sábado, 24 de fevereiro de 2024

Do Amor e Outros Demônios | Capítulo Dois


Nunca se soube como o marquês chegou a um tal estado de apatia, nem por que manteve um casamento tão malsucedido quando tinha a vida preparada para uma viuvez tranquila. Teria podido ser o que quisesse, graças ao poder desmesurado do primeiro marquês, seu pai, cavaleiro da Ordem de Santiago, negreiro de forca e faca, mestre-de-campo sem coração, a quem el-rei seu senhor não poupou honras e prebendas, nem puniu injustiças.
Ygnacio, o herdeiro único, não dava sinais de nada. Cresceu com indícios inequívocos de atraso mental, foi analfabeto até a idade adulta, e não gostava de ninguém. O primeiro sintoma de vida que manifestou aos vinte anos foi se apaixonar e querer casar com uma das reclusas da Divina Pastora, cujos cantos e gritos arrulharam sua infância. Chamava-se Dulce Olivia. Era filha única numa família de seleiros de reis, e tivera de aprender a arte de fazer arreios de montaria para que não se extinguisse com ela uma tradição de quase dois séculos. A essa rara intromissão num ofício de homens se atribuiu o ter ela perdido o juízo, e de tão triste modo que deu trabalho ensiná-la a não comer suas próprias misérias. Afora isso, teria sido excelente partido para um marquês crioulo de tão parcas luzes.
Dulce Olivia tinha uma inteligência viva e um bom caráter, de sorte que foi difícil descobrir que estava louca. Logo à primeira vez que a viu, o jovem Ygnacio a distinguiu no tumulto do terraço, e nesse mesmo dia se entenderam por sinais. Exímia no corte, ela lhe mandava mensagens em gaivotas de papel. Ele aprendeu a ler e escrever para corresponder-se com ela, e assim principiou uma paixão autêntica que ninguém quis entender. Escandalizado, o primeiro marquês determinou ao filho que fizesse um desmentido público.
Não só é verdade — replicou Ygnacio —, como tenho licença dela para pedi-la em casamento. — E ante o argumento da loucura, replicou com o seu: — Nenhum louco é louco para quem aceita as razões dele.
O pai o desterrou para suas fazendas com um mandado de dono e senhor que ele não se dignou utilizar Foi uma morte em vida. Ygnacio tinha pavor de animais, menos das galinhas. Entretanto, na fazenda observou de perto uma galinha, viva, imaginou-a aumentada até o tamanho de uma vaca, e descobriu que era um monstro muito mais aterrorizante que qualquer outro da terra ou da água. Suava frio no escuro e acordava sufocado pela madrugada com o silêncio fantasmal dos pastos. O mastim de presa que vigiava sem pestanejar diante do seu quarto não o inquietava mais que os outros perigos. Dizia: "Vivo espantado de estar vivo". No desterro, adquiriu o ar lúgubre, a catadura fechada, a índole contemplativa, as maneiras lerdas, a fala arrastada e uma vocação mística que parecia condená-lo a uma cela de clausura.
Ao completar-se o primeiro ano de desterro, foi despertado por um fragor como o de rios na enchente, e acontecia que os animais da fazenda estavam abandonando os seus dormitórios e atravessando os campos em silêncio absoluto sob a lua cheia. Derrubavam sem ruído tudo quanto lhes impedisse a passagem em linha reta através de pastos e canaviais, correntezas e brejos. Na frente iam os rebanhos de gado maior e as cavalgaduras de carga e de passeio, e atrás os porcos, as ovelhas, as aves de viveiro, numa fila sinistra que desapareceu na noite. Até as aves de vôo largo e mesmo as pombas foram caminhando. Só o mastim de presa permaneceu no seu posto de vigia diante do quarto do amo. Esse foi o começo da amizade quase humana que o marquês dedicou àquele e aos muitos outros mastins que se sucederam na casa.
Esmagado pelo terror na herdade deserta, o jovem Ygnacio renunciou ao seu amor e submeteu-se aos desígnios paternos. Não satisfeito com o sacrifício do amor, o pai lhe impôs em cláusula testamentária casar-se com a herdeira de um grande de Espanha. Assim foi que ele desposou numa boda de arromba dona Olalla de Mendoza, bela mulher de grandes e variados talentos, a quem manteve virgem para não lhe conceder sequer a graça de um filho. No mais, continuou vivendo como sempre vivera desde nascer: um solteiro inútil.
Dona Olalla de Mendoza o introduziu na sociedade. Iam à missa maior, mais para se mostrarem do que por devoção, ela com vasquinhas de muitas pregas e mantos luxuosos, e a touca de renda engomada das brancas de Castela, com um séquito de escravas vestidas de seda e cobertas de ouro. Em vez das chinelas de andar em casa que usavam nas igrejas até as senhoras mais empertigadas, calçava botinas altas de cordovão com enfeites de pérolas. Ao contrário de outros principais que usavam perucas anacrônicas e botões de esmeralda, o marquês vestia roupas de algodão e barrete branco. Entretanto, comparecia por obrigação aos atos públicos, porque nunca pôde vencer o horror à vida social.
Dona Olalla tinha sido aluna de Scarlatti Domenico em Segóvia e obtivera com louvor a licença para ensinar música e canto em escolas e conventos. De lá chegou com um clavicórdio, em peças soltas que ela própria armou e diversos instrumentos de corda que tocava e ensinava a tocar com grande virtuosidade. Formou um conjunto de noviças que santificou as tardes da casa com as novidades da Itália, França e Espanha, e do qual se chegou a dizer que era inspirado pela lírica do Espírito Santo.
O marquês era uma negação para a música. Dizia-se, à maneira francesa, que tinha mãos de artista e ouvido de artilheiro. Mas desde o dia em que os instrumentos foram desencaixotados, ele atentou na tiorba italiana, pela raridade de seu cravelhame duplo, o tamanho do seu diapasão, o número de suas cordas e o seu timbre nítido. Dona Olalla esforçou-se para que ele tocasse tão bem quanto ela. Passavam as manhãs ensaiando exercícios debaixo das árvores do pomar, ela com paciência e amor, ele com uma persistência de canteiro, até que o madrigal esquivo se lhes entregou sem dor.
A música melhorou tanto a harmonia conjugal que dona Olalla se atreveu a dar o passo que estava faltando. Numa noite de tempestade, fingindo um medo que não sentia, foi até o quarto do marido intacto.
Sou dona da metade desta cama — disse —, e é por ela que venho.
Ele não se deu por achado. Certa de convencê-lo pela razão ou pela força, ela não desanimou. A vida não lhes deu tempo. Num dia 9 de novembro estavam tocando em duo debaixo das laranjeiras, onde o ar era puro e o céu alto, e sem nuvens, quando um relâmpago os cegou, um estampido sísmico os fez estremecer e dona Olalla caiu fulminada pela centelha.
A cidade estupefata interpretou a tragédia como a deflagração da cólera divina por alguma falta inconfessável. O marquês encomendou um enterro de rainha, no qual se mostrou pela primeira vez com os tafetás negros e a cor macilenta que havia de carregar consigo para sempre. Ao voltar do cemitério, foi surpreendido por uma nevada de gaivotas de papel sobre as laranjeiras. Apanhou uma ao acaso e, desfazendo-a, leu: Esse raio era meu.
Antes mesmo de terminar a novena, doou à igreja os bens materiais que tinham sustentado a grandeza do morgadio: uma fazenda de gado em Mompox e outra em Ayapel, e dois mil hectares em Mahates, a apenas duas léguas dali, mais várias tropas de cavalos de carga e de montaria, uma fazenda de lavoura e o melhor trapiche da costa caribenha.
Entretanto, a lenda de sua fortuna se baseava num latifúndio imenso e ocioso, cujos limites imaginários se perdiam na memória mais além dos pântanos de La Guaripa e nas planícies de La Pureza até os manguezais de Urabá. O único bem que conservou foi a mansão senhorial com o pátio da criadagem reduzido ao mínimo, e o trapiche de Mahates. A Dominga de Adviento entregou o governo da casa. O velho Neptuno manteve a dignidade de cocheiro que lhe fora conferida pelo primeiro marquês e ficou incumbido de zelar pelo pouco que restava da cavalariça doméstica.
Pela primeira vez sozinho na tenebrosa mansão de seus antepassados, mal conseguia dormir no escuro, pelo medo congênito dos nobres crioulos de ser assassinado pelos escravos durante o sono. Acordava de repente, sem saber se os olhos febris que assomavam nas clarabóias eram deste mundo ou do outro. Ia na ponta dos pés até a porta, abria-a de súbito e surpreendia um negro a espiá-lo pela fechadura.
Sentia-os deslizando com passos de tigre pelos corredores, nus e besuntados de gordura de coco para não serem agarrados. Aturdido por tantos medos juntos, ordenou que as luzes ficassem acesas até o amanhecer, expulsou os escravos que pouco a pouco se apoderavam dos espaços vazios e trouxe para casa os primeiros mastins amestrados em artes de guerra.
O portão foi fechado. Deu-se fim aos móveis franceses cujos veludos empestavam o ar pela umidade, venderam-se os gobelinos e as porcelanas e as obras-primas de relojoaria e armaram-se as redes de bardana para aguentar o calor nas alcovas desmanteladas. O marquês não tornou a ser visto em missas e retiros, nem carregou o pálio do Santíssimo nas procissões, nem guardou dias santos ou respeitou quaresmas, embora continuasse pontual no pagamento dos tributos à Igreja. Refugiou-se na rede, às vezes no dormitório por causa das modorras de agosto e quase sempre debaixo das laranjeiras para a sesta. As loucas lhe atiravam restos de comida e gritavam obscenidades carinhosas, mas quando o governo lhe ofereceu o favor de mudar o manicômio, ele o rejeitou, por gratidão a elas.
Vencida pelo pouco-caso do seu pretendido, Dulce Olivia se consolou com a nostalgia do que não acontecera. Sempre que podia, escapava da Divina Pastora pelas brechas na cerca do pomar. Amansou e fez amizade com os mastins de presa, cevando-os com comedorias, e dedicava suas horas de sono a cuidar da casa que nunca teve, a varrê-la com vassouras de alfavaca para dar sorte e a pendurar réstias de alhos nos quartos para espantar os mosquitos. Dominga de Adviento, cuja mão direita não deixava nada ao acaso, morreu sem descobrir por que os corredores amanheciam mais limpos do que anoiteciam, e as coisas que ela arrumava de um jeito amanheciam de outro. Antes de passar um ano de viúvo, o marquês surpreendeu pela primeira vez Dulce Olivia esfregando os trens de cozinha que achava mal lavados pelas escravas.
Não pensei que te atrevesses a tanto — disse.
É porque continuas sendo o pobre-diabo de sempre — replicou ela.
Assim se reatou uma amizade proibida que pelo menos uma vez pareceu amor. Falaram até o amanhecer, sem esperança nem amargura, como um velho casal condenado à rotina. Julgavam ser felizes, e talvez o fossem, até que um dos dois dizia uma palavra demais, ou dava um passo de menos, e a noite apodrecia numa briga de vândalos que desmoralizava os mastins. Tudo então voltava ao princípio, e Dulce Olivia desaparecia da casa por longo tempo.
O marquês confessou-lhe que seu desprezo pelas fortunas terrestres e as mudanças no seu modo de ser não eram fruto da devoção, mas do pavor causado pela perda súbita da fé, ao ver o corpo da esposa carbonizado pelo raio. Dulce Olivia, se ofereceu para consolá-lo.
Prometeu ser sua escrava submissa tanto na cozinha como na cama. Ele não se rendeu.
Nunca mais me casarei -jurou.
Dali a menos de um ano, no entanto, casou-se às escondidas com Bernarda Cabrera, filha de um, antigo capataz de seu pai que fizera fortuna no comércio de artigos ultramarinos. Tinham-se conhecido quando o pai a encarregou de levar à casa os arenques em salmoura e as azeitonas pretas que eram o fraco de dona Olalla, e quando esta morreu continuou levando-as para o marquês. Uma tarde em que Bernarda o encontrou na rede do pomar, leu o destino escrito na palma de sua mão esquerda. O marquês se impressionou tanto com os seus acertos que continuou chamando-a na hora da sesta, mesmo sem nada para comprar, mas passaram-se dois meses sem que tomasse qualquer iniciativa. Tomou-a ela em seu lugar. Montou-o de assalto na rede e o amordaçou com as fraldas do camisolão que ele vestia, até deixá-lo exausto. Então o fez reviver com um ardor e uma sabedoria que ele nunca imaginara nos prazeres insípidos de seus amores solitários, e o despojou sem glória de sua virgindade. Ele estava com cinquenta e dois anos, e ela com vinte e três, mas a diferença de idade era a menos perniciosa.
Continuaram fazendo amor na sesta, depressa e mal, à sombra evangélica das laranjeiras. Dos terraços, as loucas os estimulavam com cantigas frascárias e celebravam seus triunfos com aplausos de estádio. Antes que o marquês tomasse consciência dos riscos que o espreitavam, Bernarda o tirou da pasmaceira com a novidade de que estava grávida de dois meses. Fez-lhe ver que não era negra, mas filha de índio ladino com branca de Castela, de modo que a única agulha para cerzir a honra era o casamento formal. Ele não se manifestou até que o pai dela bateu à porta na hora da sesta com um arcabuz arcaico a tiracolo. Era de fala vagarosa e modos suaves, e entregou a arma ao marquês sem olhá-lo de frente.
Sabe o que é isso, senhor marquês? -perguntou.
O marquês não sabia o que fazer com a arma nas mãos.
Até onde alcança o meu entendimento, acho que é um arcabuz — disse. E indagou, deveras intrigado: — Para que o usa? — Para me defender dos piratas, senhor — disse o índio, ainda sem o encarar. — Agora o trago para que o senhor tenha a bondade de me matar antes que eu o mate.
Fitou-o na cara. Tinha uns olhos tristes e miúdos mas o marquês entendeu o que não lhe diziam. Devolveu o arcabuz e seguiu na frente para celebrarem o acordo. Dois dias depois, o vigário de uma igreja próxima oficiou a boda, presentes os pais dela e os padrinhos de ambos. Quando terminaram, Sagunta apareceu não se sabe de onde e coroou os recém-casados com as grinaldas da felicidade.
Numa manhã de chuvas tardias, sob o signo de Sagitário, nasceu de sete meses, e mal, Sierva María de Todos los Ángeles. Parecia uma rãzinha desbotada, com o cordão umbilical enrolado no pescoço, quase a estrangulá-la.
É mulher — disse a parteira. — Mas não vai viver.
Foi então que Dominga de Adviento prometeu a seus santos que se lhe fosse concedida a graça de viver não se cortaria o cabelo da menina até a noite do casamento. Mal acabava de fazer a promessa, a criança começou a chorar. Dominga de Adviento, triunfante, exclamou: — Será santa! O marquês, que só a viu depois de lavada e vestida, foi menos vidente.
Será puta — disse. — Se Deus lhe der vida e saúde.
Filha de nobre e plebeia, a menina teve uma infância de exposta. A mãe a odiou desde que lhe deu de mamar pela única vez e se negou a tê-la consigo com medo de matá-la. Dominga de Adviento a amamentou, batizou em Cristo e consagrou a Olokun, divindade ioruba de sexo incerto, cujo rosto se presume tão temível que só se deixa ver em sonhos, e sempre de máscara. Criada no pátio dos escravos, Sierva María aprendeu a dançar antes de falar, aprendeu três línguas africanas ao mesmo tempo, a beber sangue de galo em jejum e a esgueirar-se entre os cristãos sem ser vista nem pressentida, como um ser imaterial. Dominga de Adviento cercou-a de urna corte jubilosa de escravas negras, criadas mestiças, recadeiras índias, que lhe davam banho com águas propícias, a purificavam com verbena de Iemanjá e cuidavam como uma roseira a impetuosa cabeleira, que aos cinco anos lhe chegava à cintura. Pouco a pouco as escravas foram pendurando nela os colares de vários deuses, até o número de dezesseis.
[…]

Gabriel García Márquez, in Do Amor e Outros Demônios

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