quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Seus três trabalhos



Por ser uma grande metrópole cheia de oportunidades, meus pais se mudaram para Birmingham, Alabama, onde meu pai foi tentar a sorte. Notícias a respeito de sua força, inteligência e perseverança tinham chegado até lá, e no entanto meu pai era tão jovem que sabia que teria que executar grandes tarefas antes de conquistar seu lugar.
Seu primeiro trabalho foi como assistente de veterinário. Sua maior responsabilidade era limpar os canis e as gaiolas dos gatos. Toda manhã, ao chegar, gaiolas e canis estavam cheios de fezes. Parte delas ficava sobre o papel que ele tinha colocado na noite anterior, mas uma parte ainda maior ficava espalhada pelas paredes e até nos próprios animais. Meu pai limpava essa sujeira toda manhã e toda tarde. Ele deixava as gaiolas e os canis tinindo, dava até para comer no chão, de tão limpos que ele os deixava. Mas em poucos segundos estavam sujos de novo, e essa era a terrível frustração daquele trabalho: um cachorro era capaz de olhar bem para você, no momento em que você estava fechando o canil limpinho, e cagar.

Seu segundo trabalho foi como vendedor na seção de lingerie de uma loja de departamentos chamada Smith’s. O fato de ele ter sido designado para a seção de lingerie parecia uma piada de mau gosto, e, na realidade, ele sofria bastante com os comentários jocosos dos homens de outras seções — especialmente da seção de roupas esportivas. Mas ele não desistiu, e no fim ganhou a confiança das mulheres que costumavam comprar na Smith’s, e de fato tornou-se o preferido das mulheres que trabalhavam com ele. Elas davam valor ao seu olhar atento.
Mas uma mulher nunca conseguiu aceitar meu pai como vendedor. O nome dela era Muriel Rainwater. Ela havia morado a vida inteira em Birmingham, teve dois maridos, ambos mortos, não tinha filhos, e tinha mais dinheiro do que podia gastar. Na época já estava com quase oitenta anos, e, como uma árvore, parecia crescer a cada ano até se tornar monumental; mesmo assim, era muito vaidosa. Embora não quisesse ser mais magra do que era, queria parecer mais magra do que era, e portanto visitava frequentemente a seção de lingerie da Smith’s em busca da última palavra em cintas.
Assim, todos os meses a sra. Rainwater marchava até a loja, sentava-se numa das poltronas largas à disposição das freguesas e, sem uma palavra, simplesmente acenava com a cabeça para um vendedor — e esse vendedor levava até ela o que havia de novidade em cinta. Mas esse vendedor nunca era Edward Bloom.
Isso era claramente um sinal de desprezo. Contudo, a verdade era que Edward Bloom também não gostava muito da sra. Rainwater. Ninguém gostava — os pés dela cheiravam a naftalina, seu cabelo parecia pano queimado e seus braços balançavam quando ela apontava para algo que queria. Mas o fato de ela insistir em não ser atendida por ele, tornou-a, aos olhos de Edward, a freguesa mais desejável da loja. Ele estabeleceu como meta um dia atender Muriel Rainwater.
Com esse objetivo, ele se apoderou do carregamento seguinte de cintas e o escondeu num canto do depósito, onde só ele conseguiria achá-lo. A sra. Rainwater chegou logo no dia seguinte. Ela se sentou na poltrona e apontou para uma das moças.
Você! — ela disse. — Traga-me a cinta!
A moça ficou agitada, porque tinha medo da sra. Rainwater.
A cinta? Mas não chegou nenhuma cinta!
Chegou sim! — a sra. Rainwater disse, com a boca aberta parecendo uma caverna. — Eu sei que chegou! Você! — Apontou para outra, o braço balançando como um balão cheio d’água. — Se ela não pode me atender, você pode. Traga-me a cinta!
A moça saiu correndo, chorando. A seguinte caiu de joelhos antes mesmo de a sra. Rainwater dizer uma palavra.
Finalmente, não restou ninguém para ela apontar a não ser meu pai. Ele estava parado na outra extremidade do andar, com ar orgulhoso. Ela o viu, mas fingiu que não viu. Fingiu que ele não estava lá.
Alguém pode me atender? — berrou. — Quero ver a nova cinta! Alguém pode por favor...
Meu pai atravessou o andar e ficou parado diante dela.
O que você quer? — ela disse.
Estou aqui para atendê-la, sra. Rainwater.
A sra. Rainwater sacudiu a cabeça e ficou olhando fixamente para os próprios pés; parecia estar com vontade de cuspir.
Esta seção não é para homens! — gritou.
E no entanto — ele disse — estou aqui. E só eu sei onde está a cinta nova. Só eu posso ajudá-la.
Não! — ela respondeu, sacudindo a cabeça sem acreditar no que estava ouvindo, seus olhos de cavalo claramente chocados. — Isso não pode ser... eu, eu...
Eu teria prazer em pegá-la para a senhora, sra. Rainwater. Teria muito prazer.
Então está bem! — ela disse, com gotinhas de cuspe nos cantos da boca. — Traga-me a cinta!
E foi o que ele fez. A sra. Rainwater se levantou. Foi para a cabine de prova onde a cinta estava sobre um banquinho. Ela bateu com a porta. Meu pai a ouviu gemer e resmungar ao fechar a cinta e, finalmente, alguns minutos depois, ela saiu.
E não era mais a sra. Rainwater. Tinha sido completamente transformada. A cinta tinha transformado aquela baleia numa beleza de mulher. Tinha seios fartos e um traseiro um tanto avantajado, mas seu corpo estava bem torneado, e ela até parecia mais jovem, e mais doce, e certamente bem mais feliz do que antes. Era realmente um milagre tecnológico.
Ela olhou para meu pai como se ele fosse um deus.
É esta aqui!”, exclamou, com uma voz melodiosa. “Esta é a cinta pela qual esperei a vida inteira! E pensar que você... você... eu fui muito injusta! Você pode me perdoar?”
Ela então se virou para olhar no espelho, no qual admirou entusiasmada o seu novo eu.
Ah, sim”, ela disse. “Sim. Esta é que deveria ser a minha aparência. Assim eu talvez até consiga outro marido. Nunca pensei que as cintas fossem evoluir tanto, tão depressa! Mas olhe só para mim!”
Ela se virou e lançou um olhar de adoração para meu pai.
Você vai longe aqui, meu rapaz”, ela disse.

O terceiro e último trabalho de Edward Bloom teve a ver com um cachorro selvagem. Depois de meu pai ter sido rapidamente promovido de vendedor para gerente, minha mãe e ele se mudaram para uma casinha branca em frente à escola primária. Eles eram a segunda família a morar lá. A casa tinha sido construída por Amos Calloway, sessenta anos antes, e ele e sua esposa tinham criado os filhos ali, e os filhos tinham ido embora. A sra. Calloway morrera havia muitos anos, e quando o sr. Calloway morreu todo mundo na vizinhança achou que um de seus adoráveis filhos iria voltar para lá. Mas eles não voltaram. Os filhos estavam estabelecidos em cidades distantes e, depois de enterrar o pai, puseram imediatamente a casa à venda, e os Bloom se acharam afortunados por conseguir comprá-la.
Mas os Bloom não foram bem recebidos — não na casa de Amos Calloway. A associação de Amos Calloway com a casa que construiu era tão forte que depois de sua morte os vizinhos sugeriram que ela fosse demolida e que fosse construído ali um parque para as crianças. Agora que os Calloway tinham partido, a casa deveria partir também. Um casal estranho se mudar para lá era como se duas pessoas estivessem tentando entrar no caixão de Amos Calloway, com seu cadáver ainda fresco lá dentro. Em suma, ninguém gostou muito dos Bloom.
Minha mãe e meu pai fizeram o possível para mudar isso. Minha mãe acolheu gatos sem dono, como ouviu dizer que a sra. Calloway costumava fazer. Meu pai continuou a aparar as azáleas em forma de alfabeto, algo pelo qual Amos era famoso. Tudo em vão. Nos fins de semana, minha mãe e meu pai trabalhavam no jardim, exatamente como seus vizinhos faziam, mas era como se fossem invisíveis. E, de certa forma, eram. Para suportar a ausência de Amos Calloway e sua família, os vizinhos tinham resolvido ignorar a presença dos Bloom.
Até o dia em que a vizinhança foi invadida por uma matilha de cães selvagens. Quem sabe de onde eles vieram? Seis, oito, alguns diziam dez — eles derrubavam as latas de lixo à noite e cavavam buracos profundos nos jardins. O tecido aveludado do sono era rasgado por seus terríveis uivos e latidos. Outros cachorros que ousavam enfrentá-los eram achados mortos na manhã seguinte ou não eram achados. As crianças não podiam sair de casa depois que escurecia, e alguns homens passaram a carregar armas toda vez que saíam. Finalmente, a cidade apelou para funcionários do Serviço Estadual de Controle Animal, e numa noite sangrenta todos os cachorros selvagens foram mortos ou capturados.
Quer dizer, todos menos um. O mais feroz, o mais terrível de todos. Preto retinto, confundia-se com a noite. Diziam que era tão ladino que você nem percebia quando se aproximava — até mostrar seus dentes brilhantes. E aquele cachorro não era apenas selvagem: era um cachorro doido, com uma tendência quase humana para o ódio e a vingança. Uma família pagou caro quando instalou uma cerca elétrica ao redor da propriedade. Olhando pela janela uma noite, viram o cachorro entrar. O animal levou um choque e foi atirado de volta na rua, mas não se machucou. Depois disso, ficava rondando a casa da família, de modo que à noite ninguém entrava nem saía. Era como se, em vez de proteção, a família tivesse construído uma prisão para si mesma.
Meu pai poderia facilmente ter amansado o cachorro e o levado de volta para as montanhas; tal era o seu jeito com animais. No entanto, não fez isso. Por quê? Porque, pela primeira vez na vida, não conseguiu. Os rigores de sua nova vida o tinham enfraquecido. Não era relutância em usar os poderes com que tinha nascido; ele simplesmente não parecia mais possuí-los.
E a confusão teria continuado se o Destino não tivesse dado um cutucão em meu pai, obrigando-o a sair de casa uma noite para dar uma volta. As ruas de Edgewood estavam vazias, é claro. Quem ousava se arriscar na rua depois que o sol se punha, sabendo que o Cão Infernal (como era conhecido) estava lá, em algum lugar? Mas meu pai não estava ligando para o cachorro; ele não era o tipo de homem que deixava que um perigo canino determinasse sua vida. Talvez fosse o agente de algum poder maior. O que sabemos com certeza é o seguinte: ele saiu uma noite para dar uma volta e salvou a vida de uma criança.
A criança — uma menina de três anos chamada Jennifer Morgan, que morava duas portas depois da casa do velho Calloway, como ainda era chamada — tinha saído pela porta da cozinha enquanto os pais tentavam desentupir o vaso sanitário do banheiro do casal. Ela tinha ouvido tanta coisa sobre o cachorro que não pôde resistir: tinha que sair e fazer festa nele. Quando meu pai a viu, ela estava caminhando na direção da fera com um pedaço de pão na mão, chamando: “Aqui, cachorrinho. Cachorrinho, vem cá.”
O Cão Infernal avançava devagar, sem conseguir acreditar em sua sorte. Nunca tinha comido uma menininha antes, mas ouvira dizer que elas eram saborosas. Mais gostosas do que os meninos, e quase tão boas quanto as galinhas.
O êxtase culinário do momento foi interrompido, entretanto, por Edward Bloom. Ele ergueu a menina nos braços e atirou o pão para o cachorro, que o ignorou e continuou avançando. Em qualquer outra hora, seu poder legendário com os animais teria tornado o cachorro dócil. Entretanto, o enorme e negro Cão Infernal ficou furioso. Edward tinha se intrometido entre ele e uma refeição.
O cachorro avançou para eles, furioso, e saltou. Segurando a menina com um braço, Bloom agarrou o cão pelo pescoço com o outro, e depois o atirou no chão. O cachorro ganiu, mas se levantou e rosnou ameaçadoramente. Balançava a cabeça de um lado para o outro numa velocidade estonteante; por um momento pareceu que tinha duas cabeças, rosnando e mostrando dois conjuntos de dentes e gengivas rosadas.
Naquela altura, os Morgan tinham notado o desaparecimento da filha e tinham saído correndo na direção do latido tenebroso do cachorro. Chegaram a tempo de ver o cachorro avançar de novo, dessa vez quase alcançando o pescoço de meu pai, respingando-o de saliva. Esse foi o erro fatal do cachorro: deixar exposta a lateral do corpo ao saltar. Edward Bloom conseguiu enterrar a mão no cachorro, atravessando o pelo, pele, atravessando seu corpo e arrancando o enorme coração. Meu pai segurava a menina junto ao corpo, aninhada em seu ombro largo. Ela foi poupada daquela cena dantesca. Quando o cachorro caiu inanimado no chão, meu pai largou o coração lá ao lado dele, entregou a menina para os pais e continuou seu passeio.
Assim terminaram os três trabalhos de Edward Bloom.

Daniel Wallace, in Peixe Grande

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