sábado, 20 de janeiro de 2024

No que ele compra uma cidade, e mais


Esta próxima história ergue-se da bruma do passado como uma sombra.
Muito trabalho, sorte, e uma quantidade de investimentos sagazes fazem de meu pai um homem rico. Nos mudamos para uma casa maior, numa rua mais bonita, e minha mãe fica em casa e me educa. À medida que vou crescendo meu pai continua a trabalhar tanto quanto antes. Ele passa semanas fora e volta para casa cansado e triste, com pouco para dizer, exceto que sentiu saudades.
Assim, apesar de seu enorme sucesso, ninguém parece feliz. Nem minha mãe nem eu e, certamente, nem meu pai. Há até boato de dissolver a família, que parece e age tão pouco como tal. Mas isso não acontece. Às vezes as oportunidades surgem disfarçadas. Meus pais resolvem pôr um fim nas dificuldades.
É durante esse período, meados dos anos 70, que meu pai começa a gastar seu dinheiro das formas mais inusitadas. Um dia ele percebe que falta algo em sua vida. Ou melhor, esse é um sentimento que vai surgindo aos poucos à medida que ele envelhece — ele acabou de fazer quarenta anos —, até que um dia ele se vê, de forma totalmente acidental, preso. Numa cidadezinha chamada Specter. Specter, em algum lugar do Alabama, do Mississippi ou da Georgia. Preso ali porque o carro quebrou. Ele manda rebocar o carro até a oficina mecânica e, enquanto espera que o consertem, resolve dar uma volta.
Specter, o que não é de espantar, é uma cidadezinha linda, cheia de casinhas brancas, alpendres e balanços, sob árvores enormes que lhe dão sombra. Aqui e ali canteiros de flores e, além de uma bela rua principal, há uma combinação de ruas de terra, cascalho e asfalto, todas próprias para se passear de carro. Meu pai presta especial atenção a essas ruas enquanto caminha porque, mais do que tudo, é isso que o meu pai gosta de fazer. Dirigir. Vendo coisas. Entrar no carro e dirigir por estradas no país inteiro, no mundo inteiro, dirigir tão devagar quanto a lei permite — embora a lei, especialmente no que concerne a limites de velocidade, não seja algo que Edward Bloom respeite: vinte na cidade é depressa demais para ele; as autoestradas são uma loucura. Como se pode ver o mundo numa velocidade dessa? Onde as pessoas têm tanta pressa de chegar que não conseguem perceber o que está ali, do lado de fora da janela do carro? Meu pai se lembra de quando não havia carros. Ele se lembra de quando as pessoas costumavam caminhar. E ele também faz isso — caminha —, mas mesmo assim gosta de sentir o motor do carro roncando, as rodas girando, a vida emoldurada na janela à frente, atrás, por todos os lados. O carro é o tapete mágico de meu pai.
Ele não só o leva a lugares, mas mostra esses lugares a ele. Um carro... ele dirige, é dirigido, tão devagar, e leva tanto tempo para ir daqui para lá que algumas de suas importantes transações comerciais são feitas em carros. Aqueles que têm hora marcada com ele seguem o seguinte esquema: descobrem onde ele está neste ou naquele dia e calculam que, por ser um motorista tão vagaroso, ele irá permanecer nos arredores pelo restante da semana — e então voam para o aeroporto mais próximo, alugam um carro e vão a seu encontro. Emparelham o carro com o dele, buzinam e acenam. Meu pai se vira lentamente — do jeito que Abraham Lincoln teria se virado se tivesse dirigido um carro, porque em minha mente, na lembrança que se alojou indelevelmente em minha mente, meu pai se parece com Abraham Lincoln, um homem com braços compridos, bolsos fundos e olhos escuros — e acena de volta. Ele estaciona e quem quer que precise falar com ele entra no banco do passageiro, e os assessores ou advogados dessa pessoa entram atrás, e enquanto continuam rodando por aquelas belas e sinuosas estradas, terminam suas transações. E quem sabe? Talvez ele até tenha casos nesses carros, romances com belas mulheres, atrizes famosas. À noite uma pequena mesa é armada entre eles, coberta com uma toalha branca, e, à luz de velas, eles comem, bebem e brindam levianamente ao futuro...
Em Specter meu pai passeia. Por acaso é um belo dia de outono. Ele sorri para tudo e para todos amavelmente, e tudo e todos sorriem amavelmente de volta. Ele anda com as mãos cruzadas nas costas, espiando com um olhar simpático para dentro de vitrines e becos, e já naquela época um tanto sensível à luz do sol, apertando os olhos portanto, o que só o faz parecer mais simpático, e mais delicado, o que ele é: é mais simpático e sem dúvida mais delicado do que parece, sempre, para qualquer um. Ele se apaixona pela cidade, com sua maravilhosa simplicidade, seu charme despojado, as pessoas que o cumprimentam, que lhe vendem uma Coca-Cola, que acenam para ele e sorriem de seus alpendres quando ele passa.
Meu pai decide comprar a cidade. Specter tem uma qualidade sombria, ele diz para si mesmo, uma qualidade parecida com viver debaixo d’água, que ele é capaz de apreciar. É um lugar triste, na realidade, e tinha sido assim há anos, desde que a ferrovia foi fechada. Ou que as minas de carvão secaram. Ou que a cidade foi simplesmente esquecida, que o mundo passou ao largo dela. E embora Specter não tivesse mais utilidade para o mundo, teria gostado de fazer parte dele, de ter sido convidada.
Essa é a qualidade pela qual meu pai se apaixona, e esse é o motivo pelo qual ele faz daquela a sua cidade.
A primeira coisa que ele faz é comprar toda a terra ao redor de Specter, como uma espécie de tampão, para evitar que algum outro homem rico e solitário apareça na cidade e queira construir uma autoestrada cortando-a. Ele nem mesmo examina a terra; só sabe que é verde, cheia de pinheiros e que ele quer mantê-la assim, quer o que é, de fato, um ecossistema fechado em si mesmo. E consegue. Ninguém sabe que um só homem está comprando os pequenos terrenos que estão à venda, assim como ninguém fica sabendo quando todas as casas e lojas da cidade são compradas, uma a uma, num período de cerca de cinco ou seis anos, por alguém que ninguém sabe quem é. Mas não por muito tempo. Há pessoas que estão se mudando, e há negócios que estão fechando, e estes não são nada difíceis de comprar, mas para aqueles que gostam das coisas como são e querem ficar no mesmo lugar, é mandada uma carta. A carta oferece um ótimo preço pela propriedade e tudo o que tem lá dentro. Eles não são solicitados a sair, a pagar aluguel nem a fazer qualquer mudança a não ser o nome do proprietário da casa — todas as casas — ou da loja — todas as lojas.
E, dessa forma, devagar mas com determinação, meu pai compra Specter. Cada centímetro quadrado dela.
Eu o imagino muito satisfeito com a transação.
Pois, cumprindo sua palavra, nada muda, nada exceto o surgimento súbito e rotineiro na cidade de meu pai, Edward Bloom. Ele não avisa com antecedência, pois eu não acredito que ele mesmo saiba quando vai poder voltar, mas um dia ele é visto por alguém. É a figura solitária parada no campo ou caminhando pela rua Nove com as mãos enfiadas nos bolsos. Ele percorre as lojas que então possui e gasta um ou dois dólares, mas deixa a direção dos estabelecimentos para os homens e mulheres de Specter, a quem pergunta, com sua voz suave e paternal: Bem, como vão as coisas? Como vai sua esposa, e as crianças?
Ele obviamente ama muito aquela cidade, bem como todas as pessoas que moram nela; e elas o amam também, porque é impossível não amar meu pai. Impossível. Isso, pelo menos, é o que imagino: é impossível não amar meu pai.
Muito bem, sr. Bloom. Está tudo muito bem. Tivemos um bom mês. O senhor gostaria de examinar os livros? Mas ele sacode negativamente a cabeça. Tenho certeza de que tudo está sob controle aqui. Só entrei para dar um alô. Bem, tenho que ir agora. Até logo. Dê lembranças à sua mulher, sim?
E quando os estudantes secundários de Specter jogam beisebol contra outros times de outras escolas, às vezes ele é visto — sua figura alta e magra — sozinho na arquibancada com seu terno de três peças, assistindo ao jogo com aquele ar orgulhoso e distante com que me observou crescer.
Toda vez que vai a Specter fica com uma família diferente. Ninguém sabe quem será, ou quando, mas há sempre um quarto preparado quando ele pergunta, e ele sempre pergunta, como se fosse um favor feito a um estranho. Por favor, se não for muito incômodo. Ele come com a família, dorme no quarto e de manhã parte. E sempre faz a cama.

Acho que o Sr. Bloom vai gostar de um refrigerante num dia quente como hoje — Al diz um dia para ele. — Deixe-me pegar um para o senhor, sr. Bloom.
Obrigado, Al. Vai ser ótimo tomar um refrigerante.
Ele se senta num banco em frente à Loja Campestre de Al, sem fazer nada. Loja Campestre de Al — ele sorri do nome e tenta se refrescar na sombra da marquise. Só as pontas de seus sapatos pretos no sol quente daquele dia de verão. Al leva o refrigerante para ele. Outro homem chamado Wiley está lá, e o velho mastiga a ponta de um lápis, e olha para meu pai enquanto ele bebe o refrigerante. Wiley tinha sido xerife de Specter por algum tempo, e depois pastor. Depois de ser pastor ele se tornou o merceeiro, mas agora, conversando com meu pai em frente à Loja Campestre de Al, ele não faz nada. Aposentou-se de tudo, menos de conversar.
Wiley diz:
Sr. Bloom, sei que já disse isso antes. Sei que sim. Mas vou dizer de novo. É maravilhoso o que o senhor fez com esta cidade.
Meu pai sorri.
Eu não fiz nada com esta cidade, Wiley.
Exatamente por isso! — Wiley diz e ri, e Al ri, e meu pai também ri. — Nós achamos que é maravilhoso.
Como está o refrigerante, sr. Bloom?
Refrescante. Muito refrescante, Al. Obrigado.
Wiley tem uma fazenda a dois quilômetros da cidade. Foi uma das primeiras coisas sem valor que meu pai comprou.
Tenho que concordar com Wiley — diz Al. — Nem todo homem viria aqui e compraria uma cidade inteira só por gosto.
Os olhos de meu pai estão quase fechados; dentro de pouco tempo ele não poderá mais sair sem óculos bem escuros, tal o modo como seus olhos se tornaram sensíveis à luz. Mas ele aceita o elogio com dignidade.
Obrigado, Al — ele diz. — Quando vi Specter, soube que tinha que tê-la. Não sei por quê, só sei que foi assim. Tinha que tê-la todinha. Suponho que em parte isso tenha relação com círculos, com completude. É muito difícil para um homem como eu contentar-me com um pedaço de alguma coisa. Se parte é boa, o todo só pode ser melhor. E no que se refere a Specter, este é certamente o caso. Tê-la toda…

Mas o senhor não tem — Wiley diz, ainda mastigando o lápis. Seus olhos vão de Al para meu pai.
Wiley — Al diz.
Bem, é verdade! Não é errado dizer a verdade.
Meu pai se vira vagarosamente para Wiley, porque meu pai tem esse talento especial: só de olhar para um homem ele sabe dizer qual é sua motivação em dizer o que está dizendo, se está sendo sincero e verdadeiro ou se está tentando conseguir mais do que é certo. É uma espécie de poder, e é um dos motivos pelos quais ele ficou rico.
Ele percebe que Wiley pensa que está dizendo a verdade.
Bem, isso não pode ser, Wiley — ele diz. — Isto é, até onde eu sei. Já percorri cada centímetro desta cidade, seja de carro ou a pé, ou vista do ar, e tenho certeza de que comprei tudo. A cidade inteira. O pacote completo. É um círculo perfeito.
Ótimo, então — Wiley diz. — Não vou mencionar aquele pedaço de terra com um barraco que fica entre o final da estrada e o começo do lago, e que é difícil de achar a pé ou de carro ou visto do ar e que talvez não esteja em nenhum mapa, nem que a pessoa que o possui tem um pedaço de papel que o senhor nunca viu para assinar, sr. Bloom. Porque o senhor e Al são os donos da verdade com relação a isso. Acho que não sei do que estou falando. Minhas desculpas para o senhor, que sabe mais do que eu. 
 
Wiley é amável o bastante para mostrar a meu pai como se chega lá, como a estrada parece terminar mas não termina, como o lago parece estar onde não está, e como é difícil para qualquer um encontrar aquele lugar: um pântano. Um barraco num pântano. Então meu pai vai de carro até onde a estrada parece terminar, mas quando salta fica claro que depois das árvores e videiras e terra e grama, a estrada está lá, a estrada continua. Foi tomada pela natureza, pelo lago que no momento está transbordando por suas margens. Em seis centímetros de água pantanosa existe mais vida estagnada do que no oceano; na sua extremidade, onde a lama endurece e esquenta, começa a própria vida. Ele entra no pântano. O pântano engole os sapatos de meu pai. Ele continua andando. A água sobe, a lama se agarra em suas calças à medida que ele vai afundando. A sensação é boa.
Ele continua andando, não tem dificuldade para enxergar naquela luz fraca. E de repente avista uma casa à sua frente — uma casa. Ele não consegue acreditar que uma coisa daquelas continue em pé, que não tenha sido tragada pela terra fofa, mas lá está ela, não um barraco, e sim uma casa de verdade, pequena mas bem construída, com quatro paredes e fumaça saindo da chaminé. Quando ele se aproxima a água recua, o chão fica duro, há um caminho para seguir. E ele pensa, sorrindo, que é engenhoso, e parecido com a vida: no último momento surge um caminho, quando menos se precisa dele.
Em uma das laterais da casa há um jardim, e na outra há pilhas de madeira da altura dele. Sob uma janela, um canteiro de flores amarelas.
Ele vai até a porta e bate.
Olá. Tem alguém em casa?
Claro — responde uma voz jovem de mulher.
Posso entrar?
Há uma pausa, e em seguida:
Limpe os pés no capacho.
Meu pai obedece. Ele abre a porta com delicadeza e fica ali parado, contemplando toda aquela limpeza e arrumação: no meio do pântano mais pantanoso que ele já vira, está olhando para uma sala limpa, acolhedora e confortável. Ele vê primeiro o fogo da lareira, mas desvia rapidamente os olhos. Depois fita a bancada da lareira, sobre a qual há diversos jarros de vidro azuis arrumados em pares, e finalmente contempla as paredes, que estão praticamente nuas.
Há um pequeno sofá, duas cadeiras e um tapete marrom.
No vão da porta que dá para outro cômodo está a moça. Ela tem cabelos pretos e compridos, trançados para trás, e olhos azuis. Não pode ter mais de vinte anos. Morando naquele pântano, imaginaria que ela estivesse coberta de lama como ele está naquele momento, mas fora uma manchinha de cinza em um lado do pescoço, sua pele branca e seu vestido de chita não poderiam estar mais limpos.
Edward Bloom — ela diz. — O senhor é Ed Bloom, não é?
Sim. Como você soube?
Calculei. Quer dizer, quem mais poderia ser?
Ele concorda com a cabeça e diz que sente muito incomodá-la e a sua família, mas que está lá para tratar de negócios. Diz que gostaria de falar com o dono da casa — pai, mãe? — e da terra onde está a casa.
Ela diz que ele está falando com a dona.
Como assim?
Isso aqui é meu.
Seu? — meu pai diz. — Mas você é só...
Uma mulher. Ou quase.
Desculpe-me — meu pai diz. — Não tive a intenção de...
Negócios, sr. Bloom. — Sorri de leve. — O senhor disse algo sobre negócios.

Ah, sim — ele diz.
E ele fala tudo o que sabe, como chegou a Specter, como se apaixonou pela cidade, e que simplesmente quer tê-la toda. Ela pode achar que se trata de uma falha de caráter, mas ele quer possuir a cidade inteira, e aparentemente este é um pedaço de terra que ele deixou passar, e que gostaria de comprá-lo se ela não se importar, que nada irá mudar, ela poderá continuar lá para sempre se quiser, ele só quer chamar de sua aquela cidade.
Deixe-me entender bem isto — ela diz. — O senhor irá comprar de mim este pântano, mas eu vou continuar aqui. O senhor será o proprietário da casa, mas ela continuará sendo minha. Eu ficarei aqui e o senhor irá de um lado para o outro de acordo com sua vontade porque existe uma falha em seu caráter. Entendi direito? — E quando ele diz que sim, que ela resumiu bem a situação, ela diz: — Então eu acho que não, sr. Bloom. Se nada vai mudar, eu prefiro que não mude, que as coisas continuem do jeito que sempre foram.
Mas você não compreende. Basicamente você não vai perder nada. Na verdade, todo mundo ganha com isso. Você não vê? Pode perguntar a qualquer pessoa em Specter. Eu só tenho contribuído. O povo de Specter tem lucrado sob todos os aspectos com minha presença aqui.
Deixe que eles lucrem — ela diz.
É uma coisa de nada, na verdade. Eu gostaria que você reconsiderasse. — Ele está prestes a perder a paciência ou a cair em depressão. — Eu só quero o melhor para todos.
Especialmente para o senhor.
Para todos — ele diz. — Inclusive eu.
Ela olha para meu pai por um longo tempo, seus olhos azuis firmes, sem piscar, e sacode a cabeça.
Eu não tenho pais, sr. Bloom — ela diz. — Eles já morreram há muito tempo. — Ela lança um olhar frio e mau para ele. — Estou bem aqui. Sei de muita coisa... bem, o senhor se surpreenderia com o que eu sei. Não é um cheque polpudo que vai mudar as coisas para mim. Dinheiro, eu não preciso dele. Não preciso de nada, sr. Bloom. Sou feliz com o que tenho.
Minha jovem — meu pai fala, sem acreditar no que está ouvindo —, qual é o seu nome?
Jenny — diz, num tom de voz mais suave. — Meu nome é Jenny Hill.
E a história é a seguinte: ele primeiro se apaixona por Specter, depois se apaixona por Jenny Hill.

O amor é estranho. O que faz uma mulher como Jenny Hill subitamente decidir que meu pai é o homem certo para ela? O que ele desperta nela? Será aquele famoso charme? Ou será que Jenny Hill e Edward Bloom foram, de certa forma, feitos um para o outro? Será que meu pai esperou quarenta anos e Jenny Hill vinte anos para finalmente encontrarem o amor de sua vida?
Eu não sei.
Ele atravessa o pântano com Jenny nos ombros e eles vão para a cidade juntos, no carro dele. Às vezes dirige tão devagar que é possível caminhar ao lado do carro em passos rápidos e conversar com ele, ou, como acontece hoje, que toda a cidade de Specter fique enfileirada nas calçadas para ver o que ele carrega consigo, para ver a bela Jenny Hill.
Desde o início da sua estada em Specter, meu pai conserva uma casinha branca, de janelas pretas, próxima do parque da cidade, numa rua adorável, com um gramado macio na frente e um roseiral de um lado e um velho celeiro convertido em garagem do outro. Há um pássaro vermelho de madeira empoleirado no alto de uma cerca branca, cujas asas batem quando o vento sopra, e um capacho de palha na varanda da frente com a palavra Lar bordada no meio.
E no entanto ele nunca ficou lá. Nos cinco anos desde que se apaixonou por Specter, nunca passou uma só noite na única casa da cidade em que não mora ninguém. Até levar Jenny do pântano, sempre ficou hospedado na casa dos outros. Mas agora, com Jenny instalada na casinha branca com o gramado verde e macio próxima do parque, ele fica com ela. Ele não surpreende mais as pessoas de Specter com sua batida tímida ao anoitecer (“É o sr. Bloom!” as crianças gritam, e pulam em cima dele como se fosse um tio que não veem há muito tempo). Ele agora tem um lugar que é seu para ficar, e embora no início alguns sentimentos fiquem feridos, e a propriedade da situação seja questionada por alguns, logo todos veem a sabedoria de morar com a mulher que você ama na cidade em que você ama morar. Sábio: foi o que pensaram a respeito de meu pai desde o primeiro dia. Ele é sábio, bom e amável. Se faz algo que parece estranho — como ir até o pântano para comprar um terreno e encontrar uma mulher —, então é porque o restante das pessoas não é tão sábio, amável e bom quanto ele. Portanto, em pouco tempo ninguém mais pensa duas vezes a respeito de Jenny Hill, isto é, não de forma mesquinha, mas simplesmente para imaginar como ela suporta quando Edward não está na cidade, que, até mesmo as pessoas mais compreensivas de Specter são obrigadas a admitir, é a maior parte do tempo.
Elas se perguntam: Ela não se sente sozinha? Como ela passa o tempo? Coisas assim.
Mas Jenny participa da vida da cidade. Ela ajuda a organizar eventos na escola e se encarrega da dança na feira organizada todos os anos no outono. Depois de ter passado tanto tempo no pântano, manter o gramado verde e bonito não é problema para ela, e o jardim parece simplesmente florescer sob seus cuidados. Mas há noites em que os vizinhos a escutam chorar com uma tristeza profunda, e, como se ele também pudesse ouvi-la, no dia seguinte ou no outro ele é visto dirigindo vagarosamente pela cidade, acenando para todo mundo, e parando finalmente na entrada da casinha, onde acena para a mulher que ama, que pode estar parada na varanda, limpando as mãos no avental, com um sorriso radiante no lindo rosto, sacudindo de leve a cabeça e dizendo um Olá baixinho, quase como se ele nunca tivesse partido.
O que, de fato, é como todo mundo passa a achar depois de algum tempo. Tantos anos se passaram desde que ele comprou aqueles primeiros terrenos nos arredores da cidade, e tantos anos mais desde que se tornou uma presença habitual, que as pessoas se acostumaram com ele. Seu aparecimento em Specter é fantástico um dia, cotidiano no outro. Ele possui cada centímetro de terra na cidade, e já percorreu cada centímetro dela sozinho. Já dormiu em todas as casas e visitou todas as lojas; sabe o nome de todas as pessoas e dos cachorros de todas as pessoas, e a idade das crianças, e quando alguém vai fazer aniversário. São as crianças, é claro, que crescem vendo Edward por lá, que primeiro o aceitam como aceitam qualquer outro fenômeno natural, como algo corriqueiro, e isso passa para os adultos. Ele fica um mês ausente, e então um dia chega. Aquele seu carro velho e vagaroso — que visão! Olá, Edward! Qualquer dia vou visitá-lo. Lembranças a Jenny. Vá até a loja. E assim passam-se muitos anos, e sua presença se torna tão comum e previsível que no fim é como se ele nunca tivesse partido, como se ele nunca tivesse chegado uma primeira vez. Para todo mundo daquela cidadezinha maravilhosa, do mais jovem ao mais velho, é como se Edward Bloom tivesse morado lá a vida inteira.

Em Specter, o que nunca aconteceu torna-se história. As pessoas se confundem, esquecem e recordam todas as coisas erradas. O que resta é ficção. Embora eles nunca se casem, Jenny se torna sua jovem esposa, Edward uma espécie de caixeiro-viajante. As pessoas gostam de imaginar como eles se conheceram. O dia em que ele apareceu na cidade tantos anos antes e a viu — onde? — com sua mãe no mercado? Edward não conseguiu tirar os olhos dela. Seguiu-a o dia inteiro. Ou então ela é a mulher — a meninazinha? — que pediu para lavar o carro dele por alguns centavos naquele dia e que, desde então, ficou de olho naquele homem e disse a todo mundo: Ele é meu. No dia em que fizer vinte anos, vou obrigá-lo a se casar comigo. E foi o que aconteceu, no dia em que ela fez vinte anos, encontrou Edward Bloom na varanda da loja campestre, balançando-se com Willard, Wiley e os outros, e embora eles nunca tivessem trocado uma frase, bastou ela estender a mão e ele a tomou. Saíram caminhando juntos, e na vez seguinte que os viram eles já eram marido e mulher, marido e mulher, e estavam prestes a se mudar para aquela casinha perfeita com jardim, perto do parque. Ou talvez...
Não importa; a história está sempre mudando. Todas as histórias mudam. Já que nenhuma delas é verdadeira, as lembranças dos moradores da cidade adquirem um matiz especial, eles falam alto de manhã quando, durante a noite, recordaram algo que nunca aconteceu, uma boa história para compartilhar com os outros, uma reviravolta, uma mentira engendrada diariamente. No calor de uma manhã de verão Willard poderia falar a respeito do dia — quem poderia esquecê-lo? — quando Edward era um garoto de apenas dez anos e o rio (desaparecido, seco, se você olhar ele não está mais lá) subiu tanto que todo mundo temeu que se caísse mais uma gota de chuva do céu negro a cidade seria inundada, mais uma gota de chuva naquele rio enlouquecido e Specter desapareceria. Ninguém poderia esquecer o modo como Edward começou a cantar — ele tinha uma voz calma e aguda — e a caminhar, cantando e se afastando da cidade. E a chuva o acompanhou. Não caiu mais nenhuma gota de chuva no rio, porque as nuvens o seguiram. Ele enfeitiçou a chuva e o sol saiu. Edward só voltou quando a chuva estava perto de Tennessee e Specter estava salva. Quem poderia esquecer-se disso?
Existe alguém mais bondoso com os bichos do que Edward Bloom?, alguém poderia dizer. Se existe, mostrem para mim. Eu quero ver. Porque eu me lembro de quando Edward era apenas um adolescente e já era muito bom para os animais, todos eles...
É claro que Edward não passa tanto tempo assim em Specter; dois dias por mês no máximo. Embora, na verdade, o novo e rico proprietário da cidade tenha chegado lá certa tarde com um carro enguiçado, depois de já ter vivido quarenta anos da sua vida, os moradores fazem o que sempre fizeram — inventam coisas. Mas agora, em vez das histórias simples de pescaria que os satisfaziam antes, é a história da vida que Edward Bloom nunca viveu em Specter que lhes interessa, uma vida que eles gostariam de ter experimentado, e a vida, finalmente, que passaram a viver em suas mentes: assim como Edward Bloom os reinventou, eles também o reinventaram.
E ele parece achar isso uma ótima ideia.
Isto é, ele não parece ligar.

Daniel Wallace, in Peixe Grande

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