Como
de costume, papai e eu fomos para o trabalho no sábado, na casa dos
Conlon.
Em
vez de manter você em suspense (se é que você ainda liga para
isso), eu podia muito bem dizer que, dessa vez, ela estava lá, linda
como sempre.
Eu
ainda estava trabalhando debaixo da casa, quando ela veio.
— Ei,
senti sua falta na semana passada — falei quando ela apareceu, e na
mesma hora dei um tapa na cabeça, a frase era muito ambígua. Quero
dizer, será que significava senti sua falta, como em “eu não vi
você” (que era a mensagem pretendida) ou significava você partiu
meu coração por não estar aqui, vaca idiota? Não tinha certeza de
qual mensagem estava transmitindo. No fim das contas, só podia
torcer para que ela pensasse que eu estava dizendo apenas que não
nos vimos. Você não pode parecer muito desesperado em uma situação
assim, mesmo que seu coração esteja acabando com você por dentro.
Ela
falou: — Bem... — Meu Deus, ela disse isso com aquela voz que a
tornava real. — Eu não fiquei aqui de propósito.
Que
diabos queria dizer isso? — Como é que é? — Arrisquei
perguntar.
— Você
ouviu. — Deu um sorriso. — Eu não fiquei aqui...
— Por
minha causa? Fez que sim com a cabeça.
Isso
era ruim ou bom? Parecia ruim. Muito ruim.
Mas,
então, também parecia bom, de um jeito doendo e distorcido. Será
que ela estava gozando com a minha cara? Não.
— Não
queria ficar aqui porque tive... — Ela engoliu em seco. — ...
medo de fazer papel de boba, como da última vez.
— Da
última vez? — perguntei confuso. — Não fui eu quem falou uma
besteira? Fui eu, sim, quem disse “Gosto de trabalhar aqui”. —
Lembrei e me encolhi.
Estávamos
agachados, debaixo da casa, e as vigas de madeira, suspensas acima de
nós, nos avisando de que perder a concentração nos deixaria com um
belo machucado na cabeça. Fiz um esforço para não ficar ereto.
— Pelo
menos, você disse alguma coisa. — Ela insistiu no argumento.
De
repente, uma coisa saiu de mim. Falei: — Não magoaria você. Bem,
pelo menos, eu ia me esforçar pra caramba pra não magoar. Prometo.
— Como
é que é? — Ela deu um passo para trás. — O que você quer
dizer?
— Quero
dizer, se... O fim de semana foi bom na semana passada? Jogar fora.
Jogar conversa fora.
— Foi.
— Ela assentiu e ficou onde estava. — Fiquei na casa de uma
amiga. — Então, voltou para mais perto. — Depois fomos até a
casa de um cara, Dale.
Dale.
Por
que o nome era tão familiar? Ah, não.
Ah,
ótimo.
— Dale
Perry?
— Dale
Perry.
O
colega de Greg.
Típico.
Um
tremendo herói.
Podia
ver que ela realmente gostava do cara.
Mais
do que de mim.
Ele
era um vencedor.
As
pessoas gostavam dele.
Greg
gostava.
Embora
pudesse confiar em mim.
— É.
Dale Perry — respondeu ela (confirmando meus piores temores),
balançando a cabeça e sorrindo. — Você conhece ele, não é? —
É. Conheço. — Percebi, então, que Rebecca Conlon provavelmente
era uma das garotas no grupo do Lumsden Oval, naquele dia que parecia
ter acontecido décadas atrás.
Havia
umas garotas parecidas com ela. O mesmo cabelo real. As mesmas pernas
reais. O mesmo... Tudo fazia sentido. Ela era próxima, bonita e
real.
Dale
Perry.
Por
pouco eu não disse que ele quase tinha queimado minha orelha havia
pouco mais de um ano, mas me calei. Não queria que ela pensasse que
eu era um desses caras totalmente ciumentos, que odiavam todo mundo
que era melhor que eles, o que, na verdade, era exatamente o tipo de
cara que eu era.
— Minha
melhor amiga diz que ele gosta de mim, mas eu não sei...
Ela
continuou falando, mas eu não conseguia ouvir. Simplesmente, não
podia. Por que diabos ela estava me contando aquilo? Era porque eu
era apenas o filho do encanador e ia pra uma escola estadual caindo
aos pedaços, enquanto ela, provavelmente, frequentava um colégio
São qualquer coisa ou algo do tipo? Ou porque eu era um tipo de cara
inofensivo e incapaz de morder? Bem, faltou pouco.
Quase
a interrompi para dizer: “Ora, vá embora daqui com o seu Dale
Perry”, mas não fiz isso. Eu a amava demais e não ia magoá-la,
por mais que estivesse magoado.
Em
vez disso, perguntei se conhecia Greg.
— Greg
Fiennes ou coisa parecida?
— Fienni.
— Conheço,
sim. Como é que você o conhece? E, por alguma razão, um monte de
lágrimas começou a se acumular nos meus olhos.
— Ah
— falei. — Já fomos amigos. — E me virei para continuar
trabalhando e esconder meus olhos.
— Bons
amigos?
Droga
de garota! — Meu melhor amigo — admiti.
— Ah.
— Ela fitava minhas costas. Eu podia sentir. Fiquei imaginando se
ela estava entendendo o que se passava aqui. Talvez. Provavelmente.
Sim, era provável, pois ela foi embora com um “Então, tá.
Tchauziiinho” muito simpático. Será que já tinha ouvido isso
antes? Claro que tinha, e senti uma pontada de realidade na garganta.
Toda
aquela discussão não me ocupou durante o dia como a decepção da
semana passada. Não. Dessa vez, me arrastei para fora daquilo.
Senti
uma coisa horrível dentro de mim.
Me
arrastando.
Papai
me viu e me deu uma bronca por ser tão lento, mas eu não
conseguiria seguir adiante. Você nem ia acreditar o quanto eu
tentei, mas minhas costas estavam quebradas.
Meu
espírito estava esmagado.
Tive
a chance de acabar com ela.
Eu
podia ter magoado ela.
Não
magoei.
Não
era consolo.
Durante
o trabalho, muitas vezes precisei me acalmar, e era uma luta enorme.
Era como se cada passo quisesse me prejudicar. As bolhas nas minhas
mãos começaram a abrir, e o sentimento continuava a brotar dos meus
olhos. Comecei a farejar o ar para encher meus pulmões, e, quando o
dia acabou, fiz um esforço para sair da parte de baixo da casa e
fiquei parado ali, esperando. Realmente queria me jogar no chão, mas
me mantive de pé.
Me
sentia ansioso, sujo, doente, só por ser eu. Qual era o problema
comigo? Me sentia como o cachorro que tem raiva no livro que estava
lendo para a escola, O sol é para todos. O cachorro manca e baba
pela estrada, e o pai, Atticus, ele surpreende o filho ao atirar no
animal.
Estou
caminhando sobre uma cerca que parece se estender por uma eternidade.
No entanto, por alguma razão, sei que ela vai parar em algum ponto.
Sei que vai durar o tempo da minha vida.
— Continue
andando — digo para mim mesmo. Meus braços estão esticados para
manter o equilíbrio.
De
cada lado, tem ar e chão, tentando me forçar a pular para eles.
Pra
que lado eu pulo? É de manhã, muito, muito cedo. É aquela hora em
que ainda está escuro, mas você sabe que vai amanhecer. O azul
escorre pelo preto. As estrelas estão morrendo.
A
cerca.
A
cerca, é de pedra, às vezes, é de madeira, e, às vezes, é de
arame farpado.
Caminho
nela e, ainda assim, sou tentado pelos lados que a acompanham.
— Pula.
— Ouço cada lado cochichar. — Pula aqui. Distância.
Lá
fora, em algum lugar, ouço cães latindo, embora as vozes deles
pareçam humanas. Latem, e, quando olho à minha volta, não posso
vê-las. Posso apenas ouvir o latido que forma o público da minha
jornada ao longo da cerca.
Violeta
no céu.
Pernas
pinicando.
Arrepios
no lado direito.
Pensamentos
em choque.
Passos.
Sozinho.
Dou
um após o outro.
Agora,
arame farpado.
Onde
pulo.
A
quem ouvir? Sol amarelo, céu avermelhado.
Primeira
parte do sol. Franzindo a testa.
Última
parte do sol. Um sorriso.
Dia
escuro.
Ideias
cobrem o céu.
Ideias
são o céu.
Pés
na cerca.
Um
lado da cerca é vitória...
O...
outro lado, derrota.
Caminho.
Sigo,
caminhando.
Decidindo.
O
suor domina.
Desce
sobre mim, controlado, e escorre no meu rosto.
Vitória,
de um lado.
Derrota,
do outro.
As
nuvens são incertas.
Palpitam
no céu como rufos de tambor, como pulsação.
Tomo
a decisão...
Pulo.
Alto.
Alto.
O
vento me pega, e, lá no alto, sei que me fará descer do lado da
cerca que ele quiser.
Não
importa onde desça: logo depois, sei que terá que voltar a escalar
e continuar andando, mas, por enquanto, ainda estou no ar.
Markus Zusak, in O Azarão
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