quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Taquicardia a dois
Estava
minha amiga falando comigo ao telefone. Eis senão quando lhe entra
pela sala adentro um passarinho. Minha amiga reconheceu: era um
sabiá. A empregada se assustou, minha amiga ficou surpresa. Era
preciso que ele achasse o caminho da janela para ir embora e escapar
da prisão da sala. Depois de esvoaçar muito, pousou num quadro
acima da cabeça de minha amiga, que continuou o telefonema, porém
mais atenta ao sabiá do que às palavras.
Foi
quando ela sentiu uma coisa pelas costas nuas – era verão, o
vestido não tinha costas: o sabiá tinha-se aninhado nela e parecia
estar muito bem. É preciso dizer que minha amiga tem uma voz muito
suave. Ela sabia que qualquer movimento súbito seu, e o sabiá se
assustaria quase mortalmente. Desligou o telefone.
Também
é preciso dizer que minha amiga tem mão e jeito leves, é capaz de
segurar a corola de uma flor sem fazê-la murchar. Foi com seu jeito
leve que pegou no sabiá, que se deixou pegar.
E
lá ficou de sabiá na mão. O coraçãozinho do sabiá batia em
louca taquicardia. E o pior é que minha amiga estava toda
taquicárdica. Ali, pois, ficaram os dois tremendo por dentro: a
amiga sentindo o próprio coração palpitar depressa e na mão
sentindo o bater apressadinho e desordenado do sabiá.
Então
ela se levantou devagar para não assustar o que estava vivo na sua
mão. Chegou junto da janela. O sabiá compreendeu. Minha amiga
espalmou a mão, onde o sabiá permaneceu por uns instantes. E de
súbito deu uma voada lindíssima de tanta liberdade.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
As rãs | 5.
Marcamos
a data do meu casamento com Leoazinha.
Tudo
avançava sob o gerenciamento de minha tia. Eu me sentia como um
tronco podre flutuando na água, a cada empurrão, eu dava um pinote
para a frente.
Quando
fizemos o registro de casamento na comuna, foi a segunda vez que
fiquei a sós com Leoazinha.
Nosso
primeiro encontro foi no dormitório que ela dividia com minha tia.
Também era numa manhã de sábado. Minha tia nos empurrou para
dentro do quarto, fechou a porta e saiu. Havia duas camas. Entre
elas, uma escrivaninha de três gavetas. Na escrivaninha, uma pilha
de jornais empoeirados e alguns livros de ginecologia. Do lado de
fora da janela, crescia uma dúzia de girassóis bem robustos.
Estavam em florada, tinham abelhas coletando seu pólen. Ela me
serviu um copo de água e sentou-se na beirada de sua cama. Eu me
sentei na beirada da cama da minha tia. O quarto cheirava a sabonete.
No suporte do lavatório, havia uma bacia da marca Hong Deng, com
água pela metade e bolhas de sabão. A cama da minha tia estava uma
bagunça, o cobertor sem dobrar.
“Minha
tia só pensa em trabalho, não é?”
“Pois
é.”
“Parece
que estou sonhando.”
“Eu
também.”
“Sabe
o que Wang Fígado fez? Ele escreveu mais de quinhentas cartas para
você.”
“Sua
tia me contou.”
“Que
acha disso?”
“Não
acho nada.”
“É
meu segundo casamento e ainda tenho uma filha. Isso te incomoda?”
“Não.”
“Não
quer conversar com sua família?”
“Não
tenho família.”
… Levei-a
de bicicleta à sede da comuna. Forraram a estrada com um cascalho
feito de cacos de tijolos e telhas, a bicicleta sacolejava, era
difícil manobrar. Ela ia na garupa, o ombro apoiado em minhas
costas. Sentia o seu peso. Algumas pessoas são fáceis de levar na
garupa, outras não. Wang Renmei era fácil de levar e Leoazinha era
difícil. Eu fazia força para pedalar. Arrebentou a corrente. Senti
um aperto no coração: mau sinal! Será que também não vou
envelhecer ao lado dela? A corrente quebrada caiu no chão como uma
cobra morta. Com a corrente na mão, fiquei olhando desamparado para
os quatro cantos. Nos dois lados da estrada, eram campos de milho.
Algumas mulheres estavam pulverizando inseticida. O pulverizador
zunia como uma sirene antiaérea, vuum-vuum. As mulheres se cobriam
com um plástico, usavam máscara e um lenço na cabeça. Era um
trabalho brutal, mas ganhava um toque poético com a névoa que subia
do milharal esverdeado — parecia que estavam andando nas nuvens. Me
lembrei de Wang Renmei. Era muito arrojada, tinha até coragem de
pegar cobra. Segurava a cobra pela cauda, como eu fazia com a
corrente da bicicleta. Também trabalhou pulverizando inseticida.
Isso pouco depois de desmanchar o noivado com Xiao Lábio Inferior,
quando foi demitida da escola. Seu cabelo tinha um cheiro forte de
inseticida. Toda sorridente, ela dizia: “Não preciso lavar, assim
não pego piolhos, nem mosquito, nem mosca”. Quando lavava o
cabelo, eu ficava atrás dela, despejando água com um bule, e ela
ria de cabeça baixa. Perguntei do que estava rindo, e ela riu sem
parar até entornar a bacia. A lembrança de Wang Renmei me enchia de
culpa. Olhei para Leoazinha de canto de olho. Ela tinha escolhido
para essa ocasião uma blusa nova, xadrez, vermelha, de manga curta e
colarinho. Um relógio digital brilhava no seu pulso. Como era
rechonchuda! Devia ter passado creme de pérola ou algo do gênero,
dava para sentir o perfume. Seu rosto parecia estar com menos acne.
Ainda
faltava um quilômetro e meio para chegar à sede da comuna. Tivemos
de ir empurrando a bicicleta.
Na
entrada do abatedouro, encontramos Chen Nariz. Carregava a filha nas
costas.
Assim
que nos viu, Chen Nariz fechou a cara. Seu olhar me deixou
envergonhado. Ele deu meia-volta com a criança nas costas. Era óbvio
que não queria falar comigo.
“Chen
Nariz!”, o chamei mesmo assim.
“Opa,
pensei que fosse alguma celebridade!”, suas palavras pareciam
cobertas de espinhos. Lançou um olhar de ódio para Leoazinha.
“Libertaram
você?”
“Minha
filha está doente, com febre”, disse Nariz. “Eu nem queria ser
libertado, tinha o que comer e beber, era melhor ficar lá o resto da
vida.”
Preocupada,
Leoazinha aproximou-se, estendeu a mão para tocar a testa de Chen
Orelha.
Chen
Nariz virou o corpo para se afastar dela.
“Leve-a
depressa para tomar soro no hospital”, disse Leoazinha, “está
com pelo menos trinta e nove de febre.”
“E
aquilo lá é hospital?”, disse Chen Nariz com raiva. “É um
matadouro!”
“Sei
que nos odeia”, disse Leoazinha, “mas não tivemos outro jeito.”
“Como
não tiveram outro jeito?”, perguntou Nariz, “vocês têm todos
os jeitos.”
“Chen
Nariz”, eu disse, “a criança não tem culpa. Vamos, vou com
você.”
“Não,
obrigado”, desdenhou, “não quero atrapalhar seu momento de
felicidade.”
“Chen
Nariz… o que posso te dizer?”
“Não
precisa me dizer nada, ainda achava que você era um ser humano,
agora percebi que não é!”
“Diga
o que quiser, mas leve a criança já para o hospital”, eu disse,
enfiando algum dinheiro no bolso dele.
Chen
Nariz conseguiu livrar uma mão, tirou o dinheiro do bolso e jogou no
chão: “Seu dinheiro fede a sangue!”.
Foi
embora de cabeça erguida, carregando a menina nas costas.
Fiquei
ali atônito, vendo-o se afastar passo a passo. Me abaixei para pegar
o dinheiro do chão e enfiei-o de volta no bolso.
“Ele
tem uma antipatia profunda por vocês”, eu disse, olhando para
Leoazinha.
“Isso
é culpa dele mesmo”, respondeu ressentida, “e nossas amarguras,
quem é que ouve?”
Para
o registro de casamento era necessária, em tese, uma carta de
apresentação emitida pela minha unidade do Exército. Mas o
auxiliar de Assuntos Civis, Lu Mazi, disse todo sorridente: “Não
precisa mais, sua tia já tinha me avisado. Corre Corre, meu filho
também está servindo na sua unidade, se alistou no ano retrasado.
Ele é muito inteligente, aprende rápido, dê uma atenção para
ele, está bem?”.
Hesitei
por um instante quando ia deixar a impressão digital no livro de
registros. Porque me lembrei do momento em que estive ali com Wang
Renmei. Foi no mesmo livro de registros, na mesma sala, com o próprio
Lu Mazi. Na época, deixei a impressão do meu indicador, bem
vermelha, e Wang Renmei exclamou, surpresa: “Nossa, é uma
espiral!”. Lu Mazi olhou para mim e para Leoazinha e disse com um
sorriso forçado: “Wan Perna, como você tem sorte no amor,
casou-se com a moça mais bonita da nossa comuna!”. Apontando para
o livro de registros, ele continuou: “Deixe logo sua impressão
digital, por que a hesitação?”.
Soou
como ironia — e era ironia mesmo. Dane-se, seja o que for. Pronto,
pressiono o dedo sem titubear! Pensei comigo que muitas coisas em
nossa vida já estavam predeterminadas. É melhor levar o barco
conforme a corrente do que remar contra ela. Além do mais, numa
situação como essa, se eu não deixasse minha impressão digital
acabaria com a reputação de Leoazinha. Eu já havia trazido azar
para uma mulher, não podia prejudicar uma segunda.
Mo Yan, in As rãs
Grande Gedeão
Gouvêia.
Houve algum gigante desse nome? Mostrado outro mourejador — no em
que ainda não vige a estória — físico, muscular; incogitante. Os
Gouvêias em geral por lá são assim. Louvavam-no homem mui
reformado e exemplar, prontificado de caráter, na pobreza sem
projeto.
Tinha:
dois alqueires, o que era nem sítio, só uma “situação”;
e que sem matatempo ele a eito lavrava, os todos sóis, ano a ano,
pelo sustento seu, da mulher, dos filhos. Excepto que em domingos e
festas improcedia, esbarrava, submisso à rústica pasmaceira.
Idiotava. Imitava. Ia à missa.
Entrequanto
hospedou o lugar a santa-missão — três padres rubros robustos,
goelas traquejadas e escolhidas, entrementes; capaz cada um de
atroado pregar o dia inteiro.
A
igreja cheia, o povo, via-se ali outrossim Gedeão, no acotovelo e
abafo, se lhe dava.
Se
disse, depois, que então já andava ele desengrivado. Diz-se que de
manhas meras, quão e tão. Se diz aliás que a gente troca de
sombra, por volta dos quarenta, quando alma e corpo revezam o jeito
de se compenetrar. E quem vai saber e dizer? Em Gedeão
desprestava-se atenção.
Mas
o redentorista bradava a fé, despejada, glosava os fortíssimos do
Evangelho. Informou: — “Os passarinhos! — não colhem, nem
empaiolam, nem plantam, pois é... Deus cuida deles.” Em fato,
estrangeiro, marretou: — “Vocês sendo não sendo mais
valentes que os pássaros?!”
Deu
em Gedeão — o que ouviu em cochilo — por isso mesmo repalavras,
com ponta, o para se fechar na ideia; falado estava.
Solerte
semelhante, o estilo dos pássaros... sem semeio, ceifa, atulho? Isso
incumbiu-o. Ipsisverbal, a indicatura. Sacudiu-se; qualquer luz é
sempre nova. Se benzeu e saiu, já de espírito pleno: reunida a
família, endireitou-a para casa. Sabiá, o joão-tolo, alma-de-gato,
gavião... em todo o volume de sua cabeça. Desagachou-se.
Sentou-se
com totalidade. Fez declarado o voto, como quem faz bodoque ou um
dique: — “Vou trabalhar mais não.” Sério como um
cavalo de circo, cruzou pernas e braços. Escutavam-no consternados.
O
que, raro, foi. Gedeão, em encasqueto, alforriara-se do braçal.
Impostoria. Ou o empaque: por rijas fadigas, duro jugo. Era loucura e
tanta! Invalidava-se — o que importava miséria. Falaram do caso;
havendo o de que se falar. Já vinham lá os amigos-de-jó.
E
escabrearam-se: vosso Gedeão, no não é que não, sem correr-se nem
recear, moucou-se. Mas a prumo, recorreto, cordial, para demonstrar a
quase nenhuma maluquez. Somava mor com só o fino e o todo. Deixou os
sapos na lagoa.
Tinha
de usar-se: o à-toa tornava mister a domingueira roupa, calçado, e
intatas maneiras — sem propósito nem alvo, como um bom espirro —
na utilidade definitiva da semana. Domingo de não se estragar.
Diverso de antes, em acômodo, temia menos fuxicar-se, sujar-se,
discordar das horas.
Irosa,
chorosa, punha-lhe a mulher o de-comer, lavava-lhe as camisas; brava
para os filhos, que o olhavam duplicado, quiçá com inveja. Fé é o
que abre no habitual da gente uma invenção, Gedeão, entre outros
alívios, o que abala a base. Teimava aceso, em si, tralalarava. O
à-toa havia de desempenhar-se. Ele bebendo? Não. Se todos fizessem
assim, eh? — “Não fazem.”
Queriam-lhe
os motivos, aventavam. Increpou-o mesmo o padre, iterativo, de contra
o jus e o fas: — “Quem põe e não tira, faz monte. Quem tira
e não põe, faz buraco...” Gedeão fingia coçar a cabeça,
como quando o pato anda de lado. Mal imaginava sem muitas vírgulas e
pontos, no argumento com fundamento: o céu, superedificante, de
Deus, que amarela o milho maduro. Ele e as aves.
Desfez
no padre depois, de confuto, pensou um sussurro: — “Missionário
é mestre deles...” — e aquele já longe andava. Era homem
entendido de si, sua noção abecedada, a ver verdades.
Nem
ia mofar, sem achar quê, no Afundado, em seu dois-alqueires, só a
rodar a visão fortuna. Visitava este universo e o arraial, onde
comprava fiado; viam-no feliz como o se alastrar da abobrinha nova,
forte como testa de touro preto.
Deu-lhes
de supor: que ali o plus e extra houvesse, seus silêncios parecendo
cheios de proveito. Descobrira acaso enterrada panela de dinheiro,
somente e provavelmente, pelo que, certífico, estudava o mandriar,
guardada ainda sua munificácia, jubiloso do achado. O segredo
circula, quando mais secreto? O grão respeito começava.
Vagava-lhe
tempo e o repouso mandava-o meditar — renovado o carretel de ideias
— de preguiçoso infatigável. Vigiava. Atento, a-certas, ao em
volta: ao que não se passava. Nisso o admiravam.
De
pura verdade, recuidasse em que os pássaros não voam de-todo no
faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que se remexem, pelos
ninhos, de alt’arte; pela moradia — o joão-de-barro? Decidiu uns
outros movimentos.
Vender
quis o Afundado. Tolheu-o a mulher e o inquinou: de malandrado dôido
e impróvido acordadamente, sonhando à fiú-za de nem-nada. Tocou-o
embora.
Gedeão
dispôs-se: — “Isso eu não embargo...” Emprestaram-lhe
cavalo magro, patas e cabeça, alazãozérrimo. Saía — concreto
como o chão de lá, sucinto em gume — a ter-se e dar-se.
Não
houve-que.
Logo
o cercaram. Propunham-lhe, de urgente repente, ágios, ócios,
negócios, questavam-no. O por exemplo. Aceitasse gerir, de riba, o
rumo de fazenda, das Jiboias, onde a casa-grande se retelhava?
Isso
o Gedeão meneava e mais — com fagulhas financeiras — ao curto
crédito e trato de seu gesto. Entrava a remudado, lúcido luzente,
visante. Tirou o chapéu de debaixo do braço.
E
— tome realidade! Vindo-lhe, com pouco, cifrão e caduceu, quantias
que tantas: seu dinheiro estava já em aritméticas. Reavultava,
prezado ante filhos e mulher — avoado — apotestado, sócio da
sábia vida. O tempo ajuntara mais gente em redor dele.
Agora
acabou-se o caso. De Gedeão, grande, conforme os produzidos fatos.
No estranhado louvor de desconhecidos, vizinhos e parentes,
festejando-se. Sendo que pasma-os ainda hoje — e fez-lhes crer que
a Terra é redonda. Alelúia.
Guimarães Rosa, in Tutameia
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024
Dos eruditos
Enquanto
eu dormia, uma ovelha comeu da coroa de hera em minha cabeça —
comeu e disse: “Zaratustra não é mais um douto”.
Falou
e foi-se embora, empertigada e orgulhosa. Uma criança me contou
isso.
Gosto
de deitar-me aqui onde as crianças brincam, junto ao muro arruinado,
entre cardos e papoulas-vermelhas.
Ainda
sou um homem douto para as crianças, e também para os cardos e
papoulas-vermelhas. São inocentes, mesmo em sua maldade.
Mas
para as ovelhas não o sou mais: assim quer meu destino — bendito
seja!
Pois
esta é a verdade: saí da casa dos doutos;80 e, além do mais, bati
a porta atrás de mim.
Por
tempo demais minha alma esteve sentada à sua mesa; não fui, como
eles, treinado para o conhecer como se treina para quebrar nozes.
Amo
a liberdade e o ar sobre a terra fresca; prefiro dormir sobre peles
de bois do que sobre seus títulos e dignidades.
Sou
demasiado aquecido e queimado por meus próprios pensamentos: muitas
vezes isso me tira o fôlego. Tenho de sair ao ar livre, longe de
todos os quartos empoeirados.
Mas
eles se acham friamente sentados na fria sombra: querem ser apenas
espectadores em tudo, e evitam sentar-se ali onde o sol queima os
degraus.
Como
os que ficam parados na rua e olham boquiabertos para a gente que
passa: assim aguardam eles também, e olham boquiabertos para os
pensamentos que outros pensaram.
Se
alguém os agarra com as mãos, desprendem pó como sacos de farinha,
involuntariamente; mas quem adivinharia que o seu pó vem do trigo e
do amarelo deleite dos campos de verão?
Quando
se fazem de sábios, dão-me arrepios seus pequenos ditos e verdades:
sua sabedoria frequentemente exala um odor, como se proviesse do
pântano: e, em verdade, nela já ouvi também um sapo a coaxar!
Eles
são habilidosos, têm dedos espertos: que quer minha simplicidade
junto à sua diversidade? De fiar, tecer e atar entendem seus dedos:
assim produzem eles as meias do espírito!
Eles
são bons relógios: cuide-se apenas de lhes dar corda propriamente!
Então indicam a hora sem falhas, fazendo um modesto ruído.
Trabalham
como moinhos e como trituradores: basta lançar-lhes os cereais! —
eles bem sabem moer pequeno o grão e torná-lo em pó branco.
Eles
se observam atentamente e não têm confiança uns nos outros.
Inventivos nas pequenas astúcias, esperam por aqueles cujo saber tem
os pés mancos — esperam como aranhas.
Sempre
os vi prepararem veneno com cautela; e nisso sempre usavam luvas de
vidro nos dedos.
Também
sabem jogar com dados chumbados; e os vi jogando tão fervorosamente
que suavam.
Eles
me desconhecem, e eu a eles, e suas virtudes me ofendem ainda mais o
gosto do que suas falsidades e seus dados chumbados.
E,
quando eu morava com eles, morava acima deles. Por causa disso
zangaram-se comigo.
Eles
não querem saber de alguém a andar sobre suas cabeças; então
puseram madeira, terra e imundície entre mim e suas cabeças.
Assim
amorteceram o som de meus passos: e até agora os que pior me ouviram
foram os mais doutos.
Todos
os erros e falhas humanas puseram entre si próprios e mim: — o que
chamam de “duplo piso” em suas casas.
Apesar
disso, ando com meus pensamentos acima de suas cabeças; e, mesmo se
quisesse andar sobre minhas próprias falhas, ainda estaria acima
deles e de suas cabeças.
Pois
os homens não são iguais: assim fala a justiça. E aquilo que eu
quero não podem eles querer!
Assim
falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra
Cadernos de Lanzarote | 4 de Junho de 1993
Na
Feira aparece uma pessoa a comprar todos os meus livros. Põe-nos
todos diante de mim para que os autografe, os grossos e os finos, os
caros e os baratos, trinta e tal contos de papel, conforme vim a
saber depois, e o que me desconcerta é que o homem não é um
convertido recente ao “saramaguismo”, um adepto de fresca data, um
neófito disposto às mais loucas ousadias, pelo contrário, fala do
que de mim leu com à-vontade e discernimento. Resolvo-me a
perguntar-lhe a razão da ruinosa compra, e ele responde
simplesmente, com um sorriso onde aflorou uma rápida amargura:
“Tinha-os todos, mas ficaram na outra casa.” Compreendi. E depois
de ele se ir embora, ajoujado sob a carga, pus-me a pensar na
importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas…
De
duas, uma: ou eu sofro de mania de perseguição, ou de facto anda
uma matilha de sabujos a ladrar-me às canelas e a morder quando
pode. Estava, posto em sossego, na Feira, a assinar os meus livrinhos
quando se me chega o Armando Caldas que, passado um bocado, começa a
contar uma história. Que ele e o seu grupo de teatro — o Intervalo
— participaram na organização da homenagem ao Manuel Ferreira,
essa mesma para a qual, a pedido da Orlanda Amarílis, escrevi um
pequeno texto. Que, como tudo custa dinheiro, e cada vez mais, pediu
à Secretaria de Estado da Cultura um subsídio, cujo, milagre dos
milagres, foi concedido. Mil contos, melhor que nada. Crendo ser de
boa diplomacia, o Caldas lembrou-se de colocar uma cereja no bolo,
isto é, pedir também ao Santana Lopes uma declaração para ser
lida na homenagem, sem pensar que o dito Lopes poderia, por sua vez,
lembrar-se de lhe pedir a lista das pessoas que igualmente tinham
sido convidadas a escrever. Vinte e quatro horas depois de
comunicados os nomes — Maria Velho da Costa, António Alçada
Baptista, Urbano Tavares Rodrigues e o criado de Vocências —
recebia o desolado Caldas a notícia de que o subsídio tinha sido
cancelado. Causa? Não foi dita. Parece que mais tarde a Secretaria
de Estado quis emendar a mão, prometendo 300 contos, mas aí o
Armando Caldas encheu-se de brios e mandou-os passear. Com dinheiros
arranjados aqui e ali, a homenagem não deixaria de se fazer. E agora
a pergunta: o que foi que levou o Lopes a cancelar o subsídio e a
não escrever a declaração? Receio de chamar ao Manuel Ferreira o
escritor da Terra Nova, que também é ilha? Ou, como é mais
provável, nojo de misturar-se com os declarantes, de aparecer ao
lado de um deles? E qual, se é este o caso? Fátima? Não creio.
Alçada? Tão-pouco. Urbano? Duvido. Eu? Sendo o Lopes aquele bom
católico que conhecemos, o confessor deve saber…
Andava
há que tempos a dizer que o D. João II estava morto e ninguém me
queria crer. Agora não houve mais remédio que enterrá-lo, a ele e
ao cheiro que já deitava: o Judas admitiu, enfim, que a Televisão
não fará nada comigo. Como para mim não era novidade, fiquei calmo
como estava antes. E, no fundo, com uma enorme sensação de alívio.
José Saramago, in Cadernos de Lanzarote
Velha infância | Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Davi Moraes e Pedro Baby, 2003
A
carioca Marisa Monte (1967) e o baiano Carlinhos Brown surgiram –
junto com Cássia Eller, Ed Motta e Adriana Calcanhotto – como as
melhores novidades da MPB nos anos 1990. Originais, talentosos,
independentes e muito diferentes entre si, os dois se tornaram
parceiros com a belíssima “Segue o seco”, gravada por Marisa em
1994, um grande sucesso de público e de crítica.
Desde
o início triunfal de sua carreira, aos 20 anos, com o megassucesso
“Bem que se quis” (versão de Nelson Motta de “E pò che fà”,
do italiano Pino Daniele) e a extraordinária regravação de
“Comida”, dos Titãs, Marisa se aproximou de Arnaldo Antunes, que
foi seu primeiro parceiro quando ela começou sua carreira de autora
em seu segundo disco, com a canção “Beija eu” (1990) e seguiu
como seu principal parceiro, ao lado de Brown, até hoje.
O
paulistano Arnaldo Antunes surgiu como compositor e frontman
dos Titãs nos anos 1980 e dez anos depois era considerado o melhor
letrista de sua geração. Com o início de sua carreira solo em
1992, começou a compor com vários parceiros, e uma das mais
frequentes e de mais sucesso foi Marisa Monte, pela perfeita
sincronia que encontravam entre letra e música.
Em
2002, juntando suas diferentes origens, formações e estilos, a
carioca, o paulista e o baiano criaram os Tribalistas e produziram o
maior sucesso do ano no Brasil e um dos discos brasileiros de maior
sucesso na França, na Itália, em Portugal, na Espanha e na
Argentina em 2003, mesmo sem fazerem nenhuma apresentação pública
ou entrevista do grupo.
O
extraordinário sentido rítmico e popular de Brown se uniu à
musicalidade de Marisa, desenvolvida no jazz, no samba e na música
clássica, e à inteligência poética clássica e vanguardista de
Arnaldo para criar a melhor síntese da MPB do terceiro milênio com
os Tribalistas.
Entre
grandes sucessos do disco, como “Já sei namorar”, “Carnavália”,
“Um a um”, “O amor é feio”, o maior foi “Velha infância”.
Além dos três Tribalistas, foram coautores os guitarristas Davi
Moraes (filho de Moraes Moreira) e Pedro Baby (filho de Pepeu Gomes),
numa síntese de quatro décadas de música brasileira e como
expressão do espírito de brincadeira entre amigos que inspirou o
disco.
“E
a gente canta / E a gente dança / E a gente não se cansa / De ser
criança / A gente brinca / Na nossa velha infância.”
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
O espelho de vento-e-lua
Em
um ano, o sofrimento de Kia Yui se agravou. A imagem da inacessível
senhora Fênix consumia seus dias; os pesadelos e a insônia, as suas
noites.
Uma
tarde, um mendigo taoista pedia esmolas na rua e proclamava que podia
curar as doenças da alma. Kia Yui mandou chamá-lo. Disse-lhe o
mendigo: “Seu mal não sara com remédios. Tenho aqui algo que o
curará se seguir minhas indicações”. Tirou da manga um espelho
polido nas duas faces, com a seguinte inscrição: Precioso Espelho
de Vento-e-Lua.
Acrescentou
o mendigo: “Este espelho vem do Palácio da Fada do Terrível
Despertar e tem a virtude de curar os males causados pelos ventos
impuros. Evite, porém, olhar o verso. Amanhã voltarei para buscar o
espelho e para felicitá-lo por suas melhoras”. Não quis aceitar
as moedas que lhe foram oferecidas.
Kia
Yui olhou a frente do espelho, e aterrorizado atirou-o longe.
O
espelho refletia sua caveira. Amaldiçoou o mendigo e quis olhar o
verso do espelho. Lá do fundo, a senhora Fênix, esplendidamente
vestida, lhe fazia sinais. Kia Yui sentiu-se arrebatado, atravessou o
metal e realizou o ato de amor. Fênix acompanhou-o até a saída.
Quando
Kia Yui acordou, o espelho estava ao contrário e novamente lhe
mostrava a caveira. Esgotado pelas delícias do lado feliz, Kia Yui
não resistiu a tentação de olhá-lo uma vez mais. A senhora Fênix
lhe fazia sinais, e ele cruzou o metal novamente e novamente fizeram
amor. Isto ocorreu umas quantas vezes. Na última, dois homens o
prenderam quando saía e o acorrentaram. “Eu os seguirei”,
murmurou, “mas deixem-me levar o espelho”.
Foram
suas últimas palavras.
Encontraram-no
morto, sobre o lençol manchado.
Tsao Hsue-qin, Sonho do aposento vermelho, in Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges
Cálice que não se cala
Chico
é todo ele palavra.
Esse
o seu reino, a sua mátria,
a
razão de seu viver.
Frei
Betto
Antes
de mais nada, propomos que se ouça a canção “Cálice”, cuja
letra nos suscita interpretações e reflexões ao gosto e à
sensibilidade particulares. Trata-se de uma das mais célebres e
inesquecíveis “canções de protesto” de Chico Buarque de
Hollanda. De fato, é preciso ouvir a melodia, sentir cada frase,
cada estrofe, cada entrada do refrão, e deixar o corpo e a mente
inundarem-se com a energia sonora que nos envolve, a cada vez que os
acordes e a voz do intérprete nos alcançam e nos sensibilizam com
seu vigor poético e musical. Que se ouça, portanto, a música,
seguindo-se a letra.
Um
dos mais intelectualizados compositores e intérpretes da música
popular brasileira, Chico Buarque de Hollanda destaca-se, pela
intensidade de sua obra musical e literária, como um dos nomes de
alto nível criativo na segunda metade do século XX e na
contemporaneidade. Suas origens familiares possibilitaram-lhe uma
vasta formação literária de base, com leituras diversificadas,
tornando-o portador de uma sensibilidade criativa invulgar, um senso
de contextualização artística, social e histórica dos mais
lúcidos entre os artistas brasileiros contemporâneos. Tanto assim
que veio a se tornar também escritor, a partir da década de 1970,
ao lançar a novela pecuária Fazenda modelo,11 uma alegoria do país
submetido à ditadura. À novela se seguiriam romances de sucesso de
público e de crítica, que receberam alguns dos prêmios literários
mais importantes e foram adaptados para o cinema.
Chico
Buarque é um intelectual que dialoga de modo fértil e efetivo com
duas vertentes da cultura, tão próximas, mas às vezes distanciadas
na prática cotidiana, que são a música popular e a literatura. Na
música popular, sua carreira tem sido longa e muito produtiva, com a
conquista de diversos prêmios importantes. Na sua trajetória,
destacam-se as ruidosas participações nos célebres festivais de
música popular brasileira, da TV Record, nos anos 1960, ao lado de
futuros ícones da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, José
Carlos Capinan, Geraldo Vandré e outros.
O
compositor, intérprete e escritor foi um inimigo da ditadura militar
(1964-1985) que dominou a cena política do país, submetendo a
sociedade e os artistas e intelectuais em geral a uma censura odiosa
e tenaz, capaz de mutilar, destruir e vetar obras no campo do teatro,
da literatura e, em especial, da música popular, sobretudo a partir
de 1968, considerado o “ano que não terminou”.12 Buarque foi um
dos compositores mais censurados e perseguidos pelo regime de então,
chegando mesmo a adotar o pseudônimo de “Julinho da Adelaide”
para tentar escapar da fúria dos censores. Na primeira metade dos
anos 1970, foi intimado várias vezes a depor, em longos
interrogatórios, no Exército e na Polícia Federal.
Esse
enquadramento histórico, político e cultural levou alguns
estudiosos a classificarem as composições de Chico, aquelas de
conteúdo antiditadura, como canções de protesto, que seriam uma
vertente marcada, circunstancial e efêmera dentro da vasta produção
do compositor. No entanto, à distância temporal e histórica,
precisamos rever esse ponto de vista e evitar a utilização
automática desse rótulo de época, conforme assinala Anazildo
Vasconcelos da Silva. Num trabalho pioneiro, o estudioso da obra
buarqueana procurava, segundo afirma,
[...]
combater as interpretações que, de uma forma generalizada,
prendiam a poesia de Chico Buarque ao contexto circunstancial da
canção de protesto,
advertindo que enquadrá-la a uma circunstância efêmera, qualquer
que fosse sua natureza, seria negar-lhe a validade poética e
reduzi-la a coisa nenhuma.
Em
seu ensaio, o estudioso procura provar a existência de um projeto
poético buarqueano, configurado por meio da elaboração
intertextual, vinculado a um referente poético internamente
elaborado, configurando uma produção lírico-musical que transcende
sua localização temporal. O ensaísta tem razão. No caso da
composição aqui apreciada, sua teoria se aplica de modo exemplar.
“Cálice” é uma composição poético-musical que configura
claramente o contexto da canção de protesto, como uma espécie de
“gênero” característico da época, mas que transcende a
aplicação política de momento, para se tornar efetiva obra
artística que tem permanência e interesse constante, como objeto
estético que resiste ao tempo e às circunstâncias de sua criação.
Entre
as diversas composições proibidas, “Cálice” é uma das que
mais sofreram represálias impingidas pela censura do sistema
ditatorial, de forma curiosa e inusitada. Rinaldo de Fernandes
registra: “No show Phono 73, realizado em São Paulo, a gravadora
Phonogram desliga os microfones para impedir que Chico e Gilberto Gil
cantem a melodia (a letra tinha sido proibida) de ‘Cálice’”.
Naquela oportunidade, Chico Buarque e Gilberto Gil executam a
melodia, balbuciando uma pseudoletra quase ininteligível, com fortes
sugestões sonoras, representando, no palco, seu repúdio à censura
à qual a composição estava submetida. Nessa execução exemplar,
os intérpretes evidenciam a palavra, em duplo jogo semântico,
Cálice/Cale-se, pronunciada enfaticamente por Chico Buarque,
potencializando lírica e politicamente a ambiguidade sonora. No
contexto, a expressão pronunciada tanto era o substantivo “cálice”
como o verbo pronominal “cale-se”. Enquanto os artistas
apresentavam a canção proibida, interpretando-a sonoramente “em
estado de censura”, eram ovacionados pela plateia presente, na qual
se achava, entre outros artistas, o poeta e compositor Vinicius de
Moraes.
A
melodia de “Cálice” tem um tom solene e reiterativo,
destacando-se a veemência sonora do refrão, que é forte,
afirmativo, como um apelo agregador das consciências:
Pai,
afasta de mim esse cálice
Pai,
afasta de mim esse cálice
[...]
De
vinho tinto de sangue
O
vocativo “Pai” firma a posição da voz lírica, que se dirige a
um símbolo em tom de veemente súplica. O pai é, ao mesmo tempo, no
contexto simbólico da música, hierarquicamente, o superior e o
protetor. Assim, essa invocação remonta indiretamente à simbologia
cristã. A tradição sustenta que Jesus Cristo, ao representar o Pai
Superior, tomou o cálice e sagrou o vinho e o pão como símbolos da
religação (re-ligare) entre a condição terrena e o poder
supremo. A repetição do verso fixa a liturgia da palavra,
sagrando-a num ritual de aproximação e súplica, como uma
oração/pedido à divindade. Todavia a aplicação semântica aqui
não é religiosa, mas sim política e alegórica. Trata-se de uma
simbologia de segundo grau, na medida em que podemos interpretar o
sentido de “Pai” como voz suprema e geral, instância acima do
indivíduo. Ou seja, esse Pai é o detentor do poder abstrato a ser
invocado, e que, no contexto dos anos 1970, só poderia ser o povo,
fonte de um poder coletivo capaz de salvar o país da ditadura.
O
cálice, que seria sagrado, na verdade, encontra-se conspurcado pelo
vinho sacrificial, que é o sangue dos cidadãos assassinados pelo
regime de exceção. Não é o sangue sagrado da doação, mas o
vinho tinto, líquido obscuro, do sacrifício daqueles que lutaram
por liberdade e foram imolados/assassinados nas câmaras de tortura,
dando a vida pelo ideal de liberdade e justiça, em prol da
coletividade. Há uma analogia explícita com o mito cristão, aqui
revestido de uma simbologia social e política, como um apelo às
sensibilidades – tanto políticas como religiosas – de uma
população que achava na atuação política, ainda que clandestina,
e na atuação, ainda que oficiosa, de parte do clero, um alento para
manter a resistência à ditadura militar.
O
vinho – tinto de sangue – não é um símbolo que redime as
culpas, mas representa a vida das pessoas aniquiladas pela força
bruta da ditadura. Dia a dia, como num ritual às avessas, o sangue
dos presos políticos torturados e mortos nos porões do regime era
servido à sociedade num cálice simbólico.
O
ritual encontra-se, portanto, invertido, nulo de significado,
conspurcado pela ação perversa do regime ditatorial. Nesse sentido,
a canção, em tom grave e solene, pode ser vista como um ato de
exorcismo sacrificial do regime. O compositor se expõe publicamente,
desafiando o poder e sua violência institucional. Mas, ao se expor
ao público, também se imuniza, se resguarda, sob a proteção do
Pai, do coletivo, do povo.
A
frase melódica introdutória soa como um lamento que dá início à
concentração mental necessária ao ritual de agravo e defenestração
do mal. Nesse sentido, a canção tem uma qualidade operística, na
medida em que contém uma narrativa, cifrada na pauta musical e na
semântica de duplo sentido da letra, cabendo à plateia identificar
e internalizar os sentidos e captar as mensagens subliminares,
inclusive da execução no palco. A voz lírica representa a condição
do indivíduo, cidadão brasileiro reprimido e ameaçado, que se
dirige a uma consciência, símbolo do todo – o Pai/o País –, a
consciência coletiva.
A
voz lírica suplica ao pai – num tom grave de apelo, que o
intérprete acentua na voz pausada e langorosa, a denunciar que o
cálice é de vinho, porém tinto/manchado de sangue, o que denuncia
o ritual macabro da tortura e do assassinato de pessoas perseguidas
pelo poder da ditadura. “A tortura manobra a dor de forma
diversa”,17 e a canção a denuncia como um mal que deve ser
esconjurado pela viva voz e pelos atos de protesto.
A
primeira estrofe da letra explicita o ponto de vista da voz lírica,
num jogo de elucidação e escolha, sugestões e recusas, por meio de
questões figurativas da realidade do país:
Como
beber dessa bebida amarga
Tragar
a dor, engolir a labuta
Mesmo
calada a boca, resta o peito
Silêncio
na cidade não se escuta
De
que me vale ser filho da santa
Melhor
seria ser filho da outra
Outra
realidade menos morta
Tanta
mentira, tanta força bruta
O
tom dos versos é de questionamento e de ponderação, com argumentos
que defendem a instauração de uma outra realidade, de superação
do estado ditatorial. O que a voz lírica indaga é a impossibilidade
de se aceitar a realidade amarga, a dor (a violência simbólica e
factual) e a labuta (a militância) no enfrentamento do regime. A
labuta é a luta contra a ditadura, contra a mentira e a força
bruta. E, como havia censura e proibição de se utilizar livremente
a palavra, os sentimentos e as convicções ficavam abafados no
peito, gerando a angústia e a insatisfação daquelas vozes sociais,
representadas por políticos de oposição, artistas, professores
etc., silenciados e fustigados pela censura, pelos inquéritos, pelos
interrogatórios, pela prisão, pela tortura e pelo assassinato.
Numa
realidade vigiada, censurada e dirigida, a condição de cidadão,
suposto “filho da pátria”, deteriora-se devido à destituição
tácita de seu ser integral. A sua cidadania está cassada. E a ideia
oficial de pátria, que o regime propaga como uma ideologia, é então
ironizada como “santa”, porque pseudossacralizada pelo discurso
oficial, por intermédio da propaganda do governo, em slogans do tipo
“Brasil: ame-o ou deixe-o”, emblema maior da ditadura no seu
auge, intimando o povo a aceitar o arbítrio institucionalizado. Para
o poeta, melhor seria ser filho de outra ideia de pátria, aquela
propugnada pelos cidadãos contrários ao regime. Essa seria uma
realidade dinâmica e democrática, portanto “menos morta”,
porque não submetida à mentira e à força bruta da ditadura, que
determinava à força, com coerção policial e administrativa, o que
devia ser a verdade oficial do país.
A
segunda estrofe da composição destaca a dificuldade de se aceitar a
condição aviltada de existir, numa sociedade amordaçada, sem
direito à livre expressão:
Como
é difícil acordar calado
Se
na calada da noite eu me dano
Quero
lançar um grito desumano
Que
é uma maneira de ser escutado
Esse
silêncio todo me atordoa
Atordoado
eu permaneço atento
Na
arquibancada pra a qualquer momento
Ver
emergir o monstro da lagoa
A
voz lírica refere-se às dificuldades do indivíduo diante das
restrições estabelecidas pelo regime de força. A liberdade é
cerceada e os discursos interditados. A interdição da palavra cria
um vazio existencial para aqueles que tentam exercer a liberdade de
expressão, sobretudo os artistas, escritores e jornalistas. Diante
de tão dura realidade, é difícil manter-se silenciado. Na calada
da noite, que simboliza o momento de introspecção e pico da
consciência, avulta o estado de danação a que o indivíduo se vê
submetido. E a consciência permanece buscando sua expressão, por
meio do empenho volitivo que impele o indivíduo, destituído de seu
lugar na polis, a tentar fazer algo, a fim de exercer a sua liberdade
interior, recuperar o seu livre-arbítrio.
Não
poder exercer a liberdade de expressão leva a voz lírica a
responder laconicamente ao fato. Na calada da noite, a consciência
se manifesta, quebrando o equilíbrio. É a crise existencial do
indivíduo tolhido, cerceado, vigiado pelo sistema oficial. O
silêncio imposto gera um desequilíbrio, daí a necessidade de
“lançar um grito desumano”, como forma de quebrar a interdição
e, assim, tentar ser escutado. O silêncio gera ansiedade e atordoa,
condição em que a voz lírica declara-se atenta, pois o “monstro”
pode emergir da lagoa, metáfora que ilustra a presença sorrateira
do regime a vigiar e punir seus críticos e inimigos.
Na
terceira estrofe, continuam o protesto e a reflexão provocativa, em
tom de lamento e imprecação:
De
muito gorda a porca já não anda
De
muito usada a faca já não corta
Como
é difícil, pai, abrir a porta
Essa
palavra presa na garganta
Esse
pileque homérico no mundo
De
que adianta ter boa vontade
Mesmo
calado o peito, resta a cuca
Dos
bêbados do centro da cidade
A
ditadura é um sistema de ação, gerenciamento e governo da
sociedade. Aqui ela é ironizada como “porca gorda”, que emperra,
que não anda, pois obriga os cidadãos a ficarem estáticos diante
do poder. E, assim, o poder também fica estático, em posição de
vigilância dos cérebros e dos braços e das pernas, operando a
contensão arbitrária contra o direito de pensar, ir e vir, e fazer.
A palavra é – presa –, detida antes de se manifestar, ainda na
garganta.
Talvez
o mundo não seja pequeno [Cale-se!]
Nem
seja a vida um fato consumado [Cale-se!]
Quero
inventar o meu próprio pecado [Cale-se!]
Quero
morrer do meu próprio veneno [Pai! Cale-se!]
Quero
perder de vez tua cabeça [Cale-se!]
[...]
A
cada estrofe, o refrão retoma o tom reflexivo, a fim de reafirmar o
compromisso do sujeito do discurso perante si mesmo, a vida e a
coletividade. Na estrofe final, reforçada com a veemente repetição
do bordão – Cálice/Cale-se –, o pessimismo, antes manifesto,
finalmente cede a uma hipótese relativamente otimista. Apesar da
concepção estreita do poder central do país, que tudo apequena e
avilta com seu tacão, resistem as consciências de que a realidade
não se limita a isso. Ora, “talvez o mundo não seja pequeno” e
o dinamismo possa tornar a vida algo em aberto, superando a ideia de
um estado de coisas como “fato consumado”. Daí o espaço do
querer se manifestar, apesar da conjuntura hostil, para “inventar o
próprio pecado”, ou seja, tomar atitudes que sejam julgadas por si
mesmo, em liberdade de pensar e agir.
Se
a morte é uma possibilidade, que o cidadão possa “morrer do
próprio veneno”, ou seja, em consequência de suas próprias
atitudes, do seu livre-arbítrio. Por último, insinua-se a
reivindicação de poder exercer a voz, de passar mensagens, por meio
da música, e, com isso, influenciar as pessoas, de forma a
despertar-lhes a consciência – que elas possam se indignar, que
possam mudar/perder de vez a cabeça, insurgindo-se contra o regime.
“Cálice”
é, inegavelmente, uma canção de protesto. Mas não se limita a
essa condição conjuntural. Trata-se de uma composição de alto
valor lírico por sua concepção sígnica, sua estrutura poética,
seu jogo semântico de ambiguidades, por sua feitura artística. Daí
sua consistência textual e sua permanência para além de seu
contexto particular. O poema transcende o fato histórico no qual se
engendrou, como resposta a uma urgência do momento. Conforme destaca
Anazildo Vasconcelos da Silva:
O
protesto ressaltado na canção de Chico Buarque resultava, naquela
época, da insistência do poeta em referenciar a proposição de
realidade interditada, mas permanecerá em toda a sua produção
lírica, mesmo, e até com maior contundência, após a suspensão da
interdição, confirmando as referências que fiz ao valor poético
da obra de Chico Buarque, que, como toda poesia autêntica, rompeu
com os possíveis condicionamentos externos inerentes à proposição
de realidade pressuposta, não se prendendo a um contexto
circunstancial.
“Cálice”
é uma canção ímpar e emblemática na MPB, pelo poder de evocação
à atitude de resistência da sociedade à ditadura militar e pelo
seu poder de comunicação e de permanência, mesmo em face da
implacável censura que sofreu na época. Em toda a composição, os
versos cadenciam-se no andamento da linguagem musical, de modo
equilibrado e evocativo, fixando-se na mente e na dicção dos
ouvintes, como um apelo para cantá-la e refletir sobre os sentidos
do texto. Como bem observa o crítico Tárik de Souza:
Liberado
pela censura sete anos depois de composto, “Cálice” supera a
defasagem do tempo com seu refrão proparoxítono que repete o
fenômeno unânime de “Construção”.
De
fato, “Cálice” é uma composição até hoje bastante executada
por músicos amadores e profissionais, em apresentações públicas e
particulares. Essa condição de objeto vivo da cultura torna-a cada
vez mais um ícone da música brasileira, a par de sua importância
histórica, na luta pela liberdade de expressão e pelos direitos
civis, e como libelo contra o amordaçamento imposto ao povo
brasileiro pela ditadura militar.
Aleilton Fonseca, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos (Org. Rinaldo de Fernandes)
terça-feira, 27 de fevereiro de 2024
Conhecimento de Jorge de Lima
Era
a negra Fulô que nos chamava
de seu negro vergel. E eram trombetas,
salmos, carros de fogo, esses murmúrios
de Deus a seus eleitos, eram puras
canções de lavadeira ao pé da fonte,
era a fonte em si mesma, eram nostálgicas
emanações de infância e de futuro,
era um ai português desfeito em cana.
Era um fluir de essências e eram formas
além da cor terrestre e em volta ao homem,
era a invenção do amor no tempo atômico,
o consultório mítico e lunar
(poesia antes da luz e depois dela),
era Jorge de Lima e eram seus anjos.
de seu negro vergel. E eram trombetas,
salmos, carros de fogo, esses murmúrios
de Deus a seus eleitos, eram puras
canções de lavadeira ao pé da fonte,
era a fonte em si mesma, eram nostálgicas
emanações de infância e de futuro,
era um ai português desfeito em cana.
Era um fluir de essências e eram formas
além da cor terrestre e em volta ao homem,
era a invenção do amor no tempo atômico,
o consultório mítico e lunar
(poesia antes da luz e depois dela),
era Jorge de Lima e eram seus anjos.
Carlos Drummond de Andrade, in Fazendeiro do Ar
Capítulo 119 – Parêntesis
Quero
deixar aqui, entre parêntesis, meia dúzia de máximas das muitas
que escrevi por esse tempo. São bocejos de enfado; podem servir de
epígrafe a discursos sem assunto:
________________
Suporta-se
com paciência a cólica do próximo.
________________
Matamos
o tempo; o tempo nos enterra.
________________
Um
cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria
diminuto, se todos andassem de carruagem.
________________
Crê
em ti; mas nem sempre duvides dos outros.
________________
Não
se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um
pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.
________________
Não
te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens,
que de um terceiro andar.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
Em seu poder
Em
todos os lugares e momentos, está em seu poder:
I.
consentir piedosamente com a sua condição atual;
II.
comportar-se de maneira justa com aqueles ao seu redor;
III.
exercer sua habilidade diante das impressões presentes, para que não
seja absorvido por elas sem maiores inspeções.
Marco Aurélio, in Meditações
O Azarão | 13
Como
de costume, papai e eu fomos para o trabalho no sábado, na casa dos
Conlon.
Em
vez de manter você em suspense (se é que você ainda liga para
isso), eu podia muito bem dizer que, dessa vez, ela estava lá, linda
como sempre.
Eu
ainda estava trabalhando debaixo da casa, quando ela veio.
— Ei,
senti sua falta na semana passada — falei quando ela apareceu, e na
mesma hora dei um tapa na cabeça, a frase era muito ambígua. Quero
dizer, será que significava senti sua falta, como em “eu não vi
você” (que era a mensagem pretendida) ou significava você partiu
meu coração por não estar aqui, vaca idiota? Não tinha certeza de
qual mensagem estava transmitindo. No fim das contas, só podia
torcer para que ela pensasse que eu estava dizendo apenas que não
nos vimos. Você não pode parecer muito desesperado em uma situação
assim, mesmo que seu coração esteja acabando com você por dentro.
Ela
falou: — Bem... — Meu Deus, ela disse isso com aquela voz que a
tornava real. — Eu não fiquei aqui de propósito.
Que
diabos queria dizer isso? — Como é que é? — Arrisquei
perguntar.
— Você
ouviu. — Deu um sorriso. — Eu não fiquei aqui...
— Por
minha causa? Fez que sim com a cabeça.
Isso
era ruim ou bom? Parecia ruim. Muito ruim.
Mas,
então, também parecia bom, de um jeito doendo e distorcido. Será
que ela estava gozando com a minha cara? Não.
— Não
queria ficar aqui porque tive... — Ela engoliu em seco. — ...
medo de fazer papel de boba, como da última vez.
— Da
última vez? — perguntei confuso. — Não fui eu quem falou uma
besteira? Fui eu, sim, quem disse “Gosto de trabalhar aqui”. —
Lembrei e me encolhi.
Estávamos
agachados, debaixo da casa, e as vigas de madeira, suspensas acima de
nós, nos avisando de que perder a concentração nos deixaria com um
belo machucado na cabeça. Fiz um esforço para não ficar ereto.
— Pelo
menos, você disse alguma coisa. — Ela insistiu no argumento.
De
repente, uma coisa saiu de mim. Falei: — Não magoaria você. Bem,
pelo menos, eu ia me esforçar pra caramba pra não magoar. Prometo.
— Como
é que é? — Ela deu um passo para trás. — O que você quer
dizer?
— Quero
dizer, se... O fim de semana foi bom na semana passada? Jogar fora.
Jogar conversa fora.
— Foi.
— Ela assentiu e ficou onde estava. — Fiquei na casa de uma
amiga. — Então, voltou para mais perto. — Depois fomos até a
casa de um cara, Dale.
Dale.
Por
que o nome era tão familiar? Ah, não.
Ah,
ótimo.
— Dale
Perry?
— Dale
Perry.
O
colega de Greg.
Típico.
Um
tremendo herói.
Podia
ver que ela realmente gostava do cara.
Mais
do que de mim.
Ele
era um vencedor.
As
pessoas gostavam dele.
Greg
gostava.
Embora
pudesse confiar em mim.
— É.
Dale Perry — respondeu ela (confirmando meus piores temores),
balançando a cabeça e sorrindo. — Você conhece ele, não é? —
É. Conheço. — Percebi, então, que Rebecca Conlon provavelmente
era uma das garotas no grupo do Lumsden Oval, naquele dia que parecia
ter acontecido décadas atrás.
Havia
umas garotas parecidas com ela. O mesmo cabelo real. As mesmas pernas
reais. O mesmo... Tudo fazia sentido. Ela era próxima, bonita e
real.
Dale
Perry.
Por
pouco eu não disse que ele quase tinha queimado minha orelha havia
pouco mais de um ano, mas me calei. Não queria que ela pensasse que
eu era um desses caras totalmente ciumentos, que odiavam todo mundo
que era melhor que eles, o que, na verdade, era exatamente o tipo de
cara que eu era.
— Minha
melhor amiga diz que ele gosta de mim, mas eu não sei...
Ela
continuou falando, mas eu não conseguia ouvir. Simplesmente, não
podia. Por que diabos ela estava me contando aquilo? Era porque eu
era apenas o filho do encanador e ia pra uma escola estadual caindo
aos pedaços, enquanto ela, provavelmente, frequentava um colégio
São qualquer coisa ou algo do tipo? Ou porque eu era um tipo de cara
inofensivo e incapaz de morder? Bem, faltou pouco.
Quase
a interrompi para dizer: “Ora, vá embora daqui com o seu Dale
Perry”, mas não fiz isso. Eu a amava demais e não ia magoá-la,
por mais que estivesse magoado.
Em
vez disso, perguntei se conhecia Greg.
— Greg
Fiennes ou coisa parecida?
— Fienni.
— Conheço,
sim. Como é que você o conhece? E, por alguma razão, um monte de
lágrimas começou a se acumular nos meus olhos.
— Ah
— falei. — Já fomos amigos. — E me virei para continuar
trabalhando e esconder meus olhos.
— Bons
amigos?
Droga
de garota! — Meu melhor amigo — admiti.
— Ah.
— Ela fitava minhas costas. Eu podia sentir. Fiquei imaginando se
ela estava entendendo o que se passava aqui. Talvez. Provavelmente.
Sim, era provável, pois ela foi embora com um “Então, tá.
Tchauziiinho” muito simpático. Será que já tinha ouvido isso
antes? Claro que tinha, e senti uma pontada de realidade na garganta.
Toda
aquela discussão não me ocupou durante o dia como a decepção da
semana passada. Não. Dessa vez, me arrastei para fora daquilo.
Senti
uma coisa horrível dentro de mim.
Me
arrastando.
Papai
me viu e me deu uma bronca por ser tão lento, mas eu não
conseguiria seguir adiante. Você nem ia acreditar o quanto eu
tentei, mas minhas costas estavam quebradas.
Meu
espírito estava esmagado.
Tive
a chance de acabar com ela.
Eu
podia ter magoado ela.
Não
magoei.
Não
era consolo.
Durante
o trabalho, muitas vezes precisei me acalmar, e era uma luta enorme.
Era como se cada passo quisesse me prejudicar. As bolhas nas minhas
mãos começaram a abrir, e o sentimento continuava a brotar dos meus
olhos. Comecei a farejar o ar para encher meus pulmões, e, quando o
dia acabou, fiz um esforço para sair da parte de baixo da casa e
fiquei parado ali, esperando. Realmente queria me jogar no chão, mas
me mantive de pé.
Me
sentia ansioso, sujo, doente, só por ser eu. Qual era o problema
comigo? Me sentia como o cachorro que tem raiva no livro que estava
lendo para a escola, O sol é para todos. O cachorro manca e baba
pela estrada, e o pai, Atticus, ele surpreende o filho ao atirar no
animal.
Estou
caminhando sobre uma cerca que parece se estender por uma eternidade.
No entanto, por alguma razão, sei que ela vai parar em algum ponto.
Sei que vai durar o tempo da minha vida.
— Continue
andando — digo para mim mesmo. Meus braços estão esticados para
manter o equilíbrio.
De
cada lado, tem ar e chão, tentando me forçar a pular para eles.
Pra
que lado eu pulo? É de manhã, muito, muito cedo. É aquela hora em
que ainda está escuro, mas você sabe que vai amanhecer. O azul
escorre pelo preto. As estrelas estão morrendo.
A
cerca.
A
cerca, é de pedra, às vezes, é de madeira, e, às vezes, é de
arame farpado.
Caminho
nela e, ainda assim, sou tentado pelos lados que a acompanham.
— Pula.
— Ouço cada lado cochichar. — Pula aqui. Distância.
Lá
fora, em algum lugar, ouço cães latindo, embora as vozes deles
pareçam humanas. Latem, e, quando olho à minha volta, não posso
vê-las. Posso apenas ouvir o latido que forma o público da minha
jornada ao longo da cerca.
Violeta
no céu.
Pernas
pinicando.
Arrepios
no lado direito.
Pensamentos
em choque.
Passos.
Sozinho.
Dou
um após o outro.
Agora,
arame farpado.
Onde
pulo.
A
quem ouvir? Sol amarelo, céu avermelhado.
Primeira
parte do sol. Franzindo a testa.
Última
parte do sol. Um sorriso.
Dia
escuro.
Ideias
cobrem o céu.
Ideias
são o céu.
Pés
na cerca.
Um
lado da cerca é vitória...
O...
outro lado, derrota.
Caminho.
Sigo,
caminhando.
Decidindo.
O
suor domina.
Desce
sobre mim, controlado, e escorre no meu rosto.
Vitória,
de um lado.
Derrota,
do outro.
As
nuvens são incertas.
Palpitam
no céu como rufos de tambor, como pulsação.
Tomo
a decisão...
Pulo.
Alto.
Alto.
O
vento me pega, e, lá no alto, sei que me fará descer do lado da
cerca que ele quiser.
Não
importa onde desça: logo depois, sei que terá que voltar a escalar
e continuar andando, mas, por enquanto, ainda estou no ar.
Markus Zusak, in O Azarão