segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Capítulo vinte e três | O silêncio de vinte onças



Tomaram duas pirogas para atracar escondidas em lugares diferentes e garantir que ao menos uma teriam para voltar. Montaram ao primeiro mar. Navegaram imediato para adiante, para as ilhas adiante de onde quase sempre noticiavam a chegada dos animais brancos. E Honra não parava de chamar:
sagrado Meio da Noite, navegas bem. Tens medo. Não tenhas medo. Já atravessaremos a água. O tremendo animal líquido é bênção.
O negro respondia:
falta pouco. Avisto a mata adiante. É a mata depois do mar.
Os feios mais navegavam, e a mata depois do mar via-se numa linha muito longa, quase infinita, que estendia mais do que abeirava. E eles navegavam e o sol deitava quando eles duvidavam:
faltará tanto assim. É tão à vista que parece perto. Mas não chega.
E Honra respondia:
é quase. É quase. Eu sinto.
E o negro acrescentava:
é quase, é quase. Continua, Honra. Continua.
O sol desceu e a noite apagou o negro por completo, quando o guerreiro branco enfim comoveu:
Meio da Noite, onde estás. Onde estás, irmão negro, animal magnífico. Onde estás. Entoa que estás bem, que vens comigo, que existes, deita a mão à minha por sobre o mar, peço. Volta a dar-me a mão. Onde estás em tanto mar e a mata que não abeira. Onde está a mata. Animal sem explicação, sagrado, meu amado irmão negro, onde estás, que não te sinto, minha pele sente nada, nenhuma companhia, nenhuma intuição senão a necessidade urgente de te ver. Não és tão desiluminado que não te veja ao luar, mas sei que sobes de qualquer sombra, uma sombra com vontade de mover diferente daquilo que a cria, e eu preciso tanto de saber se ao menos estás bem. Tenho agora a impressão de te haver sonhado, inventado em cada pressentimento por tanto me faltar alguém. Talvez sejas a fera com que sonhei, meu companheiro de salvação, eu não sei. Quero que regresses e que tomes minhas armas, meus adornos, minhas palavras, minha vida, será teu o destino, mas não sucumbas, não tombes. A tua vida não pode mais ser adiada. Ondes estás.
Deitava por fora da piroga a mão, como quem vasculha no vazio o corpo de alguém. Sentia nada. Não era tocado. Nem outra piroga e menos outro guerreiro. O mar estava desocupado. Sem ninguém.
Mais berrou suas palavras o guerreiro branco e a piroga navegou sozinha já educada pela maré. No desespero de se saber desunido, Honra imaginou ou berrou vinte onças. E o som tremendo que era do negro vociferou pelo mar e a ondulação afeiçoou um caminho que foi levando a piroga.
O feio cantou:
antes do meu pai teu pai sonhou, antes de minha mãe tua mãe sonhou, quando se proferiu meu nome o teu nome abeirou, meu corpo caiu onde teu corpo agarrou, para o tatu não é bom exterior, para o amigo só é bom um pouco de exterior, por cada ilha se faz uma mata, por cada compromisso se faz uma ilha.
Era por toda a parte a noite e por toda a parte podia ser o corpo de um negro exalado no ar. Via-se tanto pelo luar, e via sobretudo como tudo era sombra, espaço de ausência em que se distinguia nada entre água e alguém, se alguém houvesse de ser negro e navegar por ali. Honra espiou e cantou sempre comovido para não aceitar que o amigo houvesse partido, afundado, desistido de ser imaginado. Recusava-se a imaginá-lo. Queria que fosse ali inteiro por si só, para lhe repetir as advertências, o juízo. Queria escutá-lo sem engano. O guerreiro branco julgou que Meio da Noite era sua verdadeira arma. Sua arma melhor contra as guerras inimigas.
Enquanto o tremendo animal líquido o dirigia sem mais resistência, o guerreiro branco cansava sua arte canora e repetia para si mesmo que o irmão estaria à espera no regresso. Era isso. Pensara talvez que aquela tocaia lhe pertencia por direito. Uma tocaia fundamental em que glória nenhuma se dividiria. Depois de morta a essencial fera branca, voltaria e Meio da Noite estaria no areal levantando os adornos mais vitoriosos por sua dignidade.
Honra entoou por sobre o mar:
navega para a aldeia. Prometo que meu afastamento é uma pressa para regressar.
Honra imaginou ou gemeu o silêncio de vinte onças e a terra estava à sua espera sem feras. O areal daquela ilha era amplo, e as pirogas gigantes do animal branco estavam atracadas, abertas ao luar, e tão perto se avistavam coberturas bizarras que fogueavam também no interior. O feio viu o fogo e soube que encontraria o animal inimigo naquela proximidade tão grande. Estava sozinho no lugar invadido pelo inimigo. Era sozinho. Carregava sua fúria e sua tristeza. Tomou suas armas e pensou que teria de matar para poder ir embora o mais depressa possível, a cobrir-se de sua mata, de seu povo, da alegria que sobra. E mais pensou que o amigo haveria de existir nem que apenas onde o deixara, a partir daquele ponto do mar, como alguém que não respira fora de certo ar. Mais pensou que urgia tanto em matar quanto em voltar e duvidou. Quis voltar mais do que matar. Seria tão mais alegre se não houvesse de guerrear nada e partir. Seria tão mais alegre se tivesse o amigo de volta, ao invés de menos um inimigo.
Aguardou. Era importante prestar atenção àquela mata. Saber de que perigos se fazia. Ao silenciar, escutou as vozes quase corais que vinham de entre o arvoredo para o seu lado esquerdo. Foçou para espreitar. Rastejou, apequenando seu corpo e espreitou. Eram acorrentados mais de cinquenta negros, tão negros quanto Meio da Noite, dispostos à fogueira comendo. Faziam um círculo e entoavam tão dolentes que suas vozes mais pareciam também combustão. Seus corpos não eram todos como o do guerreiro que ficara pelo mar. Eram débeis. Femininas débeis, magras, pendidas sobre seus ventres a comer um nada de mandioca. Era talvez mandioca. Honra não moveu mais. Sabia bem do que lhe contara o negro acerca do serviço ao animal branco, como se fazia de ser batido e aprisionado. Ouvira sobre as mortes, sobre os negros usados sem licença nem perdão. Então, viu como um inimigo branco deambulava livre pelas costas dos povos cativos. Era livre e atento, de arma na mão, até o grito de ferro. Era horrendo de alvo. Honra tomou sua flauta de envenenar e cuspiu a pequena ponta ao pescoço do animal branco que se afligiu um quase nada e logo tombou. Os cativos barulharam num entusiasmo assustado. O feio branco, carregado de suas armas, seus adornos, suas dores, alumiou ao fogo e entoou:
ao fundo deste mar fica um mocambo. Sei prometido por muitas ciências. E se não houvermos de morrer de tanta água, não morreremos de terra alguma quando estivermos ali sem inimigo.
Os negros assustaram mais, sem traduzir inteiramente o que ia na boca de um branco tão diferente, apassarado de penas e pinturas. E o feio repetiu:
abriremos vossas prisões e deitaremos ao mar nas pirogas gigantes até à aldeia dos negros.
E os cativos já haviam tomado o grito de ferro das mãos do animal tombado e outros ferros com que se soltavam num silêncio apressado, feito de nervos e urgência, alegria sem fim. Empunhavam o ar, discutiam entre si um quase nada que era todo fuga, e Honra sempre prometia que para lá daquele mar ficava o mocambo, e os libertos começaram a escutar de verdade e a entender. Era a notícia do mocambo. A oportunidade de afugentarem para onde o inimigo não havia ainda. Haveriam de navegar as pirogas e afugentar. O feio entoou:
mas antes de poder partir busco o animal de rosto igual ao meu. O inimigo branco que me feriu ao ovo de minha mãe. Matarei o animal de rosto igual ao meu. Só então poderei partir.
Um tardio dos negros abeirou, tocou Honra para se expor à luz e observou. Talvez não fosse tão copiado de seu pai. Talvez pudessem ser tantos brancos assim. O negro melhor observou e não queria precipitar-se. Liberto de suas amarras, o guerreiro assumiu a dignidade de preocupar com a angústia do desconhecido. E entoou:
ali.
Subiu o braço, apontou numa direcção, havia uma cobertura estranha que igualmente fogueava no interior. E repetiu:
ali. Há um igual ao teu rosto. Muito mais igual do que os outros. É ali.
Depois, acrescentou:
faremos fogo no que fica. Navegaremos nas únicas madeiras salvas. Esperamos por ti, branco diferente. Esperaremos por ti, mas corre. Não é agora possível adiar o futuro.
Ali estava a palavra abissal do futuro, para onde caíam todas as coisas afinal sem regresso. O guerreiro branco não atreveu a repetir nem a perguntar. Seu som era bastante para amargar tudo em redor. Pensou que os povos negros eram já dentro do sofrimento branco. Estariam para sempre condenados a padecer da doença que aquela língua suja imaginara.
A cobertura era quieta. O animal branco sentava numa madeira erguida. Olhava para as folhas de nenhuma árvore. Nem palmeira nem outra mais lisa ou gentil. O branco olhava para as folhas de nenhuma árvore e contemplava talvez seus detalhes, como maravilhado e calmo com seus detalhes. Quando Honra apontou sua lança, tão convicto de que apenas mataria para o matar demasiado, sem diálogo nem muito ver, imediatamente cortando a cabeça, envenenando a boca, mesmo que depois, quando já morto para ser ainda mais morto, o feio hesitou. Ele quis ver. Pensou:
não sinto.
Demorou a ver o animal branco vazio, como deitava sobre as folhas pálidas adornadas como peles. Que presciência seria aquela, o que contariam as folhas em seus veios negros. Então, Honra entoou:
vim para te matar, animal horrendo, mais horrendo do que os outros, que feriste minha mãe, e eu sou a ferida sem ter cura. Sinto que estarei sempre à distância de meu próprio nome. Incapaz de lá chegar.
A lança junto ao pescoço do inimigo que levantou a cabeça silente, aterrado de surpresa, e igual era o seu rosto. Poderia estar a ver-se nas águas mais macias do igarapé, duplicado cuidadosamente. Sob suas pinturas e adornos, orgulhoso em suas penas, seus ossos, seus colares, o guerreiro branco voltou a entoar:
morrerás tanto que verdadeirissimamente serás esquecido.
Assim o declarou mas, ao invés de investir, furar a pele e a carne do inimigo, Honra notou como era quieto, pasmado diante de sua semelhança. Notou como o animal pareceu até aceitar que morreria e era à espera, as mãos pousadas nas madeiras altas onde as folhas de nenhuma árvore se estendiam. E Honra concebeu o que Meio da Noite lhe entoara. Que era filho daquele animal.
Meu pai.
Pensou.
O que justificaria sua língua suja, sua maldade. Como explicaria sua guerra contra a gentileza. Como haveria de explicar a ferida em Boa de Espanto. E o animal pareceu querer entoar. Entreabriu os lábios e quase se escutou o pouco de uma palavra, mas Honra abeirou a lança e ela entrou quase nada a pele, que chorou um sangue ínfimo. Era tão pequeno corte que o animal continuou sem mover e apenas emudeceu continuamente. Entoaria nada. O feio não queria escutar. Não podia escutar. Mas respondeu:
és ao tamanho do vazio. A fera torpe e sem acordo. Fede tudo na tua existência. Não és meu pai. És o excremento do qual infelizmente fui pronunciado. Mas lavarei de mim esta fúria. Eu lavarei de mim a fúria. Um abaeté não odeia senão pela obrigação de defender. Ficarás com teu futuro, essa mentira que propagas, e eu estarei liberto entre meus povos, pronto para te matar no instante em que abeires para atacar.
O guerreiro branco amarrou o animal às madeiras, correu pela boca um tanto do seu próprio entrançado fino e assegurou que ele não levantaria nem faria som. Era adiado. Faria nada. Olhou como sobrava no chão e pisou a cabeça. Ligeiro e depois um nada mais forte. Pisou levemente. O rosto sempre vivo haveria de diferir do rosto de Honra ao menos por um instante. Naquele instante em que o pai se deixava morrer e o filho decidia não matar. Era a assunção do vazio por parte da grotesca fera, e a reclamação da grandeza por parte do guerreiro que maturava para a plena gentileza abaeté. Naquele gesto, distantes um do outro pela miserável vergonha e pela esplendorosa coragem de admitirem a vida do inimigo, os dois desfiguravam a semelhança, batiam a água macia do igarapé e terminavam de se imitar. Existiam sem relação. Iam ser sem relação. O animal respirava mais aflito mas sempre quieto. Resignado. Era vivo. Sempre vivo. E Honra ausentou da cobertura e pensou:
Altura Verde me perdoe o que fiz a um pai. Única importância é a gentileza de Altura Verde, o cansaço de ter afecto por mim, de cuidar de gostar de mim mesmo durante os erros que cometo.
Caminhou em direcção às pirogas gigantes, que o aguardavam entre outras que ardiam, as coberturas ardendo em toda a parte também, e os animais brancos mortos em todo o areal. Caminhou veloz, seus adornos e suas armas eufóricos, e berrou:
sagrado Meio da Noite, vou com nossos povos. Meu irmão magnífico, eu parto com nossos sagrados povos.
E os negros avistaram o guerreiro e o chamaram numa alegria que era a salvação.
Levantaram as vozes até impossíveis para corpos tão débeis. Subiram ao mar e espalhavam as vozes que chegavam de uma piroga à outra, ambas fremindo de intensidade à esperança de saberem partir e, mais ainda, de saberem chegar ao lugar prometido que havia ainda sem inimigo. Um lugar sem inimigo, pensavam todos. Uma terra livre onde o cativeiro ficasse no pesadelo passado, fechado, fechando cada vez mais, a favor de um tempo sem obediência nem agressão.
Honra comovia e pensava que urgia em declarar-se um grau para a alegria, que afinal não era toda a mesma. Uma alegria que quase rebentasse o corpo de não caber, de não aguentar a espera. Ele pensava obstinadamente:
os meus povos negros. Levo os meus povos negros.
Julgava que em breve abraçaria seu irmão. Para esse sentimento, Honra convencia de que não havia sequer palavra. Era muito para lá de saber falar. Muito para lá das línguas sujas ou imaculadamente limpas. Sabia bem, agora, que a diferença de Meio da Noite era o seu espaço de esperança. Pensava isso mesmo:
a tua diferença é o meu espaço de esperança.
Entre as águas tantas, o feio branco não limitou seu gesto de chorar. A lágrima pura de sua comoção alimentava o tremendo animal líquido que montaria sem mais parar de navegar. Haveria toda a alegria. Ainda haveria toda a alegria. Os feios seriam para sempre. Nem que o jacaré houvesse comido por dentro do peito dos dois. Nem que o jacaré comesse dentro e fora todo o corpo dos feios.
Para sobreviver, Honra pensou que bastaria manter o silêncio de vinte onças. Inteiro era uma multidão de feras educadas para defender. Ia sem intenção de atacar. Aprendera por rigor e feição. Afeiçoara.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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