sábado, 6 de janeiro de 2024

Grandes esperanças | 2


Minha irmã, a sra. Joe Gargery, era mais de vinte anos mais velha que eu, e granjeara grande reputação junto a si própria e à vizinhança por ter me criado “com a mão”. Sendo, na época, obrigado a descobrir por conta própria o significado da expressão, e sabendo que sua mão era dura e pesada, e que ela tinha o hábito de usá-la com frequência contra o marido e contra mim, concluí que tanto eu quanto Joe Gargery tínhamos sido criados com a mão.
Não era uma mulher bonita, a minha irmã; e tinha eu a impressão geral de que ela havia obrigado Joe Gargery a casar-se com ela com a mão. Joe era um homem claro, com cachos de cabelo cor de palha dos dois lados do rosto liso, e olhos de um azul tão indeciso que pareciam de algum modo misturar-se com os brancos à sua volta. Era um homem tranquilo, bondoso, bem-humorado, de fácil trato, simplório e amável — uma espécie de Hércules em força, e também na fraqueza.
Minha irmã, a sra. Joe, de cabelos e olhos negros, tinha uma pele tão vermelha que por vezes eu ficava a imaginar se era possível que ela se lavasse com um ralador de noz-moscada em vez de sabão. Era alta e ossuda, e quase sempre usava um avental grosseiro, amarrado a sua pessoa com dois laços atrás, e tendo um peitilho quadrado inexpugnável à frente, cheio de agulhas e alfinetes cravados. Parecia-lhe um grande mérito seu, e uma grave acusação contra Joe, o fato de que ela usava tanto esse avental. Se bem que não consigo entender por que motivo ela o usava: ou por que, se o usava, não poderia tirá-lo, todos os dias de sua vida.
A ferraria de Joe ficava ao lado de nossa casa, que era de madeira, como eram muitas das casas de nossa região — a maioria delas, na época. Quando cheguei correndo do campo-santo, a ferraria estava fechada, e encontrei Joe a sós na cozinha. Sendo eu e Joe companheiros de infortúnio, trocávamos confidências, e ele me fez uma confidência tão logo levantei a tranca da porta e pela fresta olhei para ele, sentado no canto da chaminé.
A senhora Joe já saiu umas doze vezes, à tua procura, Pip. E está lá fora outra vez, completando uma dúzia de frade.”
É mesmo?”
É, sim, Pip”, disse Joe, “e o pior é que ela levou o pau-de-cosca.”
Diante dessa terrível informação, fiquei a torcer o único botão de meu colete, olhando com muito desânimo para o fogo. O pau-de-cócega era um pedaço de bengala com cera na ponta, já liso de tanto me fazer cócegas no couro.
Ela sentou”, disse Joe, “e levantou, e garrou no pau-de-cosca, e saiu espumando. Foi o que ela fez”, disse Joe, lentamente abrindo espaço para o fogo entre as barras inferiores com o atiçador, e olhando para ele: “Saiu espumando, Pip.”
Ela já saiu há muito tempo, Joe?” Eu sempre o tratava como uma espécie maior de criança, e como um igual.
Bom”, ele respondeu, olhando de relance para o relógio alemão, “ela saiu espumando, da última vez, há coisa de cinco minuto, Pip. Lá vem ela! Te esconde atrás da porta, meu velho, e fica atrás da toalha rolante.”
Segui seu conselho. Minha irmã, a sra. Joe, escancarando a porta, e encontrando um obstáculo atrás dela, de imediato adivinhou a causa, e valeu-se do pau-de-cócega para investigar. Terminou jogando-me — eu amiúde lhe servia de projétil conubial — em cima de Joe, o qual, satisfeito por se apoderar de mim, mesmo dessa maneira, me pôs dentro da chaminé e discretamente protegeu-me com sua perna enorme.
Adonde que te enfiaste, macaquinho?”, disse a sra. Joe, batendo com o pé no chão. “Me diz logo o que andaste fazendo pra me matar de preocupação e aflição, senão eu te tiro desse canto, mesmo que fosses cinquenta Pips, e houvesse quinhentos Gargerys na frente.”
Fui só lá no campo-santo”, respondi, de meu banquinho, chorando e me esfregando.
Campo-santo!”, repetiu minha irmã. “Se não fosse eu, já tinhas ido parar no campo-santo há muito tempo, e de lá não saías. Quem que te criou com a mão?”
A senhora”, respondi.
E por que foi que eu fiz isso, me diz, hein?”, exclamou minha irmã.
Choraminguei: “Não sei”.
Eu é que não sei!”, retrucou minha irmã. “Nunca que eu fazia isso de novo! Isso eu sei. Com toda certeza, nunca que tirei esse meu avental desde que nasceste. Como se não bastasse ser mulher de ferreiro (e de um Gargery inda por cima), inda fui ser tua mãe.”
Meus pensamentos se desviaram dessa questão enquanto meus olhos desconsolados contemplavam o fogo. Pois o fugitivo lá no charco, com o ferro na perna, o rapaz misterioso, a lima, a comida e o horrível juramento que eu fizera, comprometendo-me a cometer um furto contra o lar que me servia de abrigo, surgiam diante de mim nas brasas vingativas.
Ah!”, exclamou a sra. Joe, recolocando o pau-de-cócega em seu devido lugar. “Campo-santo, ora, essa é boa! Vocês dois falando de campo-santo.” Um de nós, aliás, não havia tocado no assunto. “Vocês dois, um dia desses, ainda vão me fazer parar no campo-santo, e quero só ver o que será dessa bela dupla sem mim!”
Enquanto ela cuidava dos apetrechos do chá, Joe olhou de esguelha para mim por cima da perna, como se estivesse mentalmente nos somando os dois, eu e ele, e calculando que dupla haveríamos de fazer, nas lamentáveis circunstâncias antevistas. Em seguida, ficou a cofiar os cachos e as suíças cor de palha do lado direito, e acompanhando a sra. Joe com os olhos azuis, como sempre fazia em momentos de tempestade.
Minha irmã tinha um modo vigoroso de cortar pão com manteiga para nós, que nunca variava. Primeiro, com a mão esquerda apertava o pão com força contra o peitilho — onde por vezes nele se cravava um alfinete, e por vezes uma agulha, que depois terminava em nossas bocas. Depois pegava um pouco de manteiga (não muita) com a faca e espalhava-a no pão, como um boticário preparando um emplastro — usando os dois lados da faca com uma destreza abrupta, aparando e aplainando a manteiga em torno da côdea. Então dava um último golpe preciso com a faca na beira do emplastro, e em seguida cortava um pedaço bem grosso do pão: o qual, por fim, antes de separá-lo do resto do pão, ela serrava ao meio, dando a Joe uma das metades e a mim a outra.
Na ocasião em questão, embora estivesse com fome, não ousei comer minha fatia. Julgava eu que era necessário guardar alguma coisa para meu terrível conhecido e seu aliado mais terrível ainda, o rapaz. Eu sabia que a sra. Joe era muito minuciosa quanto aos gastos da família, e que se eu explorasse o cofre talvez não encontrasse nada. Por isso resolvi enfiar minha fatia de pão com manteiga na perna de minha calça.
O esforço de determinação necessário para atingir esse objetivo foi, conforme verifiquei, terrível. Era como se eu tivesse de me obrigar a saltar do telhado de uma casa alta, ou mergulhar em águas muito profundas. E tudo se tornava mais difícil por não estar Joe a par do que acontecera. Na nossa maçonaria de companheiros de infortúnio, já mencionada, e numa atitude de camaradagem simpática, tínhamos o hábito de comparar, todas as noites, a maneira como mordíamos nossas fatias, exibindo-as em silêncio para a admiração mútua, de vez em quando, o que nos incentivava a empreender novos esforços. Naquela noite, Joe várias vezes me convidou, exibindo sua fatia cada vez menor, a participar de nossa costumeira competição amistosa; porém a cada vez ele deparava com minha caneca amarela de chá num dos joelhos e minha fatia intacta de pão com manteiga no outro. Por fim, concluí em desespero que era preciso fazer o que havia de ser feito, e que devia fazê-lo da maneira menos improvável compatível com as circunstâncias. Aproveitei-me de um momento em que Joe tinha acabado de olhar para mim e enfiei o pão na perna da calça.
Joe, sem dúvida, estava preocupado com o que julgou ser minha perda de apetite, e deu em sua fatia uma mordida que pareceu não lhe dar prazer. Revirou o bocado na boca por muito mais tempo do que era seu costume, pensando profundamente, e no fim engoliu-o como se fosse uma pílula. Ia dar mais uma mordida, e já havia posicionado a cabeça em um dos lados do pão para abocanhá-lo com jeito, quando olhou para mim e percebeu que minha fatia havia desaparecido.
O espanto e a consternação com que Joe se deteve no instante antes de morder e ficou a olhar para mim eram evidentes demais para que minha irmã não os observasse.
O que foi, agora?”, indagou ela, vigorosa, pondo a xícara na mesa.
Ora, o que é isso!”, murmurou Joe, sacudindo a cabeça para mim numa repreensão muito séria. “Pip, meu velho! Isso vai te fazer mal. Há de ficar entalado em algum lugar. Não é possível que tenhas mastigado, Pip.”
O que foi, agora?”, repetiu minha irmã, com mais vigor ainda que antes.
Se conseguires botar para fora, Pip, recomendo-te que o faças”, disse Joe, assustado. “Boas maneiras é importante, mas saúde é saúde.”
A essa altura, minha irmã estava desesperada, e assim avançou sobre Joe e, pegando-o pelas duas suíças, bateu-lhe a cabeça por algum tempo contra a parede atrás dele; enquanto isso, no meu canto, eu assistia à cena, cheio de culpa.
Agora, quem sabe, vais me dizer o que houve”, falou minha irmã, ofegante, “estafermo de uma figa.”
Joe olhou-a, impotente; depois deu uma mordida impotente, e voltou a olhar para mim.
Sabes, Pip”, disse Joe, muito sério, com a última bocada na bochecha, e falando num tom confidencial, como se nós dois estivéssemos a sós, “somos sempre amigos, tu e eu, e eu seria a última pessoa a te delatar, em qualquer ocasião. Mas…” — ele mudou de posição a cadeira e olhou para o trecho de chão entre nós dois, e depois voltou a olhar para mim — “… engolir tudo assim sem mastigar!”
Então ele anda engolindo a comida sem mastigar, é?”, exclamou minha irmã.
Tu sabes, meu velho”, disse Joe, olhando para mim, e não para a sra. Joe, com o bocado ainda na bochecha, “eu também fazia isso, quando tinha a tua idade — fazia muito — e quando menino conheci muitos que fazia a mesma coisa; mas nunca vi nada igual ao que fizeste, Pip, e não sei como não morreste entalado.”
Minha irmã saltou sobre mim e me fisgou pelos cabelos, dizendo apenas as palavras terríveis: “Vem tomar o remédio”.
Algum médico sem alma havia restituído o prestígio medicinal da água alcatroada, e a sra. Joe sempre tinha uma provisão da substância em seu armário, pois acreditava que suas virtudes eram tão grandes quanto era horrendo seu gosto. Na melhor das hipóteses, fazia-me ingerir uma quantidade tamanha desse elixir, tido como tônico excelente, que depois eu percebia que estava exalando um cheiro de cerca recém-erigida. Na noite em questão, a urgência de meu caso exigia meio litro dessa mistura, que foi despejada em minha goela, para meu maior conforto, enquanto a sra. Joe segurava minha cabeça debaixo do braço, como quem prende uma bota numa descalçadeira. Joe se safou com apenas um quarto de litro; porém foi obrigado a tomar a mistura (muito a contragosto, lentamente a mastigar e meditar diante da lareira), “porque ele estava com um achaque”. Do meu ponto de vista, eu diria que sem dúvida ele teve um achaque depois, ainda que nada tivesse antes.
A consciência é uma coisa terrível quando ela acusa um homem ou um menino; mas quando, no caso de um menino, esse ônus secreto coopera com outro ônus secreto enfiado na perna de suas calças, o resultado (como posso testemunhar) é um tremendo castigo. O pensamento culposo de que eu iria roubar a sra. Joe — jamais pensei que ia roubar Joe, pois nunca encarei os objetos da casa como propriedade dele — associado à necessidade de manter sempre uma das mãos no pão com manteiga, estando eu sentado ou realizando alguma tarefa na cozinha, quase me enlouqueceu. Então, quando os ventos que vinham do charco atiçaram o fogo, imaginei que ouvia a voz lá fora, a voz do homem com ferro na perna, que me obrigara a jurar manter segredo, afirmando que ele não podia e não queria morrer de fome esperando até amanhã, porém precisava da comida agora. Em outros momentos, eu pensava: e se o rapaz, que com tanta dificuldade ele impedia de sujar as mãos com o meu sangue, cedesse a sua impaciência constitucional, ou se enganasse a respeito do combinado e julgasse ter direito a meu coração e meu fígado naquela noite, e não no dia seguinte? Se alguma vez alguém ficou com o cabelo em pé de terror, certamente terei sido eu. Mas talvez isso jamais tenha acontecido com ninguém.
Era noite de Natal, e eu tinha que ficar a mexer o pudim para o dia seguinte no tacho de cobre, das sete às oito pelo relógio alemão. Tentei mexer com o tacho em cima da perna (o que me fez pensar outra vez no homem com o ferro na perna) e verifiquei que era impossível fazê-lo com o pão com manteiga querendo a toda hora escapulir pela boca da calça. Felizmente, consegui sair de fininho e guardar esse pedaço de minha consciência na água-furtada que me servia de quarto.
Que foi isso?”, exclamei, quando, tendo terminado de mexer o pudim, estava a me aquecer no canto da chaminé antes de ser mandado para a cama. “Foi tiro de canhão, Joe?”
Ah!”, disse Joe. “Mais um forçado que se escafedeu.”
O que quer dizer isso, Joe?”, perguntei.
A sra. Joe, que sempre assumia as explicações, disse, irritada: “Fugiu. Fugiu”. Administrando a definição como se fosse água alcatroada.
Estando a sra. Joe debruçada sobre sua costura, formei as palavras com a boca em silêncio olhando para Joe: “O que é forçado?”, Joe formou com a boca as palavras de uma resposta tão complicada que a única coisa que entendi foi: “Pip”.
Ontem um forçado escapou”, disse ele em voz alta, “depois do tiro do pôr do sol. E deram outro tiro pra anunciar a fuga dele. E agora, parece que estão anunciando mais outra.”
Quem é que está atirando?”, perguntei.
Diabo de menino”, interveio minha irmã, fechando a cara para mim sem interromper o trabalho, “não para de fazer pergunta. Não faças perguntas que não lhe dirão mentiras.”
Ela não estava sendo muito delicada consigo própria, pensei, dando a entender que mentiria para mim se eu lhe fizesse perguntas. Mas ela nunca era delicada, a menos que estivesse em presença de visitas.
A essa altura, Joe em muito aumentou minha curiosidade dando-se o trabalho de escancarar a boca ao máximo, e formar uma palavra que me pareceu ser “esgana”. Naturalmente, apontei para a sra. Joe, e formei a palavra “ela?”. Mas Joe sacudiu a cabeça com veemência, e mais uma vez escancarou a boca, formando com ela uma palavra muito enfática. Mas não consegui entender que palavra seria.
Senhora Joe”, arrisquei, como último recurso, “eu queria saber — se a senhora não se incomodar — de onde vêm esses tiros?”
Deus abençoe esse menino!”, exclamou minha irmã, num tom que parecia exprimir o sentimento contrário. “Das presigangas.”
Ah!”, disse eu, olhando para Joe. “As presigangas!”
Joe repreendeu-me com uma tosse cujo sentido era: “Eu não te disse?”
E, por favor, o que é presiganga?”
Com esse menino é sempre assim!”, exclamou minha irmã, apontando para mim com a agulha e a linha, e sacudindo a cabeça. “A gente responde uma pergunta, e ele faz mais uma dúzia na mesma hora. As presigangas são navios-prisões, do outro lado do chaco.” Era esse o nome que sempre dávamos ao charco, na nossa região.
Quem será que mandam pra esses navios-prisões, e por que será que fazem isso?”, perguntei eu, uma pergunta de caráter geral, com um desespero contido.
Foi demais para a sra. Joe, que imediatamente se levantou. “Eu vou te dizer uma coisa, rapazinho”, disse ela, “eu não te criei com a mão pra ficares a maçar a vida dos outros. Desse jeito o que fiz não merece elogio, e sim censura. Mandam pras presigangas quem mata, e quem rouba, e quem frauda, e quem faz tudo que é errado; e quem faz essas coisas sempre começa fazendo pergunta. Já pra cama!”
Nunca me deixavam levar uma vela para ir até a cama, e, enquanto subia a escada no escuro, com a cabeça latejando — por efeito do dedal da sra. Joe, que nela tocara pandeiro como acompanhamento de suas palavras finais — tive a impressão preocupante de que as presigangas eram muito práticas para gente como eu. Sem dúvida, meu destino era lá. Eu começara fazendo perguntas, e agora ia roubar a sra. Joe.
Desde aquele tempo, já muito distante agora, com frequência me ocorre o pensamento de que poucas pessoas sabem quantos segredos guardam as crianças sob o impacto do terror. Não importa que o terror seja ilógico, desde que terror seja. Inspirava-me um terror mortal o rapaz que queria meu coração e meu fígado; e também o meu interlocutor com ferro na perna; e também eu mesmo, que fora obrigado a fazer uma promessa tremenda; não tinha eu esperança de me salvar através de minha irmã todo-poderosa, que me repelia a cada passo; tremo de pensar no que eu teria sido capaz de fazer, se me mandassem, sob o impacto de meu terror secreto.
Se dormi aquela noite, foi para imaginar-me descendo o rio numa forte maré de sizígia, até chegar às presigangas; um pirata espectral gritou para mim através de um porta-voz, quando passei pelo patíbulo, que era melhor eu ir me enforcar logo de uma vez, em vez de adiar o inevitável. Eu temia adormecer, mesmo que tal fosse possível, pois sabia que assim que o dia começasse a raiar seria obrigado a saquear a despensa. Não havia como fazê-lo à noite, pois era impossível acender o fogo com um atrito suave na época; para tal seria necessário usar pederneira e aço, o que faria tanto barulho quanto o pirata a chocalhar suas correntes.
Tão logo o grande manto de veludo negro do lado de fora de minha pequena janela começou a tingir-se de cinza, levantei-me e desci; cada tábua do caminho, e cada rachadura em cada tábua, gritava atrás de mim: “Pega ladrão!” e “Acorde, senhora Joe!”. Na despensa, que estava muito mais bem abastecida do que de costume, por ser Natal, fiquei muito assustado com uma lebre dependurada pelas patas, a qual me deu a nítida impressão, quando fui lhe dar as costas, de ter piscado o olho. Não havia tempo para nenhuma verificação, para escolhas, para coisa alguma, pois eu corria contra o relógio. Roubei um pouco de pão, um pedaço de casca de queijo, cerca de meio pote de recheio de torta* (que guardei numa trouxa feita com meu lenço, junto com minha fatia de pão da véspera), um pouco de brande de uma garrafa de pedra (que eu verti dentro de uma garrafa de vidro em que, secretamente, eu preparara uma bebida inebriante, sumo de alcaçuz, no meu quarto: compensando o brande roubado com água tirada de uma jarra no armário da cozinha), um osso com muito pouca carne nele, e um belo pastelão de porco, redondo e compacto. Por um triz não saí sem o pastelão, porém senti-me tentado a subir até uma prateleira, para ver o que fora guardado com tanto cuidado num prato de cerâmica, coberto, num canto, lá encontrei o pastelão e o peguei, na esperança de que a intenção fosse consumi-lo mais tarde, e que, portanto, não se desse por sua falta por algum tempo.
Havia na cozinha uma porta que dava direto para a ferraria; destranquei-a e levantei a retranca, e peguei uma lima em meio às ferramentas de Joe. Depois fechei tudo tal como estava antes, abri a porta pela qual eu entrara na véspera, quando voltei correndo para casa, fechei-a e saí correndo em direção ao charco nevoento.

Charles Dickens, in Grandes esperanças

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