terça-feira, 16 de janeiro de 2024

A ponte de Clay


Assim transcorreu aquela noite, quando Carey foi embora das Cercanias e Clay revelou o que havia dentro do embrulho.
Ele descolou a fita adesiva com delicadeza.
Dobrou bem a seção de turfe do jornal e o alisou, acomodando-o embaixo da perna. Só então olhou para o presente em si — uma caixa de madeira velha —, segurando com as duas mãos o objeto arranhado cor de avelã. Era do tamanho de um livro de capa dura, com dobradiças enferrujadas e uma lingueta quebrada.
À volta dele, as Cercanias pareciam mais vastas do que nunca.
Uma brisa sutil rondava o lugar.
Que leveza.
Clay abriu a pequena tampa de madeira, e ela rangeu como uma tábua de assoalho, caindo para trás.
Lá dentro havia outro presente.
Um presente dentro de um presente.
E uma carta.

***

Clay teria lido a carta primeiro, mas, para chegar até ela, precisou pegar o isqueiro; era um Zippo feito de estanho, quase do tamanho de uma caixa de fósforos.
Antes mesmo de pensar em segurá-lo, Clay já estava com o objeto na mão.
Girando-o.
Apertando-o.
Ficou surpreso ao notar como era pesado, e ao girá-lo outra vez ele viu; correu o dedo pelas palavras gravadas no metal:
El Matador no quinto.
Aquela menina era de outro mundo mesmo.

***

Ao abrir a carta, ficou tentado a acender o Zippo, a recorrer ao brilho de sua chama, mas o luar já provia iluminação suficiente.
A caligrafia pequena e precisa de Carey dizia:

Querido Clay,
Quando você estiver lendo isto, já teremos conversado... mas eu só queria dizer que sei que você vai partir muito em breve e que eu vou sentir saudade. Já estou com saudade.
Matthew me contou sobre um lugar remoto e uma ponte que você talvez vá construir. Tento imaginar do que essa ponte será feita, mas no fim das contas acho que isso não fará diferença. Queria poder levar crédito pela frase, mas sei que você vai se lembrar dela, do texto de orelha de O marmoreiro:

tudo que ele construiu na vida era feito não apenas de bronze ou de mármore ou de tinta, mas dele... e de tudo que havia dentro dele.”

Tenho certeza de uma coisa:
Essa ponte vai ser feita de você.
Se não tiver problema, quero ficar com o livro por enquanto... Talvez para me certificar de que você vai voltar um dia para buscar, e voltar também pras Cercanias.

Quanto ao Zippo, dizem que quem brinca com fogo acaba se queimando, mas quero te dar o isqueiro de presente mesmo assim, ainda que seja só para dar sorte e para que tenha algo que o faça se lembrar de mim. Além disso, um isqueiro até que faz sentido. Clay, argila. E você sabe o que dizem sobre a argila, não sabe? É claro que sabe.
Com amor,
Carey

P.S.: Me desculpe pelo estado da caixa, mas algo me diz que você vai gostar dela mesmo assim. Pode usá-la para guardar algumas coisas preciosas. Mal não vai fazer. Coloque mais coisas aí, e não só um pregador.

P.P.S.: Espero que goste da gravação.

Bem, o que você faria?
O que você diria?
Clay continuou lá, no colchão, imóvel.
Perguntou a si mesmo:
O que, afinal, dizem sobre a argila?
Mas então, de repente, entendeu.
Na verdade, compreendeu antes mesmo de chegar ao fim da pergunta, e permaneceu nas Cercanias por um bom tempo. Leu e releu a carta.
Por fim, quando rompeu a imobilidade, foi apenas para pegar o isqueiro pequeno e pesado e encostá-lo nos lábios. Por um momento, quase sorriu:
Essa ponte vai ser feita de você.
Não que Carey apreciasse atos grandiosos ou quisesse receber atenção, amor, ou sequer respeito. Não. Carey era feita de pequenos gestos, dando a tudo seu toque descomplicado da verdade — e daquela vez não fora diferente, ela tinha conseguido:
Deu a Clay uma dose a mais de coragem.
E deu um rumo a esta história.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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