Bernardo
tem cinco anos, mas já sabe da existência do Japão. E aponta para
o céu com o dedo: “É atrás daquele teto azul que fica o Japão”.
Tenho de explicar-lhe que aquilo é o céu, não é teto nenhum. “Mas
então o céu não é o teto do mundo”. “Não: o céu é o céu.
O mundo não tem teto. O azul do céu é o próprio ar. O Japão fica
é lá embaixo” e apontei para o chão: “O mundo é redondo feito
uma bola. Lá para cima não tem país mais nenhum não, só o céu
mesmo, mais nada. Ele fez uma carinha aborrecida, um gesto de
desilusão: “ Então este Brasil é mesmo o fim do mundo.
Daqui
pra lá não tem mais nada... Difícil de lhe explicar o que até
mesmo a mim parece meio esquisito: o mundo ser redondo, o Japão
estar lá embaixo, os japoneses de cabeça pra baixo, como é que não
caem” Às vezes, andando na rua e olhando para cima, eu mesmo tenho
medo de cair.
Na
primeira oportunidade compro e trago para casa um mapa-múndi: um
desses globos terrestres modernos, aliás de fabricação japonesa,
feito de matéria plástica e que se enchem de ar, como os balões.
O
menino não lhe deu muita importância, quando apontei nele o Japão
e a Inglaterra, o Brasil, os países todos. Limitou-se a fazê-lo
girar doidamente, aos tapas, até que se desprendesse do suporte de
metal. Logo se dispôs a sair jogando futebol com ele, não deixei.
Consegui
convencê-lo a ir destruir outro brinquedo, o secador de cabelo da
mãe, por exemplo, que faz um ventinho engraçado e assim que me vi
só, tranquei-me no escritório para apreciar devidamente a minha
nova aquisição. Com o mundo nas mãos, descobri coisas de espantar.
Descobri
que a Coreia é muito mais lá para cima do que eu imaginava uma
espécie de penduricalho da China, ali mesmo no costado do Japão. O
que é que os Estados Unidos tinham de se meter ali, tão longe de
casa.
O
Vietnã nem me fale: uma tripinha de terra ao longo do Laos e do
Camboja. Aliás, a confusão de países por ali, eu vou te contar.
Tem a Tailândia e tem Burma, dois países de pernas compridas, tem a
Malásia, a Indonésia. A Tasmânia não tem. Pelo menos não
encontrei.
Continua
sendo para mim apenas a terra daquele selo enorme que em menino era o
melhor da minha coleção. Dou um piparote no mundo e ele gira diante
de meus olhos, para que eu descubra o que é mais que tem.
Outra
confusão é ali nas Arábias, onde o pau anda comendo; Síria,
Líbano, Arábia Saudita, Iêmen, e o diabo de um país cor-de-rosa
chamado Hadramaut de que nunca ouvi falar. Estou ficando bom de
geografia. Duvido que alguém me diga onde fica Andorra.
A
última pessoa a quem perguntei me disse que ficava nos limites de
Aznavour. Pois fica é logo aqui, encravada entre a França e a
Espanha, um paisinho de nada, vê quem pode. E fez aquele sucesso
todo no Festival da Canção.
Em
compensação, a Antártida é muito maior do que eu pensava, ocupa
quase todo o Pólo Sul. E é bem no centro dela que eu tenho de
soprar para encher o mundo. De repente me vem uma ideia meio
paranoide. De tanto apalpar o globo de plástico, ele acabou meio
murcho, acho que o ar está se escapando.
E
quando me disponho a enchê-lo de novo, imagino que eu seja um ser
imenso solto no espaço, botando a boca no mundo para enchê-lo com
meu sopro.
O
nosso planeta é mesmo uma bolinha perdida no cosmo, e do tamanho
desta que tenho nas mãos é que os astronautas devem tê-lo visto da
lua: uma linda esfera de manchas coloridas, com seus oceanos cheios
de peixes e singrados por navios, as cidades agarradas aos
continentes, ruas cheias de automóveis, casas cheias de gente, o ar
riscado de aviões, de gaivotas e de urubus...
Tudo
isso pequenino, insignificante, microscópico, os homens se
explorando mutuamente, se maltratando, se assassinando para colher um
segundo de satisfação ao longo dos séculos de História, não mais
que alguns minutos em face da eternidade.
Que
aventura mais temerária, a de Deus, escolhendo caprichosamente este
lindo e insignificante planetinha para a ele enviar através dos
espaços o seu Filho feito homem, com a missão de redimir a nossa
pobre humanidade. Faço votos que tenha valido a pena e que um dia
ela se veja redimida.
Até
lá, este mundo não passará mesmo de uma bola, como esta que meu
filho Bernardo, irrompendo alegremente no escritório, me arrebata
das mãos e sai chutando pela casa.
Fernando Sabino, in As Melhores Crônicas de Fernando Sabino
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