Sabido
que reli a carta, antes e depois do almoço, sabido fica que almocei,
e só resta dizer que essa refeição foi das mais parcas da minha
vida: um ovo, uma fatia de pão, uma xícara de chá. Não me
esqueceu esta circunstância mínima; no meio de tanta coisa
importante obliterada escapou esse almoço. A razão principal
poderia ser justamente o meu desastre; mas não foi; a principal
razão foi a reflexão que me fez o Quincas Borba, cuja visita recebi
naquele dia. Disse-me ele que a frugalidade não era necessária para
entender o Humanitismo, e menos ainda praticá-lo; que esta filosofia
acomodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa, o
espetáculo e os amores; e que, ao contrário, a frugalidade podia
indicar certa tendência para o ascetismo, o qual era a expressão
acabada da tolice humana.
– Veja
São João, continuou ele; mantinha-se de gafanhotos, no deserto, em
vez de engordar tranquilamente na cidade, e fazer emagrecer o
farisaísmo na sinagoga. Deus me livre de contar a história do
Quincas Borba, que aliás ouvi toda naquela triste ocasião, uma
história longa, complicada, mas interessante. E se não conto a
história, dispenso-me outrossim de descrever-lhe a figura, aliás
mui diversa da que me apareceu no Passeio Público. Calo-me; digo
somente que se o principal característico do homem não são as
feições, mas o vestuário, ele não era o Quincas Borba; era um
desembargador sem beca, um general sem farda, um negociante sem
deficit. Notei-lhe a perfeição da sobrecasaca, a alvura da camisa,
o asseio das botas. A mesma voz, roufenha outrora, parecia restituída
à primitiva sonoridade. Quanto à gesticulação, sem que houvesse
perdido a viveza de outro tempo, não tinha já a desordem,
sujeitava-se a um certo método. Mas eu não quero descrevê-lo. Se
falasse, por exemplo, no botão de ouro que trazia ao peito, e na
qualidade do couro das botas, iniciaria uma descrição, que omito
por brevidade. Contentem-se de saber que as botas eram de verniz.
Saibam mais que ele herdara alguns pares de contos de réis de um
velho tio de Barbacena.
Meu
espírito (permitam-me aqui uma comparação de criança!), meu
espírito era naquela ocasião uma espécie de peteca. A narração
do Quincas Borba dava-lhe uma palmada, ele subia; quando ia a cair, o
bilhete de Virgília dava-lhe outra palmada, e ele era de novo
arremessado aos ares; descia, e o episódio do Passeio Público
recebia-o com outra palmada, igualmente rija e eficaz. Cuido que não
nasci para situações complexas.
Esse
puxar e empuxar de coisas opostas, desequilibrava-me; tinha vontade
de embrulhar o Quincas Borba, o Lobo Neves e o bilhete de Virgília
na mesma filosofia, e mandá-los de presente a Aristóteles. E
contudo, era instrutiva a narração do nosso filósofo; admirava-lhe
sobretudo o talento de observação com que descrevia a gestação e
o crescimento do vício, as lutas interiores, as capitulações
vagarosas, o uso da lama.
– Olhe,
observou ele; a primeira noite que passei na escada de São
Francisco, dormi-a inteira, como se fosse a mais fina pluma. Por quê?
Porque fui gradualmente de cama de esteira ao catre de pau, do quarto
próprio ao corpo da guarda, do corpo da guarda ao xadrez, do xadrez
à rua...
Quis
expor-me finalmente a filosofia; eu pedi-lhe que não.
– Estou
assaz preocupado hoje e não poderia atendê-lo; venha depois; estou
sempre em casa. Quincas Borba sorriu de um modo malicioso; talvez
soubesse da minha aventura, mas não acrescentou nada. Só me disse
estas últimas palavras à porta:
– Venha
para o Humanitismo; ele é o grande regaço dos espíritos, o mar
eterno em que mergulhei para arrancar de lá a verdade. Os gregos
faziam-na sair de um poço. Que concepção mesquinha! Um poço! Mas
é por isso mesmo que nunca atinaram com ela. Gregos, subgregos,
antigregos, toda a longa série dos homens tem-se debruçado sobre o
poço, para ver sair a verdade, que não está lá. Gastaram cordas e
caçambas; alguns mais afoitos desceram ao fundo e trouxeram um sapo.
Eu fui diretamente ao mar. Venha para o Humanitismo.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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