Educar
os vivos
O
velho no fim do caminho espalhou as cadeiras pelo campo para que ao
longe imitassem o rebanho. Pastoreava as cadeiras brancas da cozinha,
quietas como bichos que pasmavam perante a paisagem. Sentava numa
pedra e olhava também como sobrava por ali apenas o início do
mundo. Tudo o que viera depois era, afinal, passageiro, uma forma de
esperança vã, um gesto inútil contra o regresso dos montes à
silvestre vocação de se imaginarem continuamente e à revelia das
pessoas. Eram em ruínas as casas antigas, debaixo de plantas novas,
tombadas como esqueletos de granito desabitados de seus animais. As
casas sem ninguém, e vê-las era já haver transcendido, estar para
depois da normalidade, ser depois, aberrante e ao abandono.
Escutava
ainda as vozes dos vizinhos mortos. O que lhe diziam da disciplina
dos invernos, do agreste do verão, a partida dos filhos, as doenças
à espreita, a pressa, que nenhum vagar se salva de ser um pouco de
ilusão. Escutava como cantavam seu nome ao cimo dos portões para
que viesse do fundo a conversar um quase nada. Por muitos anos,
cantavam seu nome nem que apenas para garantirem que estava bem,
bastante nas suas tarefas, alimentado, abençoado. E o velho subia,
sempre mais lento no passo, e havia uma alegria para fazer. Até
ficar para último. Julgava ele que imitar os bichos com as tralhas
era modo de ter alguém. E afeiçoava também os raros gatos, dois
lobos que vinham pelo outono, algumas aves em cada primavera.
Afeiçoava flores, os cactos, até a urze, os miosótis já mais
adiante no riacho.
Cada
coisa que vivesse poderia ser um corpo amigo. Para o velho no fim do
caminho, qualquer coisa que demorasse ali se tornava companhia e
merecia uma palavra, um interminável diálogo. Por isso, não era
estranho nem louco que perguntasse às giestas pelo frio ou pelo
muito vento. Não era estranho nem louco que as quisesse regar.
Adoraria estar certo de as alimentar, tivessem as giestas uma boca e
uma barriga que se visse a crescer. Pensava ele que seria mais
simples se todas as coisas tivessem uma boca e pudessem
testemunhar-se. Dizerem de si mesmas inequivocamente para que tudo se
negociasse por estrita necessidade e candura. Então, às pessoas
seria concreta a ternura por tanto que quer ser sem elas, sem o abate
que provocam, sem a avidez infinita.
Julgava
o velho que aquele tempo era uma devolução. Nutria quanto podia e
observava. Ao longe, escassos, passavam carros e os seus roncos
mecânicos podiam ser os dejectos das montanhas a descer pelas
estradas tortas. Quanto mais os miosótis, mais carros partiam para
não voltar. Um dia, o velho sentiu que era certo. Os miosótis
cobriam a margem do riacho como nunca se vira. Valiam por todas as
vizinhanças. Eram uma vizinhança que se deixara adiada, até haver
pureza bastante para que florissem francos, delicados, a refazer o
mundo.
O
velho pensou que nada daquilo era pouco. O início do mundo jamais
seria pouco.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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