O
céu está enfarruscado. O vento soprava nuvens cinzentas
desgrenhadas. Nem lua nem estrelas. Bem dizia minha mãe que em dia
de chuva elas se escondem, por medo de ficar molhadas. Lembrei-me de
Prometeu: foi ele quem roubou dos deuses o fogo — por dó dos
mortais em noites iguais àquela. Se não fosse por ele, o fogo não
estaria crepitando no fogão de lenha. O fogo fazia toda a diferença.
Lá fora estava frio, escuro e triste. Na cozinha estava quentinho,
vermelho e aconchegante. No fogo fervia a sopa: o cheiro era bom,
misturado ao cheiro da fumaça. Comida melhor que sopa não existe.
Se eu tivesse de escolher uma comida para comer pelo resto de minha
vida não seria nem camarão, nem picanha, nem lasanha. Seria sopa.
Sopa é comida de pobre, que pode ser feita com as sobras. Pela magia
do fogo, caldeirão, água e qualquer sobra vira sopa boa. Tem até a
estória da sopa de pedra…
O
fogo é um poder bruxo. Tem o poder de irrealizar o real: os olhos
ficam enfeitiçados pela dança das chamas, os objetos em volta vão
perdendo os contornos, acabam por transformar-se em fumaça. Quando
isso acontece, começam a surgir, do esquecimento em que estavam
guardadas, as coisas que a memória eternizou. O fogo faz esquecer
para poder lembrar. Dizia sempre para os meus clientes que, em vez do
divã, que lembra maca de consultório médico, eu preferiria estar
sentado com eles diante de um fogão aceso. É diante do fogo que a
poesia aparece melhor. Não admira que Neruda tivesse dito que a
substância dos poetas são o fogo e a fumaça.
“Antigamente
eu costumava propor uma troca com Deus: um ano de vida por um só dia
da minha infância. Hoje não faço isso. Tenho medo de que ele me
atenda. Não acho prudente, na minha idade, dispor assim dos meus
anos futuros, pois não sei quantos estão ainda à minha espera…”
Assim falou a Maria Alice com voz mansa, saudade pura. O fogão de
lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos,
são fantasmas de um mundo que não mais existe.
“Quando
eu era menina, lá em Mossâmedes, nas noites frias a gente se reunia
na cozinha, todos assentados em volta de uma bacia cheia de brasas,
os pés nos pauzinhos das cadeiras, era bom o calor do fogo nos pés
frios…”
“… a
mãe enrolava um pano na cabeça e dizia: ‘Vou no quintal apanhar
umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra nós’ — e virava
a taramela para abrir a porta da cozinha. O pai dizia sempre a mesma
coisa, todo dia: ‘Mulher, você vai é ficar estuporada, de boca
torta. Faz mal tomar friagem com corpo quente de fogo…’. Mas a
mãe nem ligava. Com as canecas quentes de chá na mão — como era
bom o cheiro de folha de laranja! Posso até sentir ele de novo! —,
a gente pedia ao pai pra contar estórias. Ele contava. Eram sempre
as mesmas. A gente já sabia. Mas era como se ele estivesse contando
pela primeira vez. Vinha sempre o assombro, o medo, os arrepios na
espinha.”
Aí
ela parou e começou a divagar. Lembrou-se de um tio.
“Naquele
tempo as pessoas eram diferentes. Pois esse meu tio tinha, na frente
da casa dele, uma sala grande, vazia, que nunca era usada. Houve
gente que quis alugar a sala — ele receberia um bom dinheirinho por
ela. Recusou. E se explicou: ‘Não alugo, não. É dessa sala que
eu vejo a chuva vindo, lá longe. Se eu alugasse, ficaria triste
quando a chuva viesse…’. É, as pessoas eram diferentes…”
Houve
um silêncio. Aí a memória poética se transformou em imaginação
teológica.
“Eu
acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não é
igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que
a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquilo
que a memória amou…”
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo
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