quarta-feira, 22 de novembro de 2023

O Azarão | 7


Na quinta-feira daquela semana, Rube também me convenceu a dar mais uma saída, uma jornada bem diferente das nossas saídas normais para roubar.
Placas de trânsito.
Esse era o novo plano.
Era à tardinha ainda, quando teve essa ideia e me disse qual das placas queria pegar.
A placa de “Dê a preferência” — falou ele. — A da rua Marshall. — Sorriu. — Afanamos, certo, umas onze da noite, com aquela chave sueca do papai, aquela que você ajusta rodando a coisa em cima...
A chave inglesa? — É. Essa aí... Botamos o capuz, andamos até lá casualmente, como M. E. Waugh na hora de rebater, eu subo nos seus ombros e pegamos a placa.
Para quê?
O que, exatamente, você quer dizer com para quê?
Quero dizer: qual a finalidade disso?
Finalidade? — Ele estava... qual é mesmo a palavra? Exasperado. Frustrado.
Não precisa de finalidade, filho. Somos jovens, delinquentes, não temos namorada, temos meleca no nariz, dor de garganta, feridas no corpo todo, espinhas, sem namorada (eu já disse isso?), sem dinheiro, comemos purê de cogumelos com carne quase toda noite no jantar e enchemos o prato de molho de tomate pra engolir tudo isso. Você precisa de mais razões? — Meu irmão jogou a cabeça para trás na cama e fitou o teto em desespero. — Não pedimos muito, santo Deus! O senhor sabe disso!
Então era isso.
A próxima missão.
Eu juro: naquela noite, parecíamos selvagens, bem como o Rube descreveu no ataque dele. Primeiro, fiquei chocado com o fato de ele conhecer a gente daquele jeito.
Como eu. Só que o Rube sentia orgulho disso.
Talvez não soubéssemos quem éramos, mas sabíamos o que éramos, e, para o Rube, isso fazia com que praticar atos de vandalismo, como roubar placas de trânsito, parecesse lógico. Com certeza, ele não parecia pensar na possibilidade de terminarmos numa cela de delegacia sem as barras de proteção adequadas.
Claro, sabíamos que não íamos conseguir.
O único problema foi que conseguimos.
Saímos às escondidas pela porta de trás da casa, faltando uns quinze minutos para a meia-noite, com o capuz cobrindo a cabeça e os passos nos arrastando para a frente.
Caminhamos tranquilos, e até corajosos, rua abaixo, soltando vapor na respiração, com as mãos nos bolsos, achando que o mundo estava a nossos pés. Fungávamos, e a respiração parecia queimar através do ar, rasgando-o. Eu me sentia como o tal de Júlio César saindo para conquistar outro império, e tudo que íamos fazer era roubar uma droga de triângulo cinza e rosa, que deveria ter sido vermelho e branco.
Dê a preferência.
Mais como dê cabo dela — falou Rube, dando um riso abafado ao chegarmos ao local da placa. Ele subiu, escorregou, depois subiu de novo nos meus ombros.
Muito bem — tornou a falar, quando se equilibrou. — Chave sueca.
Hã?
A chave sueca, idiota. — O murmúrio dele era rouco e cheio de vapor no frio.
Ah, claro, isso, esqueci.
Entreguei a ele a chave sueca, inglesa ou fosse qual fosse o nome dela, e meu irmão começou a desparafusar a placa de "dê a preferência" no cruzamento das ruas Marshall e Carlisle.
Caramba, ela está meio teimosa — reclamou Rube. — O parafuso está tão enferrujado que todo o lixo está ficando preso na porca. Só continue me segurando, tá bem? — Estou ficando cansado — falei.
Bem, aguente. A barreira da dor. A barreira da dor, filho. Os grandes sempre conseguem romper a barreira da dor.
Que grandes? Ladrões de placas?
Não. — Curto e grosso. — Atletas, retardado.
Então, veio o triunfo.
Muito bem — anunciou Rube. — Peguei. — Pulou dos meus ombros com a placa, assim que a luz foi acesa num dos apartamentos velhos da esquina.
Uma mulher foi até a varanda e suspirou: — Ei, dá pra fazer o favor de crescer?
Vamos. — Rube puxou meu casaco. — Vamos, vamos, vamos! Saímos correndo e ríamos, enquanto Rube segurava a placa acima da cabeça, gritando: — É isso aí! Mesmo quando entramos de fininho em casa, a adrenalina ainda estava correndo no meu sangue. Desapareceu aos poucos quando voltamos para o nosso quarto. Com a luz do quarto apagada quase imediatamente, Rube empurrou a placa para baixo da cama dele e falou, só para fazer graça: — Se você contar isso pra mamãe ou pro papai, enfio essa placa na sua goela.
Ri um pouco e logo adormeci, ainda ouvindo os sons delicados de suspiros femininos diante de pessoas indesejáveis no meio da noite. Também fiquei pensando em Rebecca Conlon antes de dormir e me lembrei dos momentos em que caminhamos pela rua e pegamos a placa, quando fingia que ela estava me observando. Não tinha certeza se ela ia gostar de mim ou pensar que eu era um completo idiota. Completo idiota, provavelmente.
Enfim — suspirei para mim mesmo debaixo do cobertor. — Enfim. — E comecei a rezar por ela e todos os outros por quem tinha rezado ultimamente. Durante a noite, não muito depois de o sono me pegar, meu sonho veio. Um sonho muito ruim. Um pesadelo. De verdade.
Você vai vê-lo daqui a pouco...
No dia seguinte, de manhã, Rube tirou a placa para admirá-la mais uma vez no conforto do nosso quarto. Eu havia acabado de tomar banho.
Não é linda? — perguntou.
É. — No entanto, eu não parecia muito interessado.
Qual é o seu problema?
Nada. — Era o pesadelo.
Então, tá. — Guardou a placa e meteu a cabeça no corredor. — Aah. — Olhou de volta para mim. — Você deixou a porta do banheiro aberta de novo. Você faz isso de propósito só pra ficar frio lá dentro antes de eu entrar no chuveiro, não é?
Esqueci.
Bem, tenta lembrar da próxima vez.
Ele saiu, mas eu o segui, com o cabelo molhado e arrepiado em todas as direções.
Aonde diabos você pensa que vai?
Tenho que lhe contar uma coisa.
Está bem. — Ele me deixou do lado de fora do banheiro. Ouvi o chuveiro ligando, a porta destrancando, a cortina fechando e então um grito: Entra! Entrei e sentei na privada com a tampa abaixada.
Bem — gritou ele para mim —, qual é o problema?
Comecei a contar sobre o pesadelo, e um calor parecia sair de mim, dominando o calor do banheiro. Levei uns minutos para explicar o sonho de modo adequado.
Quando acabei, tudo que o Rube disse foi: — E daí? — O vapor estava ficando denso.
Então, o que devemos fazer?
O chuveiro parou.
Rube enfiou a cabeça pela cortina.
Me passa aquela toalha.
Passei.
Ele se enxugou e saiu, emergindo do vapor e dizendo: — Bem, com certeza você está contando um sonho confuso, meu filho.
Ele não tinha ideia de como era confuso. Eu que tinha sonhado. Eu que tinha acreditado nele quando estava dentro de mim. Era eu que.
Acabe.
Acabe com isso.
Não...
Eu que tinha acordado na escuridão do nosso triunfo com suor invadindo meus olhos e um grito silencioso comprimindo meus lábios.
No meio do banheiro agora, sugeri: — Temos que levar a placa de volta. Primeiro, Rube tinha outras ideias. Aproximou-se e falou: Podemos ligar pra companhia de engenharia de tráfego, dizendo que a placa tem que ser substituída.
Vai levar semanas pra eles substituírem. Rube fez uma pausa. Então, falou: — É. Você tem razão.
Infelicidade.
O estado das nossas vias por aqui é uma desgraça para a nação.
Então, o que fazemos? — perguntei mais uma vez. Estava genuinamente preocupado agora com a segurança do público em geral, e porque me lembrei de uma história que tinha visto no noticiário fazia um ano mais ou menos, em que uns caras, nos Estados Unidos, pegaram uns vinte anos de cadeia por roubar uma placa, porque isso causou um acidente fatal. Pode procurar, se não acredita em mim. Isso aconteceu.
O que vamos fazer? — perguntei de novo. Rube respondeu ao não responder com rapidez. Saiu do banheiro, vestiu a roupa e, então, levou as mãos à cabeça quando sentou na minha cama.
O que mais podemos fazer? — indagou, quase implorou. — Vamos levar de volta, imagino.
Sério? Selvagens, sim. Selvagens apavorados.
É. — Ele estava arrasado. — Sim. Vamos devolver. — Era como se alguém tivesse roubado alguma coisa do próprio Rube. Mas o quê? Por que essa necessidade de pegar coisas? Era só para sentir como era quebrar as regras e sentir-se bem, sendo mau? Talvez fosse porque Rube se achava um fracassado e estava provando isso a si mesmo, ao tentar roubar. Talvez quisesse ser como o herói dos filmes americanos aos quais assistíamos na tevê. Para ser sincero, não tinha ideia do que estava acontecendo na mente dele, e ponto final.
Antes de irmos para a escola, ele pegou a placa e deu uma última, triste e amorosa olhada.
Naquela noite (sexta-feira), nós a levamos de volta lá pelas onze, e ninguém nos pegou, graças a Deus. Teria sido uma tremenda ironia, quero dizer, ser pego por roubar uma placa quando, na verdade, a gente estava devolvendo.
Bem — falou ele, quando chegamos em casa —, voltamos de mãos vazias. Pra variar.
Hum. — Não consegui dizer nada naquele momento.
Uma coisa de que sempre vou me lembrar daquela noite é que, quando voltamos para casa, Steve estava na varanda da frente, sentado, no frio. As muletas ainda estavam perto dele, porque o tornozelo continuava muito ruim. Estava sentado ali, em nosso sofá velho, com uma caneca sobre a grade.
Quando nos esgueiramos pela lateral da casa, meio que ignorando Steve, ouvi a voz dele. Voltei. Perguntei.
O que foi que você acabou de dizer? — perguntei com um tom de voz normal, como se estivesse interessado no que tinha dito.
Ele repetiu. Isso: — Não acredito que somos irmãos. Balançou a cabeça.
E falou de novo.
Vocês, caras, são uns perdedores.
Para falar a verdade, foi o jeito como falou que me fez voltar. Falou como se a gente estivesse tão abaixo dele que ele mal podia se importar. Então, considerando o que tínhamos acabado de fazer, eu quase conseguia entender o ponto de vista dele. Como Steven Wolfe podia ter o mesmo sangue que Rube e eu, e o mesmo que a Sarah, por sinal? De qualquer forma, só parei um pouco, antes de voltar a andar, ouvindo um ruído estridente partir minha cabeça, por dentro. Ela gemia, como se estivesse ferida.
De volta ao nosso quarto, perguntei ao Rube em que lugar na parede ele teria posto a placa. Talvez eu tenha perguntado para esquecer o que Steve me dissera.
Aqui?
Não.
Aqui?
Não.
Aqui? Durante muito tempo, não obtive resposta, e, naquela noite, a luz ficou acesa por um tempo para o Rube pensar sobre coisas que eu nunca saberia. Tudo que fez foi ficar deitado na cama, esfregando lentamente a barba, como se fosse tudo que lhe restasse.
Depois de me ajeitar na cama, pensei bastante sobre o dia seguinte, trabalhando na casa dos Conlon. Rebecca Conlon. Tinha pensado que o dia nunca chegaria, mas, no dia seguinte, eu voltaria lá. Assim que me esqueci de Rube e Steve, foi bonito estar vivo, com a consciência livre e esperando por uma garota que valia cada oração.
Depois de um longo tempo, Rube fez uma declaração.
Falou: — Cameron, eu não colocaria aquela placa em lugar nenhum da nossa parede.
Virei para encará-lo. — Por que não?
Você sabe por que não. — Continuou fitando o teto. Apenas a boca se moveu. — Porque, quando mamãe a visse, me mataria.

Tem um carro, rodando pela cidade. É alaranjado, grande, e faz o ruído pesado, melancólico que os carros gostam de fazer. Ruge pelas ruas, embora sempre pare nos sinais vermelhos, nas placas de “pare” e coisas do tipo.
Corta para outro local...
Rube e eu estamos andando, fora do portão principal, supostamente para ver o Steve jogando futebol, embora seja umas duas da madrugada. Está frio, sabe, aquele tipo de frio nojento. Frio que, de alguma forma, respira. Penetra a boca da gente, de modo brusco e doloroso.
Uma pergunta.
Rube: — Você já pensou em bater no coroa?
No nosso coroa?
Isso.
Por quê?
Não sei... Você não acha que seria engraçado?
Não. Não acho, não.
Nisso, voltamos em silêncio, andando. Nossos pés se arrastam pelo caminho, ao mesmo tempo que uns poucos carros isolados circulam. Os táxis passam e mudam de direção na rua, um caminhão de lixo faz força perto de nós, com excesso de peso. O carro alaranjado passa por nós, rugindo.
Imbecis — falo para o Rube.
Com certeza.
Quando ele diz isso, o carro arranca, e nós o ouvimos avançar; então, ele volta por uma rua lateral atrás de nós.
Corta para outro local...
Rube e eu estamos de pé na esquina das ruas Marshall e Carlisle. Rube se abaixa quando os últimos acordes de um carro se aproximam. Ele se abaixa, segurando entre as pernas aplaca de “dê a preferência” que roubamos. O poste está sem placa quando olho para ele. E só um poste sem placa enfiado no cimento.
A chegada.
O carro alaranjado sobe a rua Marshall, à toda, chegando ao fim da rua com avidez.
Quando passa por nós, está voando.
Sem placa.
Sem placa.
Acelera em nossa direção, e meus olhos se fecham; um tremendo som de metal preso e enrolado em mais metal, um grito, e uma chuva atrasada de cacos de vidro.
Rube está agachado.
Fico de pé, com os olhos ainda fechados.
Um silêncio que murmura.
Está em toda parte.
Meus olhos abrem, e nós caminhamos.
Rube baixa aplaca,fica de pé, e nós caminhamos em pânico, tremendo e devagar, até os carros que parecem ter abocanhado um ao outro em pleno ataque.
Em seu interior, as pessoas parecem devoradas.
Estão mortas, sangrando e mutiladas.
Estão mortas.
Estão mortas! — grito para Rube, mas nada sai da minha boca. Nem som. Nem voz.
Então, um cadáver volta à vida.
Os olhos dele estão focos em mim, a pessoa grita, e o som nos meus ouvidos é insuportável. Isso me derruba, e pressiono as têmporas com as mãos.

Markus Kusak, in O Azarão

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