sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Cadernos de Lanzarote | 3 de Junho de 1993

Universidade Nova. Os temas do costume: a história como ficção, a ficção como história, e ainda o tempo como um imenso ecrã onde todos os acontecimentos se vão inscrevendo, todas as imagens, todas as palavras, o homem de Auschwitz ao lado do homem de Cro-Magnon, Inácio de Loyola ao lado de Francisco de Assis, o negreiro ao lado do escravo, a sombra ao lado da substância, e, em lhe chegando o tempo, este que escreve ao lado do seu avô Jerónimo. Como também vai sendo costume, foi muito louvada a minha sinceridade, mas, creio que pela primeira vez, esta insistência e esta unanimidade fizeram-me pensar se realmente existirá isso a que damos o nome de sinceridade, se a sinceridade não será apenas a última das máscaras que usamos, e, justamente por última ser, aquela que afinal mais esconde.
Recital de Paco Ibanez. Enquanto o ouvia, dizia comigo mesmo: “Este homem parece-me bom, mas sê-lo-á, de facto?” Não é que a pergunta resultasse de uma atitude de desconfiança sistemática de que o Paco tivesse de ser, naquele momento, objecto inocente, mas por causa desta preocupação em que ando, de querer saber o que se encontra por trás dos actos que se veem e das palavras que se ouvem. O público aplaudiu o cantor e aplaudiu-se a si próprio: todos tínhamos sido, no nosso tempo, mais ou menos resistentes, restos de um passado carregado de esperança, os mesmos que fomos e, contudo, tão diferentes, cabeças brancas ou calvas no lugar das cabeleiras ao vento de antanho, como disse Pilar, rugas onde a pele havia sido lisa, dúvidas em vez de certezas. Porém, o que são estas coisas, durante duas horas, por obra duma voz que os anos corroeram mas a que não roubaram a expressão, por obra dumas poesias e dumas músicas, os sonhos pareceram tornar-se outra vez possíveis, como realidades, não como sonhos.

José Saramago, in Cadernos de Lanzarote

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