No
domingo, Rube voltou a perder de lavada era campo, o time de Steve
perdeu sem ele, e eu perambulei um pouco pelas ruas. Não estava com
vontade de voltar para casa naquele dia. Algumas vezes, você
simplesmente não tem vontade, sabe? Era hora de esclarecer umas
coisas.
Primeiro,
deixei que os terríveis acontecimentos da véspera nublassem meu
caminho enquanto andava. Andei além do Lumsden Oval, me aprofundando
na cidade, e preciso lhe dizer que tinha tanta gente esquisita que,
quando cheguei em casa, me sentia realmente satisfeito por voltar.
Estava
usando jeans e botinas, tinha tomado banho de manhã e, na verdade,
lavado o cabelo. Enquanto caminhava, ainda sentia o cabelo arrepiando
de maneira incontrolável, como se fizesse isso para me expor. Mesmo
assim, eu me sentia bem por estar limpo.
Talvez
o coroa esteja certo pensei comigo mesmo. Toda aquela ladainha que
ele repete de que somos sujos, uma vergonha... Acho que é bom estar
limpo.
As
lojas de sempre ficaram para trás quando passei. Sorveterias.
Lanchonetes. Também passei por uma barbearia, e lá tinha um careca
cortando o cabelo de um cara de um jeito tão feroz que me deu medo.
Sempre vejo uma coisa assim, um tipo de maldade contra um ser humano
que só pode me fazer cair ou tropeçar com uma surpresa cruel. Ou
ficar inquieto. Naquele dia, lembro que isso me fez tentar convencer
o cabelo a baixar, mas imediatamente ele voltou a ficar espetado.
No
fim das contas, o dia e a caminhada não foram o sucesso nem a
renovação que eu estava procurando.
Continuei
andando.
Você
já fez isso? Só andar.
Só
andar, sem ideia de aonde vai chegar? Não era uma sensação boa,
mas também não era ruim. Eu me senti preso e livre, ao mesmo tempo,
como se eu mesmo fosse a única pessoa que não me permitisse ser
grande ou infeliz. Como sempre, o trânsito ecoava a meu redor,
aumentando a sensação de que eu não pertencia a lugar nenhum. Nada
era fixo. Tudo se movia. Se transformava em alguma coisa. Igualzinho
a mim.
Desde
quando eu tinha algo dentro de mim para uma garota? Desde quando me
importava com minha irmã e com o que acontecia na vida dela? Desde
quando ligava para o que Rube tinha na cabeça? Desde quando ouvia
Steve Bem-Sucedido e me importava se ele olhava ou não de cara feia?
Desde quando ficava andando sem rumo? Caminhando, quase vagando,
pelas ruas? Então me dei conta.
Eu
estava só.
Eu
estava só.
Não
dava pra negar.
Tinha
certeza.
Sabe,
eu nunca fui um cara com um monte de amigos. Além do Greg Fienni,
nunca tive realmente amigos. Meio que fiquei na minha. Odiava isso,
mas também me orgulhava.
Cameron
Wolfe não precisava de ninguém. Não precisava estar no meio do
bando. Nem todo mundo gosta de andar por aí. Não, precisava apenas
do instinto. Precisava apenas era dele mesmo, e poderia sobreviver às
lutas de boxe no quintal de casa, aos roubos e a qualquer outra
vergonha que viesse pela frente. Então, por que me sentia tão
estranho agora? Vamos ser sinceros. Tinha que ser por causa da
garota.
Tinha
que ser.
Não.
Era
por causa de tudo.
Era
a minha vida.
Estava
ficando complicada.
Minha
vida, e, enquanto caminhava ao longo da rua agitada, vi o céu acima
de mim. Vi os edifícios, os apartamentos caindo aos pedaços, uma
tabacaria cheia de fuligem, outra barbearia, fios elétricos, lixo
nas sarjetas. Um morador de rua me pediu dinheiro, mas eu não tinha.
A cidade estava à minha volta, inspirando e expirando como os
pulmões de um fumante.
Quase
de imediato, parei de caminhar quando percebi que toda aquela
sensação boa tinha desaparecido de mim. Talvez tivesse saído de
mim para ser dada ao morador de rua. Talvez tivesse desaparecido em
alguma parte do meu estômago e eu nem tivesse percebido. Tudo o que
havia agora era essa ansiedade que eu não podia explicar.
Que
visão. Que sensação. Era terrível: um garoto muito magro, parado,
sozinho. Essa era a conclusão. Sozinho, e não me sentia preparado
para lidar com isso. Muito de repente. Sim, de repente, não me senti
como se pudesse lidar com meu sentimento de solidão.
Era
assim que ia ser para sempre? Eu sempre ia viver com esse tipo de
falta de confiança em mim mesmo, de dúvida em relação à
civilização à minha volta? Eu sempre ia me sentir tão pequeno que
ia doer, e que mesmo o grito mais alto, rugindo da minha garganta,
era, na verdade, apenas um lamento? Será que meus passos sempre iam
parar de modo tão súbito e afundar no caminho? Eu ia sempre? Eu ia?
Ia? Era terrível, mas ergui os pés e continuei andando. Não pense,
falei para mim mesmo. Não pense em nada. Porém, mesmo o nada era
alguma coisa. Era um pensamento.
Era
um pensamento, e as sarjetas ainda estão cheias das entranhas
inchadas e soltas da cidade Eu não me achava capaz de lidar com
isso, mas caminhei sem prestar atenção, tentando desencavar uma
nova ideia que faria as coisas melhorarem de novo.
Você
não pode se preocupar assim, aconselhei a mim mesmo um pouco mais
tarde, quando cheguei à Central Station. Parei perto de uma banca de
jornal durante um tempo, olhando a Rolling Stone e todo tipo de
coisas. Era perda de tempo, claro, mas, de qualquer forma, fiz isso.
Se tivesse dinheiro comigo, teria entrado num trem e ido até o cais,
só para dar uma olhada na ponte, na água e nos barcos por lá.
Talvez houvesse um mendigo lá ou algum outro pobre-diabo a quem eu
não pudesse dar dinheiro, de qualquer forma, porque não tinha nada
comigo.
Mas,
então, se tivesse dinheiro para o trem, talvez tivesse para dar ao
pobre artista de rua. Talvez pudesse dar uma volta de barca pelo
porto. Talvez. Talvez…
A
palavra talvez estava começando a me irritar, porque a única coisa
certa era que talvez me acompanhasse para sempre.
Talvez
a garota tivesse algo dentro dela para mim.
Talvez
Sarah e Bruce ficassem bem.
Talvez
Steve voltasse para o trabalho e para o campo de jogo tão rápido
quanto queria. Talvez, um dia, não olhasse de cara feia para mim.
Talvez
o coroa sentisse orgulho de mim um dia, talvez, quando a gente
terminasse o serviço dos Conlon.
Talvez
minha mãe não tivesse que ficar na frente do fogão, à noitinha,
preparando cogumelos e salsichas, depois de trabalhar o dia inteiro.
Talvez
eu pudesse cozinhar.
Talvez
Rube me dissesse uma noite dessas o que se passava na cabeça dele.
Ou talvez deixasse a barba crescer até o pé e virasse um tipo de
sábio.
Talvez
eu acabasse fazendo alguns amigos uma hora dessas.
Talvez
tudo isso acabasse amanhã.
Talvez
não.
Talvez
só tivesse que andar um pouco mais, até o Circular Quay, pensei,
mas decidi que não, pois uma coisa que não era só um talvez era
que mamãe e papai iam acabar comigo, se eu me atrasasse.
Depois
de ouvir o cara do alto-falante dizer cinquenta vezes: "O trem
na plataforma dezessete vai para MacArthur" ou outro lugar
qualquer, voltei para casa, vendo todas as minhas dúvidas pelo outro
lado. Você já viu dessa forma? Como quando se está de férias. Na
volta para casa, tudo está igual, mas parece um pouco diferente do
que era no caminho. É porque você está vendo de trás para a
frente.
É
assim que as coisas são, e, quando voltei para casa, fechei o
pequeno portão principal, meio quebrado, que não fechava direito,
entrei e me sentei no sofá. Perto da almofada fedida. Na frente do
Steve.
Depois
de meia hora da reprise de Agente 86 e de uma parte do noticiário,
Rube entrou na sala. Sentou, olhou para o relógio e comentou: —
Que droga, a mamãe está mesmo atrasada com o jantar.
Olhei
para ele.
Talvez
eu o conhecesse.
Talvez
não.
Eu
conhecia o Steve, porque ele era menos complicado. Os vencedores
sempre são. Sabem exatamente o que querem e como vão conseguir.
— Desde
que não seja o de sempre — falei em voz alta para Rube.
O
quê? — O jantar de sempre.
— Ah,
tá. — Fez uma pausa. — É só o que ela prepara, não é? Nesse
momento, tenho que admitir que todas as queixas sobre o jantar me
envergonham agora, sobretudo, por causa do modo como as pessoas nas
ruas da cidade ficam pedindo comida. Mas é fato: eu me queixava.
Mesmo
assim, fiquei nas nuvens quando descobri que não íamos ter
cogumelos no domingo à noite.
Talvez
as coisas finalmente melhorassem.
Ou,
talvez, não.
Estou
correndo.
Indo
atrás de alguém que não parece existir, e, de vez em quando, digo
a mim mesmo que estou atrás de nada. Digo a mim mesmo para parar,
mas nunca paro.
A
cidade é invadida à minha volta pela ampla luz do dia, mas não tem
ninguém na rua.
Não
tem ninguém nos edifícios, nem nos apartamentos, nem nas casas. Não
tem ninguém em parte alguma. Os trens e ônibus se movem sozinhos.
Sabem o que fazer. Expiram, mas nunca inspiram. É só um jorro
contínuo de algo sem emoção, e estou só.
Tem
Coca-Cola derramada na rua. Escorre para dentro dos bueiros feito
sangue.
Ouvem-se
as buzinas dos carros.
Os
freios respiram ruidosamente, e então, os carros seguem adiante.
Caminho.
Ninguém.
Ninguém.
É
estranho, penso, como tudo pode simplesmente seguir em frente sem
todas as pessoas. Talvez as pessoas estejam lá, mas eu não possa
vê-las. As vidas delas as varreram da minha visão. Pode ser que as
almas vazias delas as tenham engolido.
Vozes.
Ouço
vozes? Estou num cruzamento, um carro me acompanha, e sinto que
alguém está olhando para mim, mas é o vazio que me encara. Quando
o carro parte, ouço uma voz, que desvanece.
Corro.
Persigo
o carro, ignorando os sinais barulhentos de "não atravesse"
que piscam para mim e ressoam em meus ouvidos, caso eu seja cego.
Sou
cego? Não. Eu vejo.
Continuo
correndo, e toda a cidade passa correndo por mim como se eu fosse
conduzido por uma força humano-alienígena. Esbarro em pessoas
invisíveis e continuo correndo.
Estou
vendo... carros, rua, poste, ônibus, faixa de pedestres, faixa
contínua, cruzamento, atravesse, motor engasgando, não atravesse,
poluição, sarjeta, não ultrapasse, sorveteria, loja de armas,
facas baratas, reggae, discoteca, garotas ao vivo, outdoor da Calvin
Klein com um homem e uma mulher de roupa íntima. Imenso. Fios,
monotrilho, verde, amarelo, vermelho, todos os três, ande, pare,
corra, corra, cruze, vire sempre à esquerda com cuidado, Howard
Showers, bueiros, salve o Timor Leste, parede, janela, espírito, saí
para o almoço, volto em cinco minutos.
Não
havia tempo.
Corro
até minha calça rasgar e meus sapatos serem apenas o peito do pé
com um resto de material em volta dos tornozelos. Os dedões estão
sangrando. Tento andar em meio à Coca-Cola e à cerveja. Respinga na
minha perna e escorre.
Ninguém
está lá.
Onde
está todo mundo? Onde? Nenhum rosto, só movimento.
Caio.
Estou exausto. Cabeça rachada na sarjeta. Acordado.
Mais
tarde.
As
coisas mudaram, e agora as pessoas estão em toda parte. Estão em
toda parte onde devem estar: nos ônibus, nos trens, na rua.
— Ei!
— digo para o homem de terno que aguarda o sinal de pedestres. Ele
age como se pudesse ter ouvido alguma coisa, mas segue em frente
quando vê o sinal correto.
As
pessoas vão direto até mim e posso jurar que estão tentando me
pisotear.
Então,
percebo.
Elas
vão direto até mim porque não podem me ver.
Agora
eu é que estou invisível.
Markus Zusak, in O Azarão
Nenhum comentário:
Postar um comentário