Les Halles (1889), de León Augustin Lhermitte
As
pessoas falam da arte do futuro referindo-se a algo novo,
especialmente refinado, que supostamente se desenvolverá a partir da
arte de uma só classe da sociedade, que hoje é considerada a arte
mais elevada. Mas essa arte do futuro não pode ser e não será. A
arte exclusiva das classes superiores do mundo cristão chegou a um
beco sem saída. Não há como ir mais longe na rota que ela seguiu.
Essa arte, que se separou um dia da sua principal exigência (a de
ser orientada pela consciência religiosa), tornando-se cada vez mais
exclusiva e, portanto, cada vez mais pervertida, não chegou a nada.
A arte do futuro não será uma continuação da de hoje, mas
emergirá sobre novos princípios, completamente diferentes, sem nada
em comum com aqueles pelos quais se orienta a atual arte moderna da
alta classe.
A
arte do futuro — isto é, aquela parte que será escolhida da arte
em geral espalhada pela humanidade — consistirá não na
transmissão de sentimentos acessíveis somente a alguns contemplados
das classes ricas, como acontece agora, mas será aquela que realiza
a mais alta consciência religiosa das pessoas do nosso tempo.
Somente essas serão consideradas obras de arte que transmitem
sentimentos que atraem as pessoas em direção à união fraterna, ou
sentimentos que sejam capazes de unir a todos. Apenas essa arte será
escolhida, permitida, aprovada e disseminada. Mas a que transmite
sentimentos oriundos de doutrinas religiosas obsoletas, ultrapassadas
— arte da Igreja, arte patriótica, sensual, arte que transmite
sentimentos de medo supersticioso, orgulho, vaidade e admiração de
heróis, que excita a sensualidade ou o amor exclusivo da própria
nação —, será considerada ruim e prejudicial, e será condenada
e desprezada pela opinião pública. Todo o resto da arte, que
transmite sentimentos acessíveis somente a alguns, será considerado
desimportante e não será nem condenado nem aprovado. E, no geral,
não será uma classe restrita que apreciará a arte, mas todo o
povo; de tal forma que, para uma obra ser reconhecida como boa e ser
aprovada e disseminada, ela terá que satisfazer as exigências não
de alguns eleitos que vivem em condições idênticas e,
frequentemente, antinaturais, mas de todo o povo, toda a grande massa
que vive da condição natural de seu trabalho.
E
os artistas que produzem arte não serão mais, como hoje, somente
alguns das classes privilegiadas, ou próximos a elas, escolhidos de
uma pequena porção da população, mas todos os representantes
talentosos do povo que mostrem uma capacidade para a atividade
artística e uma inclinação para ela.
A
atividade artística será então acessível a todos. Ela se tornará
compreensível a cada pessoa simples porque, primeiro, a arte do
futuro não exigirá aquela técnica complexa que desfigura as obras
de nossa época e requer grande esforço e tempo para ser assimilada,
mas, ao contrário, exigirá clareza, simplicidade e brevidade —
condições adquiridas pela educação do gosto e não por exercícios
mecânicos. Em segundo lugar, a atividade artística se tornará
acessível a todos porque, em vez de as escolas profissionais
existentes, frequentadas por poucos, se ocuparem com a educação
artística, será nas escolas públicas primárias que todos
estudarão música e pintura (canto e desenho), juntamente com
leitura e escrita, de forma que cada um, ao adquirir os primeiros
princípios da pintura e da música, possa, caso sinta uma inclinação
por uma dessas artes, aperfeiçoar-se nela; e, em terceiro lugar,
porque todas as forças hoje gastas em arte falsa serão empregadas
em difundir a verdadeira arte por todo o povo.
Supõe-se
que, a menos que haja escolas especiais, a técnica da arte se
enfraquecerá. Ela sem dúvida se enfraquecerá se entendemos por
técnica essas complicações que são vistas hoje como méritos. Mas
se entendermos por técnica a clareza, beleza, simplicidade e
economia, ela, além de se fortalecer, como mostra toda a arte
popular, vai se aperfeiçoar cem vezes mais, mesmo que não haja
escolas profissionais, mesmo que os princípios do desenho e da
música não sejam ensinados nas escolas públicas. Ela se
aperfeiçoará porque todos os gênios hoje escondidos entre o povo
participarão da arte e, sem necessitar de complicado treinamento
técnico, como agora, e tendo exemplos de verdadeira arte diante
deles, seguirão pelos caminhos da arte genuína.
Mesmo
hoje, o verdadeiro artista não aprende na escola, mas na vida, pelos
exemplos dos grandes mestres. E quando as pessoas mais talentosas do
povo forem participantes da arte e houver mais desses exemplos, e
estes forem mais e mais acessíveis, o treinamento de escola, do qual
os futuros artistas estarão privados, será cem vezes compensado
pelo treinamento que se vai obter dos numerosos exemplos de boa arte
difundidos na sociedade.
Essa
será uma diferença entre a arte do futuro e a do presente. Outra
diferença: a arte do futuro não será produzida por artistas
profissionais que são remunerados e que não se ocupam com nada mais
além disso. A arte do futuro será produzida por todos, que se
ocuparão dela quando sentirem necessidade dessa atividade.
Pensa-se,
na nossa sociedade, que um artista se empenhará mais se estiver
materialmente seguro. Essa opinião prova mais uma vez e plenamente,
se ainda há necessidade de prová-lo, que o que é considerado arte
entre nós não é arte, mas meramente um simulacro dela. Está certo
que a divisão do trabalho é muito vantajosa para a produção de
botas ou de pão, que um sapateiro ou um padeiro que não precise
fazer o jantar ou cortar lenha para si mesmo fará mais botas ou pão
do que se ele tiver que providenciar seu próprio jantar e lenha para
o fogo. Porém, a arte não é um ofício, é a transmissão de um
sentimento experimentado pelo artista. E um sentimento só pode
nascer em um homem se este vive a vida multifacetada que é natural e
adequada para os seres humanos. E eis o motivo por que dar aos
artistas segurança quanto a suas necessidades materiais é a
condição mais prejudicial para a produtividade artística: porque
ela o libera da condição que é própria a todos os homens, a de
lutar com a natureza para sustentar sua vida e a de outras pessoas,
e, portanto, o priva da oportunidade e da possibilidade de
experimentar sentimentos importantes próprios dos seres humanos.
Nenhuma situação é mais prejudicial para a produtividade artística
do que a de total segurança e luxo — situação na qual geralmente
vivem os artistas em nossa sociedade.
O
artista do futuro viverá tal como qualquer ser humano, ganhando seu
sustento em algum tipo de trabalho. Ele lutará para dar o fruto
daquela suprema força espiritual que passa através dele ao maior
número possível de pessoas, porque essa transmissão é sua alegria
e sua recompensa. O artista do futuro, cuja felicidade consistirá na
mais ampla disseminação de suas obras, nem mesmo entenderá como é
possível fazer seu trabalho em troca de determinado pagamento.
Até
que os vendilhões sejam expulsos, o templo da arte não será um
templo. A arte do futuro os expulsará.
Assim,
o conteúdo da arte do futuro, como imagino, será completamente
diferente do de hoje. Não consistirá na expressão de sentimentos
exclusivos — vaidade, tédio, saciedade e sensualidade em todas as
formas possíveis, acessíveis e interessantes apenas para aqueles
que se liberaram do trabalho próprio dos seres humanos —, mas,
sim, na expressão de sentimentos experimentados por um homem comum,
sentimentos os quais vêm da consciência religiosa da época —
acessíveis a todos, sem exceção.
Para
as pessoas do nosso círculo, que não conhecem os sentimentos que
deverão compor o conteúdo da arte do futuro, parece que esse
conteúdo é muito pobre em comparação com as sutilezas da arte
exclusiva com a qual estão ocupadas hoje. “O que pode ser
expressado de novo na esfera dos sentimentos cristãos de amor ao
próximo? Os sentimentos acessíveis a todos são tão
insignificantes e monótonos”, pensam eles. E, no entanto, em nossa
época, os únicos sentimentos que podem realmente ser novos são os
religiosos cristãos ou aqueles que são acessíveis a todos. Os
sentimentos que vêm da consciência religiosa de nosso tempo são
infinitamente novos e variados; só que não, como pensam alguns, no
sentido de retratar Cristo e episódios dos Evangelhos, ou repetir de
uma nova forma as verdades cristãs de unidade, fraternidade,
igualdade e amor, mas no sentido de que todos os fenômenos mais
antigos e ordinários da vida, conhecidos há muito por todos os
lados, evocam os sentimentos mais novos, inesperados e tocantes,
assim que uma pessoa os considera de um ponto de vista cristão.
O
que pode ser mais antigo do que as relações entre esposos, de pais
com filhos, de filhos com pais, as relações das pessoas com seus
compatriotas, com estrangeiros, com ataque, defesa, propriedade,
terra, animais? Mas, tão logo se olham esses fenômenos de um ponto
de vista cristão, imediatamente se levantam sentimentos mais novos,
complexos, tocantes e infinitamente variados.
Da
mesma maneira, não há um estreitamento, mas uma ampliação da área
de conteúdo para a arte do futuro que irá transmitir os sentimentos
mais simples e cotidianos, acessíveis a todos. Na nossa arte, o que
é considerado digno de ser transmitido é somente a expressão de
sentimentos próprios de uma determinada classe, e isso com a
condição de que seja transmitida da maneira mais refinada,
inacessível à maioria; mas todo o enorme campo da arte infantil
popular — piadas, provérbios, adivinhações, canções, danças,
jogos infantis, mímica — não é considerado um objeto digno da
arte.
O
artista do futuro entenderá que inventar uma historinha, uma canção
tocante, uma cançoneta, uma charada divertida, uma brincadeira
engraçada, fazer um desenho que dará alegria a dezenas de gerações
ou a milhões de crianças e adultos é incomparavelmente mais
importante e frutífero do que escrever um romance ou uma sinfonia ou
pintar um quadro que distrairá por curto tempo alguns membros da
classe rica e depois será esquecido para sempre. O campo dessa arte
dos sentimentos simples e acessíveis é enorme e até agora quase
intocado.
Assim,
a arte do futuro não será empobrecida. Ao contrário, será
infinitamente enriquecida de conteúdo. E dessa mesma maneira, a
forma da arte do futuro não será inferior à forma da arte de hoje,
será, sim, incomparavelmente superior — prevalecerá, em
detrimento da técnica refinada e complexa, o talento do artista em
transmitir de forma breve, simples e clara, sem supérfluos, o
sentimento que experimentou.
Lembro-me
de haver conversado certa vez com um astrônomo famoso que dava
palestras públicas sobre a análise espectral das estrelas da Via
Láctea e de lhe dizer que bom seria se ele, com seu conhecimento e
competência, desse uma palestra sobre cosmografia, na qual falasse
somente dos movimentos mais conhecidos da Terra, porque entre os seus
ouvintes certamente havia muitas pessoas, especialmente mulheres, que
não sabiam bem por que havia dia e noite, verão e inverno. O sábio
astrônomo replicou com um sorriso: “Sim, seria uma coisa muito
boa, mas é muito difícil. Discursar sobre a análise espectral das
estrelas da Via Láctea é muito mais fácil.”
Ocorre
o mesmo na arte: escrever um longo poema sobre o tempo de Cleópatra,
ou pintar um quadro de Nero incendiando Roma, ou compor uma sinfonia
no espírito de Brahms ou Richard Strauss, ou uma ópera no espírito
de Wagner, é muito mais fácil do que contar uma história simples
sem nada de supérfluo e, ao mesmo tempo, de um modo tal que
transmita os sentimentos do narrador, ou de fazer um desenho a lápis
que emocione o observador ou o faça rir, ou escrever quatro
compassos de uma melodia simples e clara que transmita um estado de
espírito e seja lembrada pelos que a ouviram. “É impossível para
nós, agora, com o nosso desenvolvimento, voltar aos meios
primitivos”, diz o artista dos nossos dias. “É impossível para
nós escrever histórias como a de José, o Sonhador, ou a
Odisseia, fazer estátuas como a Vênus de Milo,
escrever músicas como as canções populares.”
E
de fato é impossível para os artistas da nossa época, mas não
para os do futuro, que não conhecerá toda a depravação do
progresso técnico que oculta a ausência de conteúdo, e que, por
não ser um profissional e não ter remuneração por suas
atividades, produzirá arte somente quando sentir uma necessidade
interior irrepresável.
Assim,
a arte do futuro será completamente diferente daquilo que hoje é
considerado arte, tanto em conteúdo quanto em forma. Ela conterá
somente aqueles sentimentos que atraem as pessoas em direção à
união. Quanto à forma, ela será acessível a todos. E, portanto, o
ideal de perfeição no futuro não será a exclusividade de um
sentimento compreensível somente para alguns, mas, ao contrário,
será a sua universalidade. Esse ideal não será embaraçamento,
obscuridade e complexidade, como hoje, mas brevidade, clareza e
simplicidade de expressão. E, apenas quando a arte se tornar assim,
ela cessará de distrair e corromper as pessoas, exigindo o
desperdício de suas melhores forças, como faz agora, e se tornará
o que deveria ser — um meio de transferir a consciência religiosa
cristã do campo da mente e da razão para o campo do sentimento,
colocando desse modo as pessoas mais próximas, na prática, na
própria vida, da perfeição e da unidade apontadas para elas pela
consciência religiosa.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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