Na
minha família, em minha terra, ninguém conheceu uma vez um homem,
de mais excelência que presença, que podia ter sido o velho rei ou
o príncipe mais moço, nas futuras estórias de fadas. Era
fazendeiro e chamava-se Tio Man’Antônio.
Sua
fazenda, cuja sede distava de qualquer outra talvez mesmo dez léguas,
dobrava-se na montanha, em muito erguido ponto e de onde o ar num
máximo raio se afinava translúcido: ali as manhãs dando de plano
e, de tarde, os tintos roxo e rosa no poente não dizendo de bom nem
mau tempo. Essa fazenda, Tio Man’Antônio tivera-a menos por
herança que por compra; e tão apartado em si se conduzia ele,
individido e esquivo na conversa, que jamais quase a referisse pelo
nome, mas, raro e apenas, sobmaneira: — “... Lá em casa... Vou
para casa...”
À
que — assobradada, alicerçada fundo, de tetos altos, longa, e com
quantos sem uso corredores e quartos, cheirando a fruta, flor, couro,
madeiras, fubá fresco e excremento de vaca — fazia face para o
norte, entre o quintal de limoeiros e os currais, que eram um ornato;
e, à frente, escada de pau de quarenta degraus em dois lanços
levava ao espaço da varanda, onde, de um caibro, a um canto, pendia
ainda a corda do sino de outrora comandar os escravos assenzalados.
Tio
Man’Antônio, esperava-o lá a mulher, Tia Liduína, de árdua e
imemorial cordura, certa para o nunca e sempre. E rodeavam-no as
filhas, singelas, sérias, cuidosas, como supridamente sentiam que o
amavam. Salvavam-no, com invariável sus’Jesus, desde bem antes da
primeira cancela, diversidade de servos, gente indígena, que por
alhures e além estanciavam. Mas, ele, de cada vez, se curvava, de um
jeito, para entrar, como se a elevada porta fosse acanhada e alheia,
convidadamente, aos bons abrigos. Vivia, feito tenção. Assim, a
respeito dele, muita real coisa ninguém sabia.
Só
se de longe. Senão quando vinha, constante, serra acima, a retornar
viagem, galgando caminhos fragosos, à beira de despenhadeiros e
crevassas — grotas em tremenda altura. Da varanda, dado o dia
diáfano, já ainda a distância de tanto e légua avistavam-no,
pontuando o claro do ar, em certas voltas de estrada, a aproximar-se
e desaproximar-se, sequer sequente. Insistindo, à cavalga no burro
forçoso e manso, aos poucos avançava, Tio Man’Antônio, em
rigoroso traje, ainda que a ordinária roupa de brim cor de barro,
pois que sempre em grau de reles libré; e sem polainas nem botas,
quiçá nem esporas. A tento, amiúde, distinguir-se-iam mesmo seus
omissos gestos principais: o de, vez em vez, fazer que afastava,
devagar, de si, quaisquer coisas; o de alisar com os dedos a testa,
enquanto pensava o que não pensava, propenso a tudo, afetando um
cochilo. Nem olhasse mais a paisagem?
Sim,
se os cimos — onde a montanha abre asas — e as infernas grotas,
abismáticas, profundíssimas. Tanto contemplava-as, feito se, a
elas, algo, algum modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança
e expiação, sacrifícios, esforços — à flor. Seria, por isso,
um dia topasse, ao favorável, pelo tributo gratos, o Rei-dos-Montes
ou o Rei-das-Grotas — que de tudo há e tudo a gente encontra? De
si para si, quem sabe, só o que inútil, novo e necessário,
segredasse; ele consigo mesmo muito se calava. Pois era assim que
era, se; só estamos vivendo os futuros antanhos. Demais não se
ressentisse, também, de sequidão, solidão, calor ou frio, nem do
quotidiano desconforto tirava queixa. Mas debruçado, leve a
cabecear, e com cerrada boca, expirando ligeiro ofego. Debilitada a
vista, nos tempos agora. Por essa época, porém, sim; por uso.
Olhava, com a seu nem ciente amor, distantemente, fundos e cumes.
Seduzível conheceu-se, ele, de encarar sempre o tudo? Chegava, após
íngremes horas e encostas.
Sua
mulher, Tia Liduína, então morreu, quase de repente, no entrecorte
de um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta. Tio Man’Antônio,
com nenhum titubeio, mandou abrir, par em par, portas e janelas, a
longa, longa casa. Entre que as filhas, orfanadas, se abraçavam, e
revestia-se a amada morta, incôngruo visitou ele, além ali, um pós
um, quarto e quarto, cômodo e cômodo.
Pelas
janelas, olhou; urgia a divagação. Passou a paisagem pela vista, só
a segmentos, serial, como dantes e ainda antes. De roda, na
vislumbrança, o que dos vales e serros vem é o que o horizonte é —
tudo em tudo. Pois, noutro lanço de vista, ele pegava a paisagem
pelas costas: as sombras das grotas e a montanha prodigiosa, a
vanecer-se, sobre asas. Ajudavam-no, de volta, agora que delas
precisava? Definia-se, ele, ali, sem contradição nem resistência,
a inquebrantar-se, desde quando de futuro e passado mais não
carecia. Talvez, murmurasse, de tão dentro em si, coisas graves,
grandes, sem som nem sentido.
Enfim,
tornou para junto delas, de sua Liduína — imovelmente — ao
século, como a quisessem: num amontôo de flores. Suspensas, as
filhas, de todo ao não entender, mas adivinhar, dele a crédito vago
esperassem, para o comum da dor, qualquer socorro. Ele, por detrás
de si mesmo, pondo-se de parte, em ambíguos âmbitos e momentos,
como se a vida fosse ocultável; não o conheceriam através de
figuras. Sendo que refez sua maciez; e era uma outra espécie,
decorosa, de pessoa, de olhos empalidecidamente azuis. Mas fino,
inenganador, o rosto, cinzento moreno.
Transluz-se
que, fitando-o, agora, era como se súbito as filhas ganhassem ainda,
do secesso de seus olhos, o insabível curativo de uma graça, por
quais longínquos, indizíveis reflexos ou vestígios. Felícia,
apenas, a mais jovem, clamou, falando ao pai: — “Pai, a vida é
feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá, para a gente,
algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?” E ele,
com muito caso, no devagar da resposta, suave a voz: — “Faz de
conta, minha filha... Faz de conta...” Entreentendidos, mais
não esperaram. Cabisbaixara-se, Tio Man’Antônio, no dizer essas
palavras, que daí seriam as suas dele, sempre. Sobre o que, leve,
beijou a mulher. Então, as filhas e ele choraram; mas com o poder de
uma liberdade, que fosse qual mais forte e destemida esperança.
Tia
Liduína, que durante anos de amor tinham-na visto todavia sorrir
sobre sofrer — só de ser, vexar-se e viver, como, ora, dá-se —
formava dolorida falta ao uso de afeto de todos. Tia Liduína, que já
fina música e imagem.
Com
ver, porém, que Tio Man’Antônio a andar de dó se recusasse,
sensato sem cuidados, intrágico, sem acentos viuvosos. Inaugurava-se
grisalho, sim, um tanto mais encolhidos os ombros. Ele — o
transitório — só se diga, por esse enquanto. Nada dizia, quando
falava, às vezes a gente mal pensava que ele não se achasse lá, de
novo assim, sem som, sem pessoa. Ao revés, porém, Tio Man’Antônio
concebia. — “Faça-se de conta!” — ordenou, em hora,
mansozinho. Um projeto, de se crer e obrar, ele levantava. Um, que
começaram.
Seus
pés-no-chão muitos camaradas, luzindo a solsim foices, enxadas,
facões, obedeciam-lhe, sequacíssimos, no que com talento de braços
executavam, leigos, ledos, lépidos. Mas ele guiava-os, muito
cometido, pelos sabidos melhores meios e fins, engenheiro e fazedor,
varão de tantas partes; associava com eles, dava coragem. — “Faz
de conta, minha gente... Faz de conta...” — em seu bom
sussurro, lábios de entre-sorriso, mas severo, de si inflexível,
que certo. Matinava, dia por dia, impelindo-os, arrastando-os, de
industriação, à dobrada dobadoura, a derrubarem mato e cortar
árvores, no que era uma reformação — a boa data de trabalhos.
Seja que esses homens, esforçados e avindos, lerdos e mandriões,
nem percebessem ali sujeição e senhoria, senão que, de siso,
estimavam-no, decerto, queriam-lhe como quem. E em afã atacavam o
inteiro rededor, que nem que medido em seqüentes metros, acima e
abaixo, com fórmulas e curvas.
À
leréia, aquilo, que não se entendendo por carecido ou útil, antes
talvez achassem em tudo ação de desconcernência, ar na cachimônia,
tolice quase, a impura perfunctura. Mas, Tio Man’Antônio, no se é
o que é que é, as abas de palha do chapelão abaixava, semicerrava
olhos ao sol, suava, tem vez que tossia, a que quando. Ele era um que
sabia abanar a cabeça, que não, que sim. Isto, porém, que o
encoberto dele a todos se impunha, separativo. Acordado, querente,
via-se. Senão que, homem, e, como todo homem, de fracos ossos?
Outra, contudo, parecendo ser a razão por que não se cansava nunca,
naquela manência, indiferentes horas. Porque fazia ou sofria as
coisas, sem parar, mas não estava, dentro em sua mente, em tudo e
nada ocupado.
De
arte que inventava outro sorrir, refeito ingênuo; esquecera-se de
todos os bens passados. E seu surdo plano, enfim, no dia, se fechou.
De sorte que as filhas viram que já tudo estava pronto; e se
contristaram.
Com
que — e por que ideia ingrata e estranhável — pretendera ele de
desmanchar o aspecto do lugar, que de desde a antiguidade, a
fisionomia daquelas rampas de serras, que a Mãe vira e quisera? No
desbaste, rente em redor, com efeito, nada se poupara — nem o mato
lajeiro, tufos ticos de moitas, e arbustos — onde ali tudo se
escampava. A ponto isto foi, de interpelá-lo a filha dileta,
Francisquinha, aflita meigamente. Se não seria aquilo arrefecido
sentimento, pecar contra a saudade?
Assim
ele muito a ouviu, e, com quieto estar mirando-a, respondeu-lhe, se
bem que outro tanto alheio, alhures. — “Nem tanto, filha...
Nem tanto...” Donde que, ao passo que o dizia, quem sabe, em
segundo soslaio, sorria, sem passar de palavra a outra palavra.
Mostrou-lhes: lá os campos em desdobra — o que limpo, livre, se
estendia, em quadro largo, sem sombrios, aberta a paisagem — o
descampado airoso e verde, ao mais verde grau, os capins naquela
vivacidade.
Ah!
— ora, que e quem, pois — e era uma enorme, feita fantasia.
Porque, aquém e além, como árvores deixadas para darem sombra aos
bois no ruminar do calor, só e muito se divisavam, consagradas, a
vistosa sapucaia formidável, a sambaíba sertaneja à borda da
sorocaba, e, para fevereiro-março e junho-julho, sem folhas,
sendo-se só de flores, a barriguda rósea e a paineira
purpúrea-quase-rubra, magnificentes, respectivas. Outras, outras.
Mas, não mais, no qual lugar, que aquelas que Tia Liduína em vida
preferira amar — seus bens de alegria!
Surpreenderam-se,
as filhas, ampliaram assaz os olhos. Falava-se muito em pouco; só se
lágrimas. Realmente, reto Tio Man’Antônio se semelhasse, agora,
de ter sido e vir a ser. E de existir — principalmente — vestido
de funesto e intimado de venturoso.
Que,
não é que, em seu dito cuidar e encaprichar-se, sem querer também
profetizara, nos negócios, e fora adivinho. Porque subiu, na
ocasião, considerável, de repente, o preço do gado, os fazendeiros
todos querendo adquirir mais bois e arrumar e aumentar seus pastos.
Tio Man’Antônio, então, daquele solerte jeito, acertara tão em
pleno, passando-lhes à frente e sem nenhum alarde. Do que, manso
tanto, ele se desdenhava? Passara a atentar também nas verdes
próximas vertentes em campina, de olhos postos; que não apenas na
montanha: alta — como consequências de nenhum ato.
Nada
leva a não crer, por aí, que ele não se movesse, prático, como os
mais; mas, conforme a si mesmo: de transparência em transparência.
Avançava, assim, com honesta astúcia, se viu, no que quis e fez? No
outro ano e depois, quando, à arte de contristes celebrarem, como se
fosse ela viva e presente, o dia de Tia Liduína, propôs uma festa,
e para enganar os fados.
Que
deu, as filhas concordando. Elas estavam crescidas e esclarecidas.
Vieram moços, primos, esses tinham belas imaginações. Tio
Man’Antônio recebendo-os e vendo-os, a beneplácito. E as filhas,
formosas, três, cada uma incomparável, noivaram e se casaram, em
breve os desposórios. Vai, foram-se, de lá, para longes diversos,
com os genros de Tio Man’Antônio. Ele, permaneceu, de outrora a
hoje-em-diante, ficou, que. Ali, em sua velha e erma casa, sob azuis,
picos píncaros e desmedidas escarpas, sobre precipícios de
paredões, grotões e alcantis abismosos — feita uma mansão
suspensa — no pérvio.
Três,
as filhas, que por amor de anos ele tinha visto renovarem a
descoberta de alegria e alma — só de ser, viver e crescer, como,
ora, se dá — formavam sentida falta ao seu querer de ternura
experiente? Suas filhas, que já indivisas partes de uma canção.
Sozinho,
sim, não triste. Tio Man’Antônio respeitava, no tangimento, a
movida e muda matéria; mesmo em seu mais costumeiro gesto — que
era o de como se largasse tudo de suas mãos, qualquer objeto.
Distraído, porém, acarinhando-as, redimia-as, de outro modo, às
coisas comezinhas? Vez, vez, entanto, e quando mais em forças de
contente bem-estar se sentindo, então, dispostamente, ele se
levantava, submetia-se, sem sabida precisão, a algum rude, duro
trabalho — chuva, sol, ação. Parecia-lhe como se o mundo-no-mundo
lhe estivesse ordenando ou implorando, necessitado, um pouco dele
mesmo, a seminar-se? Ou — a si — ia buscar-se, no futuro, nas
asas da montanha. Fazia de conta; e confiava, nas calmas e nos
ventos.
Tanto
tempo que isto, mostrava-se ele ainda não achacoso, em seu
infatigado viver e inquebrantável moleza; nem ainda encanecido, como
o florir do ingazeiro, conforme viria a ficar, pelo depois.
Tão
próspero em seus dias, podia larguear, tinha o campo coberto de
bois. Tudo se inestimava, porém, para Tio Man’Antônio, ali, onde,
tudo o que não era demais, eram humanas fragilidades. Apreendesse o
poder de conversar, em surdo e agudo, as relações dos
acontecimentos, dos fatos; e dissuadia-se de tudo — das coisas, em
multidão, misérias. Ele — o transitoriante. Realmente, seu
pensamento não voltava atrás? Mas, mais causas, no mundo e em si,
ele, à esperança, em sua circunvisão, condenado, descobria.
Em
termos muito gerais, haveria uma mor justiça; mister seria. Se o
paiol limpo se deve de, para as grandes colheitas: como a metade pede
o todo e o vazio chama o cheio. E foi o que Tio Man’Antônio algum
dia resolveu, conseguintemente assim, se se crê. Deveras, aquilo se
deu. O que foi uma muito remexida história. E eis. E pois.
Aos
poucos, a diverso tempo, às partes, entre seus muitos, descalços
servos, pretos, brancos, mulatos, pardos, leguelhés prequetés,
enxadeiros, vaqueiros e camaradas — os próximos — nunca
sediciosos, então Tio Man’Antônio doou e distribuiu suas terras.
Sim, tudo procedido à quieta, sob espécie, com o industrio de
silêncios, a fim de logo não se espevitar todo-o-mundo em cobiça,
ao espalhar-se o saber do que agora se liberalizava ali, em tanta e
tão espantosa maneira.
E
ele mesmo, de seu dinheiro ganho, fingia estar vendendo as terras,
cabidamente; dinheiro que mandava, pontual, às filhas e genros,
sendo-lhes levado recado, para fazer crer. Ainda bem que genros e
filhas nada querendo mais ter com aquela a-pique difícil fazenda, do
Torto-Alto, senão que mesmo pronto retalhada e vendida, de uma ou
vezes. A que, contudo, era a terra das terras, dele — e fria e
clara.
Aí,
Tio Man’Antônio não pensava o que pensava. Amerceamento justo —
ou era a locura e tanta? O grande movimento é a volta. Agora, pelos
anos adiante, ele não seria dono mais de nada, com que estender
cuidados. A quem e de quem os fundos perigosos do mundo e os
às-nuvens pináculos dos montes? — “Faz de conta, gente
minha... Faz de conta...” — era o que dava, e quando, embora,
no que em dizer essas palavras; não sorria, sengo.
Seus
tantos servos, os benevolenciados, irreconheciam-no. Vai, ao ver,
porém, que valia, a dádiva, rejubilavam-se de rir, mesmo
assustados, lentos puladores, se abençoando.
Seus
muitos, sequazes homens, que, durante o ignorar de anos, não os
tinha de verdade visto consistir — só de ser, servir e viver, como
ora e sempre se dá — faziam agora falta à sua necessidade de
desígnio? Seus homens, já exigidas partes de um texto, sem
decifração.
E
tudo Tio Man’Antônio deixando por escrito, da própria e ainda
firme mão exarado, feito se em termos de ajuste, conforme quis e
pôs; e, quanto a razões e congruências, tendo em vista o parecer
do vulgo e as contradições gerais, para matar a dúvida. Em
engenhada vigilância, parecia adivinhar o de que seus ex-servidores
e ora companheiros pudessem ver-se acusados, pelo que, mais tarde, em
rubro serão, viria grandemente a suceder, que se verá. Cuidou disso
resguardá-los, mediante declaração a tinta, por trás da data,
tempos antes do depois.
De
seu, nada conservara, a não ser a antiga, forme e enorme casa,
naquela eminência arejada, edifício de prospecto decoroso e
espaçoso: e de onde o tamanho do mundo se fazia maior, transclaro,
sempre com um fundo de engano, em seus ocultos fundamentos. Nada.
Talvez não. Fazia de conta nada ter; fazia-se, a si mesmo, de conta.
Aos outros — amasse-os — não os compreendesse.
Faziam
de conta que eram donos, esses outros, se acostumavam. Não o
compreendiam. Não o amavam, seguramente, já que sempre teriam de
temer sua oculta pessoa e respeitar seu valimento, ele em paço
acastelado, sempre majestade. Por que, então não se ia embora
então, de toda vez, o caduco maluco estafermo, espantalho? Sábio,
sedentariado, queria que progredissem e não se perdessem,
vigiava-os, de graça ainda administrava-os, deles gestor, capataz,
rendeiro. Serviam-no, ainda e mesmo assim. Mas, decerto, milenar e
animalmente, o odiavam.
Tio
Man’Antônio, rumo a tudo, à senha do secreto, se afastava —
dele a ele e nele. Nada interrogava mais — horizonte e enfim — de
cume a cume. Pelo que vivia, tempo agüentado, ele fazia, alta e
serena, fortemente, o não-fazer-nada, acertando-se ao vazio, à
redesimportância; e pensava o que pensava. Se de nunca, se de
quando.
Em
meio ao que, àquilo, deu-se. Deu — o indeciso passo, o que não se
pode seguir em idéia. Morreu, como se por um furo de agulha um fio.
Morreu; fez de conta. Neste ponto, acharam-no, na rede, no quarto
menor, sozinho de amigo ou amor — transitoriador — príncipe e
só, criatura do mundo.
Ai-de,
ao horror de tanto, atontavam-se e calaram-se, todos, no amedronto de
que um homem desses, serafim, no leixamento pudesse finar-se; e
temessem, com sagrado espanto e quase de não de seu ciente ódio,
que, por via de tal falecer, enormidade de males e absurdos castigos
vingassem a se desencadear, recairiam desabados sobre eles e seus
filhos.
Desde,
porém, porque morreu, deviam reverenciá-lo, honrando-o no usual —
corpo, humano e hereditário, menos que trôpego. Acenderam-se em
quadro as grandes velas, ele num duro terno de sarja cor de ameixa e
em pretas botas achadas, colocado longo na mesa, na maior sala da
Casa, já requiescante. E tinham ainda de expedir positivos e
recados, para que mais gente viesse, toda, parentes e ausentes, os
possíveis, avizinhados e distantes. Chorou-se, também, na varanda.
Tocou-se o sino.
A
obrigação cumprida à justa, à noitinha incendiou-se de repente a
Casa, que desaparecia. Outros, também, à hora, por certo que lá
dentro deveriam de ter estado; mas porém ninguém.
Assim,
a vermelha fogueira, tresenorme, que dias iria durar, mor subia e
rodava, no que estalava, septo a septo, coisa a coisa, alentada, de
plena evidência. Suas labaredas a cada usto agitando um vento, alto
sacudindo no ar as poeiras de estrume dos currais, que também se
queimavam, e assim a quadraginta escada, o quente jardim dos
limoeiros. Derramados, em raio de légua, pelo ar, fogo, faúlhas e
restos, por pirambeiras, gargantas e cavernas, como se,
esplendidissimamente, tão vã e vagalhã, sobre asas, a montanha
inteira ardesse. O que era luzência, a clara, incôngrua claridade,
seu tétrico radiar, o qual traspassava a noite.
Ante
e perante, à distância, em roda, mulheres se ajoelhavam, e homens
que pulando gritavam, sebestos, diabruros, aos miasmas, indivíduos.
De cara no chão se prostravam, pedindo algo e nada, precisados de
paz.
Até
que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas — e, por elas, após, ainda
encaminhou-se, senhor, para a terra, gleba tumular, só; como as
conseqüências de mil atos, continuadamente.
Ele
— que como que no Destinado se convertera — Man’Antônio, meu
Tio.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
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