sábado, 17 de fevereiro de 2024

Tão atrevidinha, tão sem medo


Feito um gato. Isora vomitava feito um gato. Hurgh hurgh hurgh, e o vômito se precipitava na privada para ser absorvido pela imensidão do subsolo da ilha. Isso acontecia duas, três, quatro vezes por semana. Ela me dizia sinto muita dor aqui, e apontava para o meio do tronco, bem no estômago, com o seu dedo gordo e moreno, com a sua unha como se tivesse sido mascada por uma cabra, e vomitava como quem escova os dentes. Puxava a descarga, abaixava a tampa e com a manga da blusa, uma blusa quase sempre branca com estampa de melancia com sementes pretas, enxugava os lábios e continuava. Ela sempre continuava.
Antes, nunca fazia isso na minha frente. Me lembro do dia em que vi Isora vomitar pela primeira vez. Era a festa do encerramento do ano na escola e havia muita comida. De manhã, pusemos a comida em cima das mesas da sala de aula, todas grudadas umas nas outras, com bandeirinhas de festinha de aniversário em cima. Havia xitos, fandangos, palitinhos, amendoins doces, charutinhos de chocolate, sanduichinhos de pão de forma, rosquinhas de limão, suspiros, refrigerantes, fanta, clipper, sevenãpe, suquinho de caixinha de abacaxi e de maçã. Fingimos estar bêbadas dentro da sala de aula e íamos, Isora e eu, caindo pra lá e pra cá, agarradas uma no ombro da outra, como dois maridos que tivessem posto chifres nas suas mulheres e agora estavam arrependidos.
A festa acabou e chegamos ao refeitório e lá tinha ainda mais comida. As cozinheiras nos prepararam batatas com costela, pinhão e molho, a comida preferida da Isora. E quando passamos com a nossa bandejinha de metal, com o nosso guardanapinho, o nosso copinho de água (que suspeitávamos ser da torneira, embora na ilha não se pudesse beber) e os nossos talheres e os nossos iogurtes Celgán, as professoras no refeitório nos perguntaram se molho picante ou molho verde e Isora respondeu que molho picante, e eu pensei que atrevidinha, molho picante, e ela não tem medo de que seja apimentado, não tem medo de comer coisas de gente grande, e que eu queria ser como ela, tão atrevidinha, tão sem medo.
Nos sentamos à mesa e começamos a comer na velocidade com que as crianças se jogavam com as tábuas de San Andrés.1 Não tinha pneus de borracha no fim da ladeira. Os jorros de molho deslizando pelo nosso queixo, as tranças engorduradas de tanto enfiar os cabelos dentro do prato, os dentes cheios de pedaços de milho e orégano, cacas de pomba branca, como Isora chamava a comida nos dentes. E enquanto engolíamos, eu já sentia uma tristeza como um estampido, uma agonia na boca do estômago, a boca seca como depois de ter comido leite em pó misturado com gofio2 e açúcar. No verão, a gente não podia sair do bairro, a praia ficava longe. Não éramos como as outras meninas que viviam no centro da cidade, morávamos em meio à mata.
Isora levantou-se da cadeira e me disse shit, vamos até o banheiro.
Eu me levantei e a segui.
Eu teria seguido ela ao banheiro, à boca do vulcão, com ela eu teria subido até ver o fogo adormecido, até sentir o fogo adormecido do vulcão dentro do corpo.
E eu a segui, mas não fomos ao banheiro do refeitório, e sim ao do segundo andar, onde não tinha ninguém, onde diziam que morava uma garota fantasma que comia o cocô das meninas que copiavam a lição de casa.
Fiz xixi e me afastei para que Isora também fizesse. Ela fez e, depois de erguer a calça, depois de eu ver a sua perereca peluda feito uma samambaia se abrindo no solo da mata, ela se alongou sobre a louça da privada, esticou o dedo indicador e o do meio e enfiou na boca. Eu nunca tinha visto uma coisa assim. Embora na verdade naquela ocasião eu também não tenha visto. Me virei pro espelho. Escutei ela tossindo como um animalzinho miúdo e desnutrido, vi os meus olhos grandes, dois punhos refletidos no vidro. Minha cara assustada, um medo que mordia a minha pele por dentro, a garganta de Isora queimando e eu sem fazer nada.
Escutei o vômito.
Na minha cabeça, imaginei a correntinha de Nossa Senhora da Candelária pendendo do seu pescoço, pendendo sobre a água que depois arrastaria tudo o que ela tinha lançado.

Andrea Abreu, in Pança de Burro

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