No
seu livro de memórias, Alma do Tempo, que José Olympio
publicou, Afonso Arinos de Melo Franco lembra que em 1933 ele era
diretor dos Diários Associados de Minas, e relembra alguns dos que
trabalhavam lá naquele tempo. Conta que uma vez, querendo fazer uma
perfídia com o pessoal do jornal governista A Tribuna, aproveitou-se
de uma viagem minha a Ouro Preto para escrever e assinar por mim a
crônica diária que eu fazia. Mandei-lhe então um telegrama pedindo
“que não abusasse do meu santo nome em vão”.
O
que Afonso Arinos não conta e, com certeza nem lembra é o drama
dessa minha viagem a Ouro Preto. Newton Prates ou Otávio Xavier —
não me recordo mais — mandou-me lá fazer uma reportagem sobre a
visita do ministro da Marinha, o Almirante Protógenes Guimarães. O
ministro viajou com todo o seu gabinete, o Estado-Maior da Armada,
muitos outros oficiais e toda a banda de música dos Fuzileiros
Navais, além de vários jornalistas do Rio.
Havia
um paisano encarregado de lidar com o pessoal da imprensa; era o
Augusto de Lima Júnior, o Liminha, filho do bom poeta de “Plenilúnio
de Maio em Montanhas de Minas”, irmão do excelente delegado de
polícia e pintor Renato Lima.
Desafeto
dos Melo Franco, o Liminha resolveu sabotar o repórter do único
jornal mineiro presente a Ouro Preto. Negava-me desdenhosamente todas
as informações, programas, cópias de discursos etc, que fornecia
aos meus colegas de imprensa carioca. Negou-me um lugar à mesa no
grande banquete, quando todos os outros jornalistas eram convidados.
E quando tentei me aproximar do ministro para uma entrevista, o
Liminha interpôs-se rudemente, dizendo que o almirante não tinha
declarações a fazer, e me convidando a sair do recinto.
Eu
tinha apenas (que saudade!) 20 anos, mas já fora até correspondente
de guerra (no ano anterior, durante a Revolução Constitucionalista,
na Mantiqueira) e, embora muito tímido, não me deixaria passar para
trás tão facilmente. Arranjei condução própria para acompanhar a
caravana; metia-me em toda parte sem ser convidado; convenci um
funcionário dos telégrafos a me mostrar os textos de todos os
despachos mandados pelos outros repórteres, entrei como "penetra"
no baile e assisti de pé ao banquete. Em resumo — fiz meu serviço.
E em certo momento consegui fazer uma pergunta ao ministro: que
achava ele da idéia, então aventada romanticamente, de se instalar
a Constituinte Nacional em Ouro Preto? O simpático almirante era
contra (e isto eu sabia) a instalação de qualquer Constituinte, e
respondeu de brincadeira: “Acho que a Constituinte devia ser
instalada no Quartel dos Fuzileiros Navais do Rio...”
Precipitou-se
o Liminha a interromper minha entrevista, e dois oficiais me
explicaram que aquilo era uma boutade do ministro, que eu não
deveria publicar.
Publiquei,
está visto — e o resultado foi que a recepção à comitiva em
Belo Horizonte foi a mais fria possível, em ambiente de verdadeiro
mal-estar. Além disto, irritado como estava, contei vários detalhes
pitorescos, como o fato de um jovem oficial ter assumido a regência
da orquestra durante o baile, e a senhora Maria Eugênia Celso,
convidada de honra pelos seus méritos de escritora e por ser neta do
último ministro da Marinha do Império, o Visconde de Ouro Preto,
ter recitado seu poema caipira "Meu Home" depois do brinde
oficial ao Presidente da República, no banquete. Fiz, em resumo, uma
crônica irreverente e mesmo leviana, mas totalmente verdadeira.
Tenho a idéia de que falei mal até dos santos barrocos, e disse que
o Almirante Graça Aranha tinha cara de irmão de romancista, uma
bobagem assim.
Essa
reportagem, verídica mas inconveniente, foi lida durante a viagem de
trem de Ouro Preto para Belo Horizonte, e, pela manhã, eu, que
também ia a bordo, fui identificado como seu autor. Fui cercado por
um grupo de oficiais indignados. O ministro não dormira, de tão
aborrecido. Dona Maria Eugênia Celso estava com dor de cabeça. Eu
desrespeitara a Marinha de Guerra Brasileira!
Sentado
junto à janela do trem, fraco e indefeso, percebi que havia ali duas
correntes.
As
opiniões estavam divididas, como naquela anedota do toureiro. A
metade dos oficiais achava que eu devia ser jogado pela janela do
trem, a outra metade pensava que eu devia ser massacrado ali mesmo.
Fiquei como um coelho, mas me neguei a assinar qualquer documento que
importasse em retratação; insisti em que tudo que escrevera era
rigorosamente a verdade. Um dos oficiais (lembro-me que era um
aviador naval) sugeriu, certamente penalizado, que eu confessasse que
estava bêbado ao escrever a tal crônica; que eu fosse dizer isso
pedindo desculpas ao Ministro Protógenes Guimarães. Neguei-me. Os
mais exaltados quiseram então me agredir, mas foram contidos pelos
outros. Minha juventude e minha fraqueza tornariam uma covardia
qualquer agressão, e eles sentiram isto; minha firmeza de atitude,
ao mesmo tempo que irritava uns, impressionava favoravelmente outros.
Além disto, que efeito teria em Belo Horizonte a notícia de que o
repórter do melhor jornal local fora surrado pelos oficiais da
Marinha? A discussão durou muito tempo e nunca mais fiz uma viagem
tão longa em minha vida. Meu pânico inicial transformou-se em
frieza e indiferença, como se tudo aquilo não estivesse acontecendo
comigo.
Houve
sugestões gentis — me fazer engolir o jornal, por exemplo. “Façam
o que quiserem; escrevi, está escrito” — era tudo o que eu
dizia. Alguns oficiais se afastavam, apareciam outros; ouvi
apreciações sobre minha pessoa muito pouco amáveis, mas resisti.
Justiça seja feita aos indignados oficiais: nenhum me tocou sequer.
Em
Sabará subiram ao trem o Sr. Gustavo Capanema, então secretário do
Interior de Minas, e outros homens do governo estadual, que eu
conhecia. Tratei de ficar junto deles, pois assim eu me sentia
garantido. Meu suplício acabara. Na estação em Belo Horizonte três
oficiais mais exaltados ainda tentaram me abordar, mas me coloquei ao
lado de um oficial da Força Pública mineira que conhecera no ano
anterior, na Revolução de 32, o Coronel Vargas — e eles
desistiram, receando um escândalo.
O
jornal deu uma nota se escusando pela minha desastrada reportagem;
mas o efeito político da visita do ministro estava perdido. Sua
boutade irritara profundamente os círculos políticos
favoráveis à constitucionalização, que o almirante, como velho
“tenentista”, não via com bons olhos. Tudo, afinal, culpa do
Liminha…
Rubem Braga, in Recado de primavera
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