ou papai iam dizer, o que Rube ou Steve iam dizer, o que Sarah ia dizer, ou o que você ia dizer. Simplesmente sabia que era isso que eu precisava fazer.
Agora mesmo — enfatizei enquanto corria, jogando os ombros para a frente e seguindo como se estivesse atrás de um coelho de mentira. Fiquei enjoado enquanto corria, como se a comida estivesse se transformando em ácido. Mesmo assim, corri mais forte, pulei para o portão da frente e para dentro de casa, e vi.
Sarah ao telefone.
Telefone.
Isso, telefone pensei. Claro. Correr até lá e falar com ela cara a cara parecia muito assustador agora, então o novo plano era ir até um telefone público em algum lugar. Peguei uns trocados da gaveta, anotei numa das mãos o número dos Conlon, que estava na caderneta do meu pai e corri para o telefone público mais próximo.
Ei! — Uma voz me acompanhou na calçada. Era Steve, gritando da varanda. Eu nem o vira quando entrei correndo em casa. — Aonde você vai? Parei, mas não respondi à pergunta. Voltei rapidamente, me lembrando de súbito o que ele havia me dito da última vez que falara comigo na varanda, na noite que Rube e eu devolvemos a placa de "dê a preferência".
Vocês são uns perdedores.” Foi isso que ele disse, e agora eu subia os degraus, apontando um dedo para ele, enquanto ele se inclinava na grade e se esticava.
Apontei para ele e falei: — Se você voltar a me chamar de perdedor, vou quebrar a sua cara. — Falei sério, e pude perceber pela expressão em seu rosto que ele sabia que eu estava falando sério. Ele até sorriu, como se soubesse de alguma coisa. — Eu sou um lutador — concluí. — Não um perdedor. Tem diferença.
Meus olhos se fixaram nos dele apenas por mais um segundo. Falei sério. Falei sério cada palavra. Steve gostou. Eu gostei mais ainda.
O telefone público.
Saí de novo, obcecado.
O único problema com o plano do telefone público agora era que eu não encontrava um. Pensei que havia um num certo lugar na rua Elizabeth, mas tinham tirado de lá. Só consegui continuar correndo, dessa vez, na direção da casa dos Conlon, até, mais ou menos, uns três quilômetros adiante, encontrar um. Se tivesse corrido mais dois quilômetros, poderia ter falado pessoalmente.
Ai, cara. — Apoiei as mãos nos joelhos quando cheguei ao telefone. — Cara. — Percebi, de repente, que correr tinha sido a parte mais fácil. Agora eu precisava discar o número e falar.
Meus dedos pareciam garras no disco do telefone pré-histórico enquanto eu ligava para o número e...
Esperei...
... ando.
Estava tocando...
Toc-ando.
Toc-ando.
Toc-ando.
Não foi ela quem atendeu, e tive que explicar à pessoa quem eu era.
Cameron.
Cameron?
Cameron Wolfe, vaca estúpida!” Eu queria gritar, mas me controlei. Em vez disso, falei com voz tranquila e digna: — Cameron Wolfe. Trabalho com o encanador.
Percebi, após dizer essas palavras, que ainda estava sem fôlego. Estava ofegante ao telefone, mesmo quando Rebecca Conlon finalmente atendeu do outro lado da linha.
Rebecca?
Sim?
A voz, a voz.
Dela.
Gaguejei, mas não perdi a fala. Me concentrei e fiz tudo com um objetivo, com desejo, quase com um orgulho severo, sereno. Minha voz rastejava para ela. Pedia. Apertando o telefone. Vai em frente. Anda. Pergunta.
Pois é, eu estava imaginando... Minha garganta doía. — Fiquei imaginando se... Sábado.
Esse seria o dia.
Não.
Não?
Sim, não. Você me ouviu.
Embora Rebecca Conlon não tivesse dito a palavra não quando me rejeitou num tipo de encontro entre nós dois, no sábado. Ela falou: "Não posso", e, olhando para trás agora, fico imaginando se a decepção na voz dela era de verdade.
Claro que fico imaginando, porque ela continuou falando e dizendo que não podia fazer nada no domingo nem no fim de semana seguinte por causa de alguma coisa de família ou outra coisa de algum tipo. Não adiantava fingir. Ela estava dando a si mesma um terreno seguro longe de mim. Eu nem tinha perguntado sobre o domingo ainda, entende? Nem sobre o fim de semana seguinte! A dor no meu ouvido tomou conta de mim. Parecia que o céu negro acima ia desabar. Senti como se estivesse inspirando as nuvens acinzentadas acima da minha cabeça, e muito devagar a ligação foi sumindo.
Bem, talvez outro dia. — Dei um sorriso malicioso ao telefone. Minha voz, porém, ainda parecia simpática e digna.
Claro, será ótimo, sim. — Voz ótima, simpática. A última vez que a ouviria? Provavelmente, a menos que ela fosse burra o bastante para ficar em casa no fim de semana seguinte, quando papai e eu íamos terminar o serviço.
Sim, a voz dela e, por alguma razão, eu não tinha certeza se ela ainda era tão real para mim. Estava longe demais agora para ser real.
Então tá, nos falamos depois — terminei, mas não ia falar com ninguém depois.
Então tá, tchauziiinho. — Acrescentou raiva à mágoa.
Ouvir Rebecca desligar foi uma coisa violenta. Prestei atenção, e o som, de algum modo, estava partindo minha cabeça. Muito devagar, soltei o fone e o deixei pendurado ali, quase morto.
Capturado.
Julgado.
Enforcado.
Saí, deixando o fone pendurado ali, e fui embora, para casa.
A volta não foi tão ruim quanto você poderia imaginar, porque uns pensamentos que brigavam na minha cabeça fizeram o tempo voar. Cada passo deixou uma marca invisível na calçada, que só eu podia farejar no meu caminho para o futuro. Boa sorte.
Voltando pra casa, percebi outro telefone público em um lado da rua e me sentei ali, fazendo piada comigo mesmo e rindo.
Hum — foi tudo que disse para mim mesmo quando continuei andando e aliviei a coceira no ombro com minha mão cansada, que se esticava na ponta de um cotovelo dobrado e torcido.
Dessa vez, vacilei na frente do portão, fiquei parado ali por um tempo e fui para a cama às dez e meia.
Não dormi.
Suei, estremeci, sozinho.
Vi coisas coladas nos meus olhos. Jogadas dentro deles.
Vi tudo. Cada detalhe. Desde um taco de beisebol e um bastão de críquete, tratamento de flúor, um poste sem placa, sonhos, pais, irmãos, mãe, irmã, Bruce, amigo, garota, voz, sumindo, indo para dentro. De mim.
Minha vida esmagava a cama.
Senti lágrimas que pareciam martelos descendo pelo meu rosto.
E me vi indo até o telefone.
Falando.
Cambaleando para casa.
Então, lá para uma da manhã, eu me pus de pé, vesti o jeans e saí descalço para o quintal.
Para fora do nosso quarto.
Corredor afora.
Pela porta dos fundos.
Noite fria.
Passando pelo concreto e indo para o gramado, até parar.
Fiquei parado ali e fitei o céu e a cidade ao meu redor. Fiquei parado, com as mãos na cintura, e vi o que tinha acontecido comigo, quem eu era e o modo como as coisas sempre haviam sido para mim. Verdade. Não havia mais desejo, nem interrogações. Eu sabia quem era e o que sempre seria. E acreditei quando meus dentes se tocaram e meus olhos foram inundados.
Minha boca se abriu.
Aconteceu.
Sim, com a cabeça erguida para o céu, comecei a uivar.
Com os braços esticados junto ao corpo, uivei, e tudo saiu de mim. Visões jorraram da minha garganta, e vozes antigas me cercaram. O céu ouviu. A cidade, não. Não me importava. Tudo que me importava é que eu estava uivando para ouvir minha voz, e então eu ia me lembrar de que o garoto tinha intensidade e alguma coisa para oferecer. Uivei, ah, tão alto e desesperado, dizendo ao mundo que eu estava aqui e não ia me deitar.
Nem hoje.
Nem nunca mais.
Sim, uivei, e, sem que eu soubesse, minha família estava parada no vão da porta dos fundos, me observando e se perguntando o que eu estava fazendo.

Primeiro, tudo está em preto e branco.
Branco no preto.
É onde caminho, através das páginas.
Destas páginas.
As vezes, tenho um pé nas páginas e nas palavras e outro nas coisas de que elas falam. As vezes, estou lá de novo, fazendo planos com o Rube, brigando com ele, trabalhando com papai, sendo xingado de animal selvagem pela minha mãe, vendo a vida da Sarah cair das mãos do Bruce, e dizendo a Steve que vou quebrar a cara dele se ele me chamar de novo de perdedor. Vejo até a heroína comprada pelo Greg, subindo pela chaminé, entorpecendo o ar acima do telhado. Um pé anda na direção da casa de Rebecca Conlon e trabalha lá, e telefona para lá. Outro pé fica parado na imagem na qual pende morto o telefone público estrangulado, só com os restos da minha voz dentro dele.
As vezes, quando estou mergulhado nas páginas, as letras de cada palavra são como os imensos edifícios da cidade. Fico de pé embaixo deles, olhando para cima.
Algumas vezes, corro.
Rastejo.
Através.
De cada página.
As vezes, os sonhos me cobrem; outras, arrancam a carne da minha alma ou levam embora meu cobertor, me deixando sozinho, com frio.
Dedos tocam as páginas.
E me viram.
Sigo em frente.
Sigo sempre.
Tudo é grande.
As páginas e as palavras são o meu mundo, que se estende diante dos seus olhos e das suas mãos, para serem tocados. De modo vago, posso ver seu rosto me fitando, quando olho de volta. Você consegue ver meus olhos Mesmo assim, continuo andando, através de um sonho que me conduz por estas páginas.
Chego ao ponto em que me vejo sair para o quintal no frio congelante. Vejo cidade e céu, e sinto o frio. Fico parado a meu lado.
Jeans.
Pés descalços.
Sem camisa, tremendo.
Braços de garoto.
Bem retos, esticados.
O vento aumenta, e as folhas de papel voam e caem ao nosso redor, quando estamos parados ali. O som de uivos se embaralhava desesperadamente nos meus ouvidos, e eu o ouço.
Insisto nesse desespero, porque. Preciso dele. Quero ele. Sorrio.
Os cães latem, muito longe, mas se aproximando. A meu lado, me ouço uivar. Esse é um sonho bom.
Uivar. Alto. Intenso.
As últimas folhas de papel ainda caem. Estou vivo.
Nunca estive tão...
Olho para baixo. As palavras são minha vida. Os uivos continuam.
Fico ali, com páginas espalhadas até os tornozelos e o uivo nos ouvidos.

Markus Zusak, in O Azarão

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