Há
quanto tempo não vejo um pôr do sol? E os que vi foram por acaso
felizes. Talvez haja um pouco de pudor no fato de nunca ter ido à
praia para ver o sol descer apaziguando-se e poder fixá-lo sem se me
ofuscarem os olhos – e sem o brilho duro de seta fincada no
meio-dia. Mas no ocaso o sol em declínio é doçura. E uma parte de
nossa Terra transforma-se em obscuro berço embalante.
A
gradual escuridão me amedronta um pouco, bicho que sou e que toma
cautela. Escuridão? medo e espanto. O dia morrendo em noite é um
grande mistério da Natureza.
O
que é Natureza? Pergunta difícil de se responder porque nós também
fazemos parte dela e sem distância suficiente para encará-la: em
mim ela brota de meu âmago qual semente que rompe a terra. Natureza
– como explicar o seu significado único e total? como entender sua
simplicidade enigmática? Nem me lembro como ou quando me ensinaram
ou li essa palavra – mas não a explicaram. E no entanto entendi.
Quem não sabe o que é jamais chegará a saber. Há coisas que não
se aprendem.
Espanta-me
a Natureza neste mundo que é Deus. E num planeta em que até entre
as areias do deserto acontece a vida.
Ainda
langorosa do fim do ano, vou então falar do deserto, já que
comecei. Estive uma vez à beira do Saara, além das pirâmides. O
deserto. A perder-se de vista. Por todos os lados a perdição. A
visão de sua extensão nos é cortada pela linha do horizonte onde
se curva a Terra. Pois o deserto tem linha de horizonte como o mar,
e, como o mar, é tão profundo.
Experimentei
temor ao olhar para o deserto. Quereria depressa atravessá-lo e já
estar do outro lado. Também outra vez sobrevoei o Saara e o mesmo
temor avisou-me o coração. Imaginei-me perdida e sozinha nas areias
infindáveis onde não há rumos, meu Deus. Eu gritaria em vão por
socorro.
Vou
parar por aqui mesmo para não fabricar angústia em ninguém: o que
se quer é um 1972 sem muita angústia. Uma ponte bem lançada que se
estenda com graça e leveza levando-nos a 1973 sem se sentir.
Falei
em angústia. O que é angústia? Na verdade minha tendência a
indagar e a significar já é em si uma angústia. Esta começa com a
vida. Cortam o cordão umbilical: dor e separação. E enfim choro de
viver.
Viver?
Viver é coisa muito séria. É sem brincadeira nenhuma. Embora aqui
esteja eu a brincar de ano precioso e novo. Levo a vida deveras e
frente a frente. Nestes momentos de “agora mesmo” estou vivendo
tão leve que mal pouso na página, e ninguém me pega porque dou um
jeito de escorregar. Tive que aprender.
Às
vezes não se precisa ter medo da angústia: ela pode ser fértil e
dar frutos de alegria e pureza. Mas “é preciso não ter medo de
criar”, escrevi eu mesma há muitos anos. Estou é achando muito
esquisito eu me citar…
Criação
é coisa secreta e de natureza obscura. De que ponto do ser nasceu em
Stravinsky o Pássaro de fogo? Da alma, está bem. Mas onde
fica a alma do ser?
Nunca
me imaginei escrevendo sobre “alma”. Mas a conversa arrastou
consigo outra conversa e eis-me aqui de corpo e alma presentes num
jornal. O que se chama de essência está em alguma parte do ser.
Qual é a essência da vida?
Ah,
o que desconheço me ultrapassa. A verdade ultrapassa-me com tanta
paciência e doçura.
Queria
ultrapassar-me em 1972 e andar à minha própria frente. Sem dor. Ou
só com dores de parto que dão um nascimento de coisa nova. Também
porque, ao ultrapassar-se, sai-se de si e se cai no “outro”. O
outro é sempre muito importante.
O
verão está instalado no meu coração.
E
de tudo – resta esta última frase que me veio isolada, solta e sem
se explicar. Assim somos nós? Sem explicação?
Se
assim somos, amém.
1972?
Amém.
Recuso-me
a ser um fato consumado.
Por
enquanto sobrenado na preguiça. Adeus.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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