Tomaram
duas pirogas para atracar escondidas em lugares diferentes e garantir
que ao menos uma teriam para voltar. Montaram ao primeiro mar.
Navegaram imediato para adiante, para as ilhas adiante de onde quase
sempre noticiavam a chegada dos animais brancos. E Honra não parava
de chamar:
sagrado
Meio da Noite, navegas bem. Tens medo. Não tenhas medo. Já
atravessaremos a água. O tremendo animal líquido é bênção.
O
negro respondia:
falta
pouco. Avisto a mata adiante. É a mata depois do mar.
Os
feios mais navegavam, e a mata depois do mar via-se numa linha muito
longa, quase infinita, que estendia mais do que abeirava. E eles
navegavam e o sol deitava quando eles duvidavam:
faltará
tanto assim. É tão à vista que parece perto. Mas não chega.
E
Honra respondia:
é
quase. É quase. Eu sinto.
E
o negro acrescentava:
é
quase, é quase. Continua, Honra. Continua.
O
sol desceu e a noite apagou o negro por completo, quando o guerreiro
branco enfim comoveu:
Meio
da Noite, onde estás. Onde estás, irmão negro, animal magnífico.
Onde estás. Entoa que estás bem, que vens comigo, que existes,
deita a mão à minha por sobre o mar, peço. Volta a dar-me a mão.
Onde estás em tanto mar e a mata que não abeira. Onde está a mata.
Animal sem explicação, sagrado, meu amado irmão negro, onde estás,
que não te sinto, minha pele sente nada, nenhuma companhia, nenhuma
intuição senão a necessidade urgente de te ver. Não és tão
desiluminado que não te veja ao luar, mas sei que sobes de qualquer
sombra, uma sombra com vontade de mover diferente daquilo que a cria,
e eu preciso tanto de saber se ao menos estás bem. Tenho agora a
impressão de te haver sonhado, inventado em cada pressentimento por
tanto me faltar alguém. Talvez sejas a fera com que sonhei, meu
companheiro de salvação, eu não sei. Quero que regresses e que
tomes minhas armas, meus adornos, minhas palavras, minha vida, será
teu o destino, mas não sucumbas, não tombes. A tua vida não pode
mais ser adiada. Ondes estás.
Deitava
por fora da piroga a mão, como quem vasculha no vazio o corpo de
alguém. Sentia nada. Não era tocado. Nem outra piroga e menos outro
guerreiro. O mar estava desocupado. Sem ninguém.
Mais
berrou suas palavras o guerreiro branco e a piroga navegou sozinha já
educada pela maré. No desespero de se saber desunido, Honra imaginou
ou berrou vinte onças. E o som tremendo que era do negro vociferou
pelo mar e a ondulação afeiçoou um caminho que foi levando a
piroga.
O
feio cantou:
antes
do meu pai teu pai sonhou, antes de minha mãe tua mãe sonhou,
quando se proferiu meu nome o teu nome abeirou, meu corpo caiu onde
teu corpo agarrou, para o tatu não é bom exterior, para o amigo só
é bom um pouco de exterior, por cada ilha se faz uma mata, por cada
compromisso se faz uma ilha.
Era
por toda a parte a noite e por toda a parte podia ser o corpo de um
negro exalado no ar. Via-se tanto pelo luar, e via sobretudo como
tudo era sombra, espaço de ausência em que se distinguia nada entre
água e alguém, se alguém houvesse de ser negro e navegar por ali.
Honra espiou e cantou sempre comovido para não aceitar que o amigo
houvesse partido, afundado, desistido de ser imaginado. Recusava-se a
imaginá-lo. Queria que fosse ali inteiro por si só, para lhe
repetir as advertências, o juízo. Queria escutá-lo sem engano. O
guerreiro branco julgou que Meio da Noite era sua verdadeira arma.
Sua arma melhor contra as guerras inimigas.
Enquanto
o tremendo animal líquido o dirigia sem mais resistência, o
guerreiro branco cansava sua arte canora e repetia para si mesmo que
o irmão estaria à espera no regresso. Era isso. Pensara talvez que
aquela tocaia lhe pertencia por direito. Uma tocaia fundamental em
que glória nenhuma se dividiria. Depois de morta a essencial fera
branca, voltaria e Meio da Noite estaria no areal levantando os
adornos mais vitoriosos por sua dignidade.
Honra
entoou por sobre o mar:
navega
para a aldeia. Prometo que meu afastamento é uma pressa para
regressar.
Honra
imaginou ou gemeu o silêncio de vinte onças e a terra estava à sua
espera sem feras. O areal daquela ilha era amplo, e as pirogas
gigantes do animal branco estavam atracadas, abertas ao luar, e tão
perto se avistavam coberturas bizarras que fogueavam também no
interior. O feio viu o fogo e soube que encontraria o animal inimigo
naquela proximidade tão grande. Estava sozinho no lugar invadido
pelo inimigo. Era sozinho. Carregava sua fúria e sua tristeza. Tomou
suas armas e pensou que teria de matar para poder ir embora o mais
depressa possível, a cobrir-se de sua mata, de seu povo, da alegria
que sobra. E mais pensou que o amigo haveria de existir nem que
apenas onde o deixara, a partir daquele ponto do mar, como alguém
que não respira fora de certo ar. Mais pensou que urgia tanto em
matar quanto em voltar e duvidou. Quis voltar mais do que matar.
Seria tão mais alegre se não houvesse de guerrear nada e partir.
Seria tão mais alegre se tivesse o amigo de volta, ao invés de
menos um inimigo.
Aguardou.
Era importante prestar atenção àquela mata. Saber de que perigos
se fazia. Ao silenciar, escutou as vozes quase corais que vinham de
entre o arvoredo para o seu lado esquerdo. Foçou para espreitar.
Rastejou, apequenando seu corpo e espreitou. Eram acorrentados mais
de cinquenta negros, tão negros quanto Meio da Noite, dispostos à
fogueira comendo. Faziam um círculo e entoavam tão dolentes que
suas vozes mais pareciam também combustão. Seus corpos não eram
todos como o do guerreiro que ficara pelo mar. Eram débeis.
Femininas débeis, magras, pendidas sobre seus ventres a comer um
nada de mandioca. Era talvez mandioca. Honra não moveu mais. Sabia
bem do que lhe contara o negro acerca do serviço ao animal branco,
como se fazia de ser batido e aprisionado. Ouvira sobre as mortes,
sobre os negros usados sem licença nem perdão. Então, viu como um
inimigo branco deambulava livre pelas costas dos povos cativos. Era
livre e atento, de arma na mão, até o grito de ferro. Era horrendo
de alvo. Honra tomou sua flauta de envenenar e cuspiu a pequena ponta
ao pescoço do animal branco que se afligiu um quase nada e logo
tombou. Os cativos barulharam num entusiasmo assustado. O feio
branco, carregado de suas armas, seus adornos, suas dores, alumiou ao
fogo e entoou:
ao
fundo deste mar fica um mocambo. Sei prometido por muitas ciências.
E se não houvermos de morrer de tanta água, não morreremos de
terra alguma quando estivermos ali sem inimigo.
Os
negros assustaram mais, sem traduzir inteiramente o que ia na boca de
um branco tão diferente, apassarado de penas e pinturas. E o feio
repetiu:
abriremos
vossas prisões e deitaremos ao mar nas pirogas gigantes até à
aldeia dos negros.
E
os cativos já haviam tomado o grito de ferro das mãos do animal
tombado e outros ferros com que se soltavam num silêncio apressado,
feito de nervos e urgência, alegria sem fim. Empunhavam o ar,
discutiam entre si um quase nada que era todo fuga, e Honra sempre
prometia que para lá daquele mar ficava o mocambo, e os libertos
começaram a escutar de verdade e a entender. Era a notícia do
mocambo. A oportunidade de afugentarem para onde o inimigo não havia
ainda. Haveriam de navegar as pirogas e afugentar. O feio entoou:
mas
antes de poder partir busco o animal de rosto igual ao meu. O inimigo
branco que me feriu ao ovo de minha mãe. Matarei o animal de rosto
igual ao meu. Só então poderei partir.
Um
tardio dos negros abeirou, tocou Honra para se expor à luz e
observou. Talvez não fosse tão copiado de seu pai. Talvez pudessem
ser tantos brancos assim. O negro melhor observou e não queria
precipitar-se. Liberto de suas amarras, o guerreiro assumiu a
dignidade de preocupar com a angústia do desconhecido. E entoou:
ali.
Subiu
o braço, apontou numa direcção, havia uma cobertura estranha que
igualmente fogueava no interior. E repetiu:
ali.
Há um igual ao teu rosto. Muito mais igual do que os outros. É ali.
Depois,
acrescentou:
faremos
fogo no que fica. Navegaremos nas únicas madeiras salvas. Esperamos
por ti, branco diferente. Esperaremos por ti, mas corre. Não é
agora possível adiar o futuro.
Ali
estava a palavra abissal do futuro, para onde caíam todas as coisas
afinal sem regresso. O guerreiro branco não atreveu a repetir nem a
perguntar. Seu som era bastante para amargar tudo em redor. Pensou
que os povos negros eram já dentro do sofrimento branco. Estariam
para sempre condenados a padecer da doença que aquela língua suja
imaginara.
A
cobertura era quieta. O animal branco sentava numa madeira erguida.
Olhava para as folhas de nenhuma árvore. Nem palmeira nem outra mais
lisa ou gentil. O branco olhava para as folhas de nenhuma árvore e
contemplava talvez seus detalhes, como maravilhado e calmo com seus
detalhes. Quando Honra apontou sua lança, tão convicto de que
apenas mataria para o matar demasiado, sem diálogo nem muito ver,
imediatamente cortando a cabeça, envenenando a boca, mesmo que
depois, quando já morto para ser ainda mais morto, o feio hesitou.
Ele quis ver. Pensou:
não
sinto.
Demorou
a ver o animal branco vazio, como deitava sobre as folhas pálidas
adornadas como peles. Que presciência seria aquela, o que contariam
as folhas em seus veios negros. Então, Honra entoou:
vim
para te matar, animal horrendo, mais horrendo do que os outros, que
feriste minha mãe, e eu sou a ferida sem ter cura. Sinto que estarei
sempre à distância de meu próprio nome. Incapaz de lá chegar.
A
lança junto ao pescoço do inimigo que levantou a cabeça silente,
aterrado de surpresa, e igual era o seu rosto. Poderia estar a ver-se
nas águas mais macias do igarapé, duplicado cuidadosamente. Sob
suas pinturas e adornos, orgulhoso em suas penas, seus ossos, seus
colares, o guerreiro branco voltou a entoar:
morrerás
tanto que verdadeirissimamente serás esquecido.
Assim
o declarou mas, ao invés de investir, furar a pele e a carne do
inimigo, Honra notou como era quieto, pasmado diante de sua
semelhança. Notou como o animal pareceu até aceitar que morreria e
era à espera, as mãos pousadas nas madeiras altas onde as folhas de
nenhuma árvore se estendiam. E Honra concebeu o que Meio da Noite
lhe entoara. Que era filho daquele animal.
Meu
pai.
Pensou.
O
que justificaria sua língua suja, sua maldade. Como explicaria sua
guerra contra a gentileza. Como haveria de explicar a ferida em Boa
de Espanto. E o animal pareceu querer entoar. Entreabriu os lábios e
quase se escutou o pouco de uma palavra, mas Honra abeirou a lança e
ela entrou quase nada a pele, que chorou um sangue ínfimo. Era tão
pequeno corte que o animal continuou sem mover e apenas emudeceu
continuamente. Entoaria nada. O feio não queria escutar. Não podia
escutar. Mas respondeu:
és
ao tamanho do vazio. A fera torpe e sem acordo. Fede tudo na tua
existência. Não és meu pai. És o excremento do qual infelizmente
fui pronunciado. Mas lavarei de mim esta fúria. Eu lavarei de mim a
fúria. Um abaeté não odeia senão pela obrigação de defender.
Ficarás com teu futuro, essa mentira que propagas, e eu estarei
liberto entre meus povos, pronto para te matar no instante em que
abeires para atacar.
O
guerreiro branco amarrou o animal às madeiras, correu pela boca um
tanto do seu próprio entrançado fino e assegurou que ele não
levantaria nem faria som. Era adiado. Faria nada. Olhou como sobrava
no chão e pisou a cabeça. Ligeiro e depois um nada mais forte.
Pisou levemente. O rosto sempre vivo haveria de diferir do rosto de
Honra ao menos por um instante. Naquele instante em que o pai se
deixava morrer e o filho decidia não matar. Era a assunção do
vazio por parte da grotesca fera, e a reclamação da grandeza por
parte do guerreiro que maturava para a plena gentileza abaeté.
Naquele gesto, distantes um do outro pela miserável vergonha e pela
esplendorosa coragem de admitirem a vida do inimigo, os dois
desfiguravam a semelhança, batiam a água macia do igarapé e
terminavam de se imitar. Existiam sem relação. Iam ser sem relação.
O animal respirava mais aflito mas sempre quieto. Resignado. Era
vivo. Sempre vivo. E Honra ausentou da cobertura e pensou:
Altura
Verde me perdoe o que fiz a um pai. Única importância é a
gentileza de Altura Verde, o cansaço de ter afecto por mim, de
cuidar de gostar de mim mesmo durante os erros que cometo.
Caminhou
em direcção às pirogas gigantes, que o aguardavam entre outras que
ardiam, as coberturas ardendo em toda a parte também, e os animais
brancos mortos em todo o areal. Caminhou veloz, seus adornos e suas
armas eufóricos, e berrou:
sagrado
Meio da Noite, vou com nossos povos. Meu irmão magnífico, eu parto
com nossos sagrados povos.
E
os negros avistaram o guerreiro e o chamaram numa alegria que era a
salvação.
Levantaram
as vozes até impossíveis para corpos tão débeis. Subiram ao mar e
espalhavam as vozes que chegavam de uma piroga à outra, ambas
fremindo de intensidade à esperança de saberem partir e, mais
ainda, de saberem chegar ao lugar prometido que havia ainda sem
inimigo. Um lugar sem inimigo, pensavam todos. Uma terra livre onde o
cativeiro ficasse no pesadelo passado, fechado, fechando cada vez
mais, a favor de um tempo sem obediência nem agressão.
Honra
comovia e pensava que urgia em declarar-se um grau para a alegria,
que afinal não era toda a mesma. Uma alegria que quase rebentasse o
corpo de não caber, de não aguentar a espera. Ele pensava
obstinadamente:
os
meus povos negros. Levo os meus povos negros.
Julgava
que em breve abraçaria seu irmão. Para esse sentimento, Honra
convencia de que não havia sequer palavra. Era muito para lá de
saber falar. Muito para lá das línguas sujas ou imaculadamente
limpas. Sabia bem, agora, que a diferença de Meio da Noite era o seu
espaço de esperança. Pensava isso mesmo:
a
tua diferença é o meu espaço de esperança.
Entre
as águas tantas, o feio branco não limitou seu gesto de chorar. A
lágrima pura de sua comoção alimentava o tremendo animal líquido
que montaria sem mais parar de navegar. Haveria toda a alegria. Ainda
haveria toda a alegria. Os feios seriam para sempre. Nem que o jacaré
houvesse comido por dentro do peito dos dois. Nem que o jacaré
comesse dentro e fora todo o corpo dos feios.
Para
sobreviver, Honra pensou que bastaria manter o silêncio de vinte
onças. Inteiro era uma multidão de feras educadas para defender. Ia
sem intenção de atacar. Aprendera por rigor e feição. Afeiçoara.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário