João
Olho
Teresa. Veja-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim.
A
poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de
que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento
em que a vejo neste momento?
Raimundo
Maria
era a praia que eu frequentava certas manhãs. Meus gestos
indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente livre que
ele mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de
extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.
Joaquim
O
amor comeu o meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu a
minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor
comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis
onde eu escrevera meu nome.
João
Olho
Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse
vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro
continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a
poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas
afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.
Raimundo
Maria
era sempre uma praia, lugar onde me sinto exato e nítido como uma
pedra – meu particular, minha fuga, meu excesso imediatamente
evaporados. Maria era o mar dessa praia, sem mistério e sem
profundeza. Elementar, como as coisas que podem ser mudadas em vapor
ou poeira.
Joaquim
O
amor comeu minhas roupas, meus lençóis, minhas camisas. O amor
comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus
ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor
comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
João
Posso
dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Teresa que durante todo o
dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim?
Raimundo
Maria
era também uma fonte. O líquido que começaria a jorrar num momento
que eu previa, num ponto que eu poderia examinar, em circunstâncias
que eu poderia controlar. Eu aspirava acompanhar com os olhos o
crescimento de um arbusto, o surgimento de um jorro de água.
Joaquim
O
amor comeu os meus remédios, minhas receitas médicas, minhas
dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas meus raio-x.
Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
João
Esta
é mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade?
Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em toda a
intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? A desse sonho
que ainda trago em mim como um objeto que me passasse no bolso?
Raimundo
Maria
não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os
detalhes de seu corpo, que poderia reconstituir à minha vontade. Sua
boca, seu sorriso irregular. Todos esses detalhes não me seriam
difíceis arrumá-los, recompondo-os, como um jogo de armar ou uma
prancha anatômica.
Joaquim
O
amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus
livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as
palavras que poderiam se juntar em versos.
João
Ainda
me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a
onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar
entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar
enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou, mas de cujo
contato ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria
mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol afugentou, porque os
sonhos são como as aves não apenas porque crescem e vivem no ar).
Raimundo
Maria
era também, em certas tardes, o campo cimentado que eu atravessava
para chegar em algum lugar. Sozinho sobre a terra e sob um sol que me
poderia evaporar de toda nuvem.
Joaquim
Faminto
o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas,
tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de
meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o
aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
João
Teresa
aqui está ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que,
entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos
gestos, das palavras?
Raimundo
Maria
era também uma árvore. Um desses organismos sólidos e práticos,
presos à terra com raízes que a exploram e devassam seus segredos.
E ao mesmo tempo lançados para o céu, com quem permutam seus gazes,
seus pássaros, seus movimentos.
Joaquim
O
amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e
das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as
lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
João
O
sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha
cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda esta
gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador
ou uma colina, sou o único a estudar esse mar. Talvez Teresa…
Raimundo
Maria
também era a garrafa de aguardente. Aproximo o ouvido dessa forma
correta e exportável e percebo o rumor e os movimentos de sonhos
possíveis, ainda em sua matéria líquida, sonhos de que disporei,
que submeterei a meu tempo e minha vontade, que alcançarei com a
mão.
Joaquim
O
amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a
escrever meu nome.
João
Talvez
Teresa…Sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?
Raimundo
Maria
era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e
mais recente.
Joaquim
O
amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelos caindo
nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo,
sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava
na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina
do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma
mulher, sobre marcas de automóvel.
João
Posso
esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação
minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma
participação de fora, de todo o universo, de sua geografia, sua
história, sua poesia?
Raimundo
Maria
era também um livro: susto de que estamos certos, susto que
praticar, com que fazer os exercícios que nos permitirão entender a
voz de uma cadeira, de uma cômoda; susto cuidadosamente oculto, como
qualquer animal venenoso, entre as folhas claras e organizadas dessa
floresta enumerada que leva dísticos explicativos: poesia, poemas,
versos.
Joaquim
O
amor comeu meu estado e minha cidade. Drenou a água morta dos
mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras,
comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros
regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo transindo preto,
pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de
maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber
falar delas em verso.
João
O
arbusto e a pedra aparecida em qualquer sonho podem ficar
indiferentes à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo
que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa
participação esses fantasmas, nessa Teresa por exemplo, agora
distraída e distante? Há algum sinal que a faça compreender termos
sido, juntos, peixes de um mesmo mar?
Raimundo
Maria
era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que
corre em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu
construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me
definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento
armado – presenças duras e inalteráveis, oposta a minha fuga.
Joaquim
O
amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os
minutos de um adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de
minha mão me asseguram. Comeu o futuro grande poeta. Comeu as
futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da
sala.
João
Donde
me veio a ideia de que Teresa talvez participe de um universo
privado, fechado em minha lembrança? Desse mundo que, através de
minha franqueza, compreendi ser o único onde me será possível
cumprir os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um
copo de água, escrever meu nome? Nada, nem mesmo Teresa.
Raimundo
Maria
era também o sistema estabelecido de antemão, o fim onde chegar.
Era a lucidez, que, ela só, nos pode dar um modo novo e completo de
ver uma flor, de ler um verso.
Joaquim
O
amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu
inverso e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu
medo da morte.
João Cabral de Meto Neto, in Obra Completa
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