quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Cândido ou o Otimismo | Capítulo 5


Tempestade, naufrágio, terremoto, e o que adveio
ao dr. Pangloss e a Cândido e ao anabatista Tiago

A metade dos passageiros, enfraquecidos, expirantes por aquelas angústias inconcebíveis que o balanço de um navio provoca nos nervos e em todos os humores do corpo agitados em sentido contrário, não tinha nem de se preocupar com o perigo. A outra metade soltava gritos e fazia orações; as velas estavam rasgadas, os mastros quebrados, o casco entreaberto. Trabalhava quem podia, ninguém se entendia, ninguém comandava. O anabatista ajudava um pouco na manobra; ele estava no tombadilho; um marujo furioso bate nele com rudeza e o estende no assoalho; mas, com o golpe que deu, sofreu ele próprio uma tão grande sacudidela que caiu para fora do barco de ponta-cabeça. Ficou suspenso e dependurado a uma parte do mastro rompido. O bom Tiago corre em socorro dele, ajuda-o a subir de volta e, com o esforço que fez, é precipitado no mar à vista do marujo, que o deixou perecer sem sequer olhar para ele. Cândido aproxima-se, vê o seu benfeitor, que reaparece um momento e é engolido para sempre. Quer lançar-se atrás dele no mar; o filósofo Pangloss o impede, provando-lhe que a baía de Lisboa tinha sido feita de propósito para que o anabatista nela se afogasse. Enquanto ele provava a priori, o navio se entreabre, tudo perece, com exceção de Pangloss, de Cândido e desse desalmado marinheiro que tinha afogado o virtuoso anabatista; o malandro nadou com sucesso até a praia aonde Pangloss e Cândido foram levados em uma tábua.
Quando voltaram um pouco a si, caminharam rumo a Lisboa; ainda tinham algum dinheiro, com o qual esperavam salvar-se da fome depois de terem escapado da tempestade.
Mal colocaram os pés na cidade, chorando a morte de seu benfeitor, sentem a terra tremer sob os seus passos; o mar se ergue a ferver no porto e destroça os navios que estão ancorados. Turbilhões de chamas e de cinzas cobrem as ruas e as praças públicas; as casas desmoronam, os telhados são derrubados sobre as fundações, e as fundações se dispersam; trinta mil habitantes de qualquer idade e sexo são esmagados debaixo das ruínas. O marinheiro dizia, vaiando e blasfemando: “Haverá alguma coisa para se ganhar aqui”. “Qual poderá ser a causa suficiente deste fenômeno?”, dizia Pangloss. “Eis o último dia do mundo!”, exclamava Cândido. O marujo corre incontinente para o meio dos escombros, enfrenta a morte para procurar dinheiro, encontra, apossa-se dele, embriaga-se, e, tendo curtido o seu vinho, compra os favores da primeira mulher de boa vontade que encontra sobre as ruínas das casas destruídas e em meio a moribundos e mortos. Pangloss, entretanto, puxava-o pela manga. “Meu amigo”, dizia-lhe, “isso não fica bem; estais faltando com a razão universal, estais usando mal o seu tempo.” “Cabeça e sangue!”, respondeu o outro. “Sou marinheiro e nascido na Batávia; pisei quatro vezes sobre o crucifixo em quatro viagens ao Japão; achaste mesmo teu homem com tua razão universal!”
Alguns fragmentos de pedra tinham ferido Cândido; ele estava estendido na rua e coberto de escombros. Dizia a Pangloss: “Ai! Arranja-me um pouco de vinho e óleo; estou morrendo!”. “Este terremoto não é algo novo”, respondeu Pangloss; “a cidade de Lima sofreu os mesmos abalos na América no ano passado; mesmas causas, mesmos efeitos: existe certamente uma corrente de enxofre por baixo da terra, desde Lima até Lisboa.” “Nada é mais provável”, diz Cândido, “mas, por Deus, um pouco de óleo e de vinho.” “Como, provável?”, replicou o filósofo. “Sustento que a coisa está demonstrada.” Cândido perdeu os sentidos, e Pangloss lhe trouxe um pouco de água de um chafariz próximo.
No dia seguinte, tendo encontrado algumas provisões esgueirando-se através dos escombros, eles recuperaram um pouco as forças. Em seguida, trabalharam como os demais para aliviar os habitantes que tinham escapado da morte. Alguns cidadãos socorridos por eles deram-lhes um jantar tão bom quanto se podia após tamanho desastre. É verdade que, na refeição, os convivas regavam o pão com suas lágrimas. Mas Pangloss os consolou garantindo-lhes que as coisas não podiam ser de outra maneira: “Porque”, disse ele, “tudo isto é o que há de melhor. Pois, se há um vulcão em Lisboa, ele não podia estar noutro lugar. Porque é impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem.”
Um homenzinho de negro, familiar da Inquisição, que estava ao seu lado, tomou polidamente a palavra e disse: “Aparentemente o senhor não acredita no pecado original; pois, se tudo está o melhor, não há, então, nem queda nem punição”.
Peço muito humildemente perdão a Vossa Excelência”, respondeu Pangloss ainda mais polidamente, “pois a queda do homem e a maldição entravam necessariamente no melhor dos mundos possíveis.” “Então o senhor não crê na liberdade?”, disse o familiar. “Vossa Excelência irá me desculpar”, disse Pangloss; “a liberdade pode subsistir com a necessidade absoluta, pois era necessário que fôssemos livres; pois enfim a liberdade determinada…” Pangloss estava no meio da frase quando o familiar fez um sinal com a cabeça ao seu capanga que lhe servia vinho do Porto, ou d’Oporto.

Voltaire, in Cândido ou O Otimismo

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