sábado, 10 de fevereiro de 2024

A última onda




Como era de se esperar em uma residência de meninos e rapazes, quando um de nós partia, quase não se falava sobre o assunto. Apenas acontecia.
Tommy sabia.
A mula, idem.
Clay passara a noite nas Cercanias outra vez e acordara domingo de manhã com a caixa ainda nas mãos.
Ele se sentou e releu a carta.
Pegou o isqueiro e o El Matador no quinto.

***

Ao chegar em casa, guardou na caixa o endereço remendado do Assassino, empurrou-a bem fundo debaixo da cama e foi fazer seus abdominais em silêncio, no carpete.
Lá pela metade, Tommy apareceu. Clay enxergava o irmão a cada vez que voltava ao chão. O pombo, Tetê, estava encarapitado no ombro do garoto, e uma leve brisa agitava os pôsteres de Henry, a maioria de músicos das antigas. Algumas atrizes, jovens e exuberantes.
Clay — chamou Tommy, surgindo em seu campo de visão. — Depois você me ajuda com os cascos dele?
Ele acabou o exercício e foi com o irmão para o quintal, onde encontraram Aquiles perto do varal. Clay se aproximou e estendeu ao bicho a palma da mão aberta com um torrão de açúcar, depois se abaixou e cutucou uma pata.
O primeiro casco subiu; limpo.
Depois o segundo.
Ao fim da limpeza, Tommy estava machucado, como sempre, mas não havia nada que Clay pudesse fazer. Mulas não mudam de opinião com muita facilidade.
Para animá-lo, Clay pegou mais dois cubinhos brancos de açúcar.
Estendeu um para Tommy.
A manhã transbordava no quintal.
Um pufe vazio e murcho estava largado no chão, uma bicicleta sem guidão jazia na grama e o varal permanecia ali, estático, parado ao sol.
Aurora chegou logo depois, saindo da casinha que tinham construído para Aquiles nos fundos da casa, indo até o varal e correndo em volta dele, enquanto o açúcar derretia na boca dos meninos.
Já quase no fim, Tommy soltou:
Quem é que vai me ajudar a fazer isso quando você for embora?
Então Clay fez algo que nem ele esperava:
Segurou Tommy pela camisa e o jogou no lombo de Aquiles, sem sela.
Merda!
Tommy levou um susto e tanto, mas na mesma hora se entregou ao momento e abraçou a mula, risonho.

***

Após o almoço, Clay estava prestes a sair de casa quando Henry o deteve.
Aonde você pensa que vai?
Uma breve pausa.
Ao cemitério. Talvez Bernborough.
Espera aí — pediu Henry, pegando as chaves. — Vou contigo.
Quando chegaram lá, pularam a cerca e caminharam por entre os túmulos. Eles procuraram eles acharam eles se agacharam eles se levantaram eles cruzaram os braços eles se voltaram para o sol vespertino; eles observaram os restos mortais das tulipas.
Nada de margaridas?
Esboçaram uma risada.
Ei, Clay.
Ambos estavam encurvados e tensos, e Clay se virou para o irmão; Henry estava cordial como sempre, mas de uma forma diferente, seu olhar vagando pelas estátuas.
A princípio, ele só disse:
Meu Deus. — Um longo silêncio. — Meu Deus, Clay. — E então tirou algo do bolso. — Toma.
De uma mão para outra:
Um belo maço de notas.
Leva. — Clay olhou mais de perto. — É seu, Clay. Sabe as apostas em Bernborough? Você não tem noção de quanto dinheiro ganhamos. E eu nunca te paguei.
Mas não, ali não tinha dinheiro só das apostas, era mais do que isso, um peso de papel feito de notas.
Henry...
Anda, pega.
Quando Clay segurou e apertou o bolo, ficou ainda mais chocado com o volume. Não era como o Zippo, mais pesado do que aparentava; aquilo pareceu afundar na mão dele.
Clay — disse Henry. — Ei, Clay — continuou, encarando o irmão bem no fundo dos olhos. — Por que você não faz que nem qualquer pessoa normal e compra a merda de um celular, hein? Que tal? Aí você avisa pra gente quando chegar lá.
E Clay, com um sorriso de desdém:
Não, Henry, não precisa.
Então tá, gasta até o último centavo naquela merda de ponte. — O mais matreiro dos sorrisos. — Só me traz o troco quando terminar.

***

Em Bernborough, Clay deu algumas voltas e, ao contornar o que restara da gaiola de proteção para lançamento de disco, teve uma bela surpresa — pois ali, na marca dos trezentos metros, estava Rory.
Clay parou, pousando as mãos nos quadríceps.
Rory o observava com seus olhos de sucata.
Clay não ergueu o olhar, mas sorriu.
Longe de estar com raiva ou sentindo-se traído, Rory gravitava em algum lugar entre a empolgação com a violência vindoura e uma compreensão perfeita da mente do irmão.
Tenho que admitir, garoto... Você tem coragem.
Clay ergueu o rosto, o corpo empertigado, mas a princípio manteve-se calado enquanto Rory prosseguia.
Você pode ficar fora três dias ou três anos... Mas sabe que o Matthew vai te matar, né? Quando você voltar.
Um aceno de cabeça.
Vai estar preparado para ele?
Não.
Quer se preparar?
Ele pensou a respeito
Ou talvez você nunca volte.
Clay espumou de raiva por dentro.
Eu vou voltar — disse ele, enfático. — Vou sentir falta dessas nossas conversas existenciais.
Rory sorriu.
Tá bom, mas olha... — Esfregou as mãos. — Quer treinar um pouco? Acha que eu pegava pesado aqui? O Matthew está em outra categoria.
Não precisa, Rory.
Você não vai aguentar nem quinze segundos.
Mas eu sei muito bem como apanhar.
Rory, um passo mais perto.
Disso eu sei, mas posso te mostrar, pelo menos, como durar um pouquinho mais.
Clay olhou para ele, bem para o pomo de adão.
Não se preocupe, agora é tarde demais.
Rory sabia melhor do que ninguém — Clay já estava pronto; tinha passado a vida inteira treinando para aquele momento, e eu podia matá-lo à vontade.
Clay simplesmente se recusava a morrer.

***

Quando ele voltou para casa, dinheiro na mão, eu estava assistindo ao primeiro Mad Max — pouco sombrio ou quer mais? Tommy estava comigo, mas começou a implorar para vermos outra coisa.
A gente não pode mesmo ver uma coisa que não seja dos anos 1980?
Já estamos vendo — respondi. — Esse filme é de 1979.
É disso que eu tô falando! Não vale nada dos anos 1980 ou de antes! A gente nem pensava em nascer nessa época! Então por que a gente não...
Você sabe por quê — cortei. Então vi a expressão no rosto dele, e o garoto estava prestes a chorar... — Ah, merda... Desculpa, Tommy, de verdade.
Mentiroso!
Ele tinha razão, eu não sentia muito coisa nenhuma; aquilo fazia parte de ser um Dunbar.
Quando Tommy saiu, Clay entrou. Já tinha guardado o dinheiro na caixa e se sentou no sofá.
Oi — disse, se virando para mim.
Não me dei ao trabalho de desviar o olhar da tela. Não queria papo.
Ainda tem o endereço?
Ele assentiu, e ficamos assistindo a Mad Max.
Anos 1980 de novo?
Nem começa.
Ficamos em silêncio até a parte em que o assustador líder da gangue fala: “E Cundalini quer a mão de volta!”, então olhei para meu irmão.
Ele tá falando sério, não tá? — comentei.
Clay sorriu, mas não reagiu.
Nós também estamos.

***

À noite, quando todo mundo já estava na cama, com a TV ligada no mudo, Clay olhou para Agamenon, o peixinho-dourado, que retribuiu o olhar com tranquilidade antes de dar mais uma cabeçada vigorosa no aquário.
Clay foi até a gaiola e, de supetão, pegou o pombo. Apertou-o entre as mãos, mas com delicadeza.
E aí, Tetê, beleza?
O pássaro balançou um pouco a cabeça, e, pela plumagem, Clay sentiu sua respiração, as palpitações de seu coração.
Quietinho, garoto, quietinho...
Então, de repente, arrancou uma pena miúda do pescoço do pássaro; cinza, com uma borda esverdeada, singela, na palma da mão esquerda.
Pôs o pássaro de volta na gaiola.
O pombo ficou olhando para ele com um semblante sério, então se pôs a andar de um lado para outro.

***

Depois disso vieram as prateleiras e os jogos de tabuleiro:
Jogo da Vida, Palavras Cruzadas, Lig 4.
Logo abaixo estava o que ele queria.
Clay abriu o jogo e ficou momentaneamente distraído pelo filme na TV. Parecia bom — preto e branco, uma moça discutindo com um homem em uma lanchonete —, mas logo se voltou aos tesouros do Monopoly. Mexeu no dado e nos hotéis até encontrar a bolsinha que estava procurando e, pouco depois, entre seus dedos, estava o ferro de passar.
Clay, o sorridente, sorriu.

***

Perto da meia-noite, foi mais fácil do que poderia ter sido; o quintal estava livre de merda de cachorro e merda de mula, cortesia de Tommy, bendito seja.
Clay parou diante do varal, os pregadores um pouco acima dele em fileiras de cores sortidas. Pegou um meio desbotado, mas que um dia já fora de um azul bem vivo.

***

Então ele se ajoelhou perto da haste.
É claro que Aurora apareceu, e Aquiles estava de guarda, com cascos e patas ao lado do garoto. A crina, apesar de escovada, estava cheia de nós — e Clay estendeu o braço e tocou de leve na pata da mula. Tudo dentro dele parecia imenso.
Em seguida foi a vez de Aurora; bem devagar, ele segurou uma de suas patas preta e branca:
O dourado nos olhos dela, um adeus para ele.
Ele amava aquele olhar canino de esguelha.
Então saiu pelos fundos e foi até as Cercanias.

***

E o resto é história. Ele nem ficou muito tempo lá; já havia partido, portanto nem chegou a retirar o plástico. Não, tudo que fez foi se despedir e prometer que voltaria.
De volta à casa, no quarto que dividia com Henry, olhou no fundo da caixa; o pregador era o acréscimo final. No escuro, observou os demais objetos, da pena ao ferro, o dinheiro, o pregador e o endereço remendado do Assassino. E é claro, o isqueiro de metal, com a inscrição dela para ele — El Matador no quinto.
Em vez de dormir, ele acendeu a luminária, leu seus livros e se deixou carregar pelas horas.
Já passava um pouco das três e meia, então ele sabia que Carey logo sairia de casa:
Clay se levantou, guardou os livros na bolsa, sempre com o isqueiro na mão. No corredor, tateou outra vez as palavras gravadas no metal.
Abriu a porta sem fazer barulho.
Deteve-se no corrimão da varanda.
Muitas eras atrás, ele estivera lá comigo.
O ultimato na porta da frente.
Logo surgiu Carey Novac, mochila nas costas e bicicleta ao lado.
Primeiro ele viu uma roda: os raios.
Depois a garota.
Seu cabelo estava solto, seus passos eram ligeiros.
Estava de jeans. A camisa de flanela de sempre.
A primeira coisa que ela fez foi olhar para o outro lado da rua; ao vê-lo, largou a bicicleta no chão, que ficou ali, apoiada no pedal, a roda de trás ainda girando, enquanto a menina caminhava devagar na direção dele, até parar bem no meio da rua.
Oi — disse ela. — Gostou?
Falou baixinho, mas pareceu um grito.
Um radiante ato de rebeldia.
A quietude da rua Archer antes do amanhecer.
Quanto a Clay, naquele momento ele pensou em várias coisas que queria dizer a ela, que queria que ela soubesse, mas a única coisa que saiu de sua cabeça foi “El Matador”.
Mesmo a distância, dava para ver aqueles dentes não-exatamente-brancos e não-exatamente-retos, o sorriso que desvelava a rua. Ela ergueu a mão, e seu rosto trazia algo inédito para ele — faltavam palavras à garota.
Quando ela foi embora, caminhou e o observou, então o observou por mais um instante.
Tchau, Clay.
Foi só quando imaginou que ela já estaria na avenida Poseidon que ele olhou outra vez para a mão, para o isqueiro. De maneira calma e deliberada, ele o abriu, e a chama brotou no mesmo instante.

***

E foi assim que foi.
No escuro, ele apareceu para ver cada um de nós — eu, estirado na cama, passando por Henry e seu sorriso adormecido e chegando a Tommy e ao absurdo que era Rory. Num ato final de bondade (para ambos), tirou Heitor do peito de Rory e o carregou no ombro como se fosse mais uma bagagem. Na varanda, colocou o gato tigrado no chão, e o bicho ronronava, mas também sabia que Clay estava indo embora.
E então?
Primeiro foi a cidade, depois a mula, e agora era o gato quem monopolizava a conversa.
Ou talvez não.
Tchau, Heitor.
Mas ele não partiu, ainda não.
Não, durante um longo tempo, pelo menos alguns minutos, ele esperou a alvorada tomar a rua, dourada e gloriosa, e, quando enfim chegou, ela escalou os telhados da rua Archer carregando consigo a maré do passado:
Lá fora, em algum lugar, havia uma rainha dos erros e uma distante estátua de Stálin.
A Garota do Aniversário arrastando um piano.
Um coração colorido em meio ao cinza, às casas de papel.
Tudo isso avançava cidade adentro, tomando as Cercanias e Bernborough. Foi ganhando força pelas ruas, e, quando Clay finalmente partiu, o lugar estava inundado de luz e maré. Cobriu primeiro seus pés, depois os tornozelos, e, quando ele chegou à esquina, a água batia na cintura.
Clay olhou para trás uma última vez antes de mergulhar — para dentro e para fora — na direção de uma ponte, que atravessaria o passado e o levaria a um pai.
E assim ele mergulhou nas águas tingidas de ouro.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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