Na
quinta-feira daquela semana, Rube também me convenceu a dar mais uma
saída, uma jornada bem diferente das nossas saídas normais para
roubar.
Placas
de trânsito.
Esse
era o novo plano.
Era
à tardinha ainda, quando teve essa ideia e me disse qual das placas
queria pegar.
— A
placa de “Dê a preferência” — falou ele. — A da rua
Marshall. — Sorriu. — Afanamos, certo, umas onze da noite, com
aquela chave sueca do papai, aquela que você ajusta rodando a coisa
em cima...
— A
chave inglesa? — É. Essa aí... Botamos o capuz, andamos até lá
casualmente, como M. E. Waugh na hora de rebater, eu subo nos seus
ombros e pegamos a placa.
— Para
quê?
— O
que, exatamente, você quer dizer com para quê?
— Quero
dizer: qual a finalidade disso?
— Finalidade?
— Ele estava... qual é mesmo a palavra? Exasperado. Frustrado.
— Não
precisa de finalidade, filho. Somos jovens, delinquentes, não temos
namorada, temos meleca no nariz, dor de garganta, feridas no corpo
todo, espinhas, sem namorada (eu já disse isso?), sem dinheiro,
comemos purê de cogumelos com carne quase toda noite no jantar e
enchemos o prato de molho de tomate pra engolir tudo isso. Você
precisa de mais razões? — Meu irmão jogou a cabeça para trás na
cama e fitou o teto em desespero. — Não pedimos muito, santo Deus!
O senhor sabe disso!
Então
era isso.
A
próxima missão.
Eu
juro: naquela noite, parecíamos selvagens, bem como o Rube descreveu
no ataque dele. Primeiro, fiquei chocado com o fato de ele conhecer a
gente daquele jeito.
Como
eu. Só que o Rube sentia orgulho disso.
Talvez
não soubéssemos quem éramos, mas sabíamos o que éramos, e, para
o Rube, isso fazia com que praticar atos de vandalismo, como roubar
placas de trânsito, parecesse lógico. Com certeza, ele não parecia
pensar na possibilidade de terminarmos numa cela de delegacia sem as
barras de proteção adequadas.
Claro,
sabíamos que não íamos conseguir.
O
único problema foi que conseguimos.
Saímos
às escondidas pela porta de trás da casa, faltando uns quinze
minutos para a meia-noite, com o capuz cobrindo a cabeça e os passos
nos arrastando para a frente.
Caminhamos
tranquilos, e até corajosos, rua abaixo, soltando vapor na
respiração, com as mãos nos bolsos, achando que o mundo estava a
nossos pés. Fungávamos, e a respiração parecia queimar através
do ar, rasgando-o. Eu me sentia como o tal de Júlio César saindo
para conquistar outro império, e tudo que íamos fazer era roubar
uma droga de triângulo cinza e rosa, que deveria ter sido vermelho e
branco.
Dê
a preferência.
— Mais
como dê cabo dela — falou Rube, dando um riso abafado ao chegarmos
ao local da placa. Ele subiu, escorregou, depois subiu de novo nos
meus ombros.
— Muito
bem — tornou a falar, quando se equilibrou. — Chave sueca.
— Hã?
— A
chave sueca, idiota. — O murmúrio dele era rouco e cheio de vapor
no frio.
— Ah,
claro, isso, esqueci.
Entreguei
a ele a chave sueca, inglesa ou fosse qual fosse o nome dela, e meu
irmão começou a desparafusar a placa de "dê a preferência"
no cruzamento das ruas Marshall e Carlisle.
— Caramba,
ela está meio teimosa — reclamou Rube. — O parafuso está tão
enferrujado que todo o lixo está ficando preso na porca. Só
continue me segurando, tá bem? — Estou ficando cansado — falei.
— Bem,
aguente. A barreira da dor. A barreira da dor, filho. Os grandes
sempre conseguem romper a barreira da dor.
— Que
grandes? Ladrões de placas?
— Não.
— Curto e grosso. — Atletas, retardado.
Então,
veio o triunfo.
— Muito
bem — anunciou Rube. — Peguei. — Pulou dos meus ombros com a
placa, assim que a luz foi acesa num dos apartamentos velhos da
esquina.
Uma
mulher foi até a varanda e suspirou: — Ei, dá pra fazer o favor
de crescer?
— Vamos.
— Rube puxou meu casaco. — Vamos, vamos, vamos! Saímos correndo
e ríamos, enquanto Rube segurava a placa acima da cabeça, gritando:
— É isso aí! Mesmo quando entramos de fininho em casa, a
adrenalina ainda estava correndo no meu sangue. Desapareceu aos
poucos quando voltamos para o nosso quarto. Com a luz do quarto
apagada quase imediatamente, Rube empurrou a placa para baixo da cama
dele e falou, só para fazer graça: — Se você contar isso pra
mamãe ou pro papai, enfio essa placa na sua goela.
Ri
um pouco e logo adormeci, ainda ouvindo os sons delicados de suspiros
femininos diante de pessoas indesejáveis no meio da noite. Também
fiquei pensando em Rebecca Conlon antes de dormir e me lembrei dos
momentos em que caminhamos pela rua e pegamos a placa, quando fingia
que ela estava me observando. Não tinha certeza se ela ia gostar de
mim ou pensar que eu era um completo idiota. Completo idiota,
provavelmente.
— Enfim
— suspirei para mim mesmo debaixo do cobertor. — Enfim. — E
comecei a rezar por ela e todos os outros por quem tinha rezado
ultimamente. Durante a noite, não muito depois de o sono me pegar,
meu sonho veio. Um sonho muito ruim. Um pesadelo. De verdade.
Você
vai vê-lo daqui a pouco...
No
dia seguinte, de manhã, Rube tirou a placa para admirá-la mais uma
vez no conforto do nosso quarto. Eu havia acabado de tomar banho.
— Não
é linda? — perguntou.
— É.
— No entanto, eu não parecia muito interessado.
— Qual
é o seu problema?
— Nada.
— Era o pesadelo.
— Então,
tá. — Guardou a placa e meteu a cabeça no corredor. — Aah. —
Olhou de volta para mim. — Você deixou a porta do banheiro aberta
de novo. Você faz isso de propósito só pra ficar frio lá dentro
antes de eu entrar no chuveiro, não é?
— Esqueci.
Bem,
tenta lembrar da próxima vez.
Ele
saiu, mas eu o segui, com o cabelo molhado e arrepiado em todas as
direções.
— Aonde
diabos você pensa que vai?
— Tenho
que lhe contar uma coisa.
— Está
bem. — Ele me deixou do lado de fora do banheiro. Ouvi o chuveiro
ligando, a porta destrancando, a cortina fechando e então um grito:
Entra! Entrei e sentei na privada com a tampa abaixada.
— Bem
— gritou ele para mim —, qual é o problema?
Comecei
a contar sobre o pesadelo, e um calor parecia sair de mim, dominando
o calor do banheiro. Levei uns minutos para explicar o sonho de modo
adequado.
Quando
acabei, tudo que o Rube disse foi: — E daí? — O vapor estava
ficando denso.
— Então,
o que devemos fazer?
O
chuveiro parou.
Rube
enfiou a cabeça pela cortina.
— Me
passa aquela toalha.
Passei.
Ele
se enxugou e saiu, emergindo do vapor e dizendo: — Bem, com certeza
você está contando um sonho confuso, meu filho.
Ele
não tinha ideia de como era confuso. Eu que tinha sonhado. Eu que
tinha acreditado nele quando estava dentro de mim. Era eu que.
Acabe.
Acabe
com isso.
Não...
Eu
que tinha acordado na escuridão do nosso triunfo com suor invadindo
meus olhos e um grito silencioso comprimindo meus lábios.
No
meio do banheiro agora, sugeri: — Temos que levar a placa de volta.
Primeiro, Rube tinha outras ideias. Aproximou-se e falou: Podemos
ligar pra companhia de engenharia de tráfego, dizendo que a placa
tem que ser substituída.
— Vai
levar semanas pra eles substituírem. Rube fez uma pausa. Então,
falou: — É. Você tem razão.
— Infelicidade.
— O
estado das nossas vias por aqui é uma desgraça para a nação.
— Então,
o que fazemos? — perguntei mais uma vez. Estava genuinamente
preocupado agora com a segurança do público em geral, e porque me
lembrei de uma história que tinha visto no noticiário fazia um ano
mais ou menos, em que uns caras, nos Estados Unidos, pegaram uns
vinte anos de cadeia por roubar uma placa, porque isso causou um
acidente fatal. Pode procurar, se não acredita em mim. Isso
aconteceu.
— O
que vamos fazer? — perguntei de novo. Rube respondeu ao não
responder com rapidez. Saiu do banheiro, vestiu a roupa e, então,
levou as mãos à cabeça quando sentou na minha cama.
— O
que mais podemos fazer? — indagou, quase implorou. — Vamos levar
de volta, imagino.
Sério?
Selvagens, sim. Selvagens apavorados.
— É.
— Ele estava arrasado. — Sim. Vamos devolver. — Era como se
alguém tivesse roubado alguma coisa do próprio Rube. Mas o quê?
Por que essa necessidade de pegar coisas? Era só para sentir como
era quebrar as regras e sentir-se bem, sendo mau? Talvez fosse porque
Rube se achava um fracassado e estava provando isso a si mesmo, ao
tentar roubar. Talvez quisesse ser como o herói dos filmes
americanos aos quais assistíamos na tevê. Para ser sincero, não
tinha ideia do que estava acontecendo na mente dele, e ponto final.
Antes
de irmos para a escola, ele pegou a placa e deu uma última, triste e
amorosa olhada.
Naquela
noite (sexta-feira), nós a levamos de volta lá pelas onze, e
ninguém nos pegou, graças a Deus. Teria sido uma tremenda ironia,
quero dizer, ser pego por roubar uma placa quando, na verdade, a
gente estava devolvendo.
— Bem
— falou ele, quando chegamos em casa —, voltamos de mãos vazias.
Pra variar.
— Hum.
— Não consegui dizer nada naquele momento.
Uma
coisa de que sempre vou me lembrar daquela noite é que, quando
voltamos para casa, Steve estava na varanda da frente, sentado, no
frio. As muletas ainda estavam perto dele, porque o tornozelo
continuava muito ruim. Estava sentado ali, em nosso sofá velho, com
uma caneca sobre a grade.
Quando
nos esgueiramos pela lateral da casa, meio que ignorando Steve, ouvi
a voz dele. Voltei. Perguntei.
— O
que foi que você acabou de dizer? — perguntei com um tom de voz
normal, como se estivesse interessado no que tinha dito.
Ele
repetiu. Isso: — Não acredito que somos irmãos. Balançou a
cabeça.
E
falou de novo.
— Vocês,
caras, são uns perdedores.
Para
falar a verdade, foi o jeito como falou que me fez voltar. Falou como
se a gente estivesse tão abaixo dele que ele mal podia se importar.
Então, considerando o que tínhamos acabado de fazer, eu quase
conseguia entender o ponto de vista dele. Como Steven Wolfe podia ter
o mesmo sangue que Rube e eu, e o mesmo que a Sarah, por sinal? De
qualquer forma, só parei um pouco, antes de voltar a andar, ouvindo
um ruído estridente partir minha cabeça, por dentro. Ela gemia,
como se estivesse ferida.
De
volta ao nosso quarto, perguntei ao Rube em que lugar na parede ele
teria posto a placa. Talvez eu tenha perguntado para esquecer o que
Steve me dissera.
— Aqui?
— Não.
— Aqui?
— Não.
— Aqui?
Durante muito tempo, não obtive resposta, e, naquela noite, a luz
ficou acesa por um tempo para o Rube pensar sobre coisas que eu nunca
saberia. Tudo que fez foi ficar deitado na cama, esfregando
lentamente a barba, como se fosse tudo que lhe restasse.
Depois
de me ajeitar na cama, pensei bastante sobre o dia seguinte,
trabalhando na casa dos Conlon. Rebecca Conlon. Tinha pensado que o
dia nunca chegaria, mas, no dia seguinte, eu voltaria lá. Assim que
me esqueci de Rube e Steve, foi bonito estar vivo, com a consciência
livre e esperando por uma garota que valia cada oração.
Depois
de um longo tempo, Rube fez uma declaração.
Falou:
— Cameron, eu não colocaria aquela placa em lugar nenhum da nossa
parede.
Virei
para encará-lo. — Por que não?
— Você
sabe por que não. — Continuou fitando o teto. Apenas a boca se
moveu. — Porque, quando mamãe a visse, me mataria.
Tem
um carro, rodando pela cidade. É alaranjado, grande, e faz o ruído
pesado, melancólico que os carros gostam de fazer. Ruge pelas ruas,
embora sempre pare nos sinais vermelhos, nas placas de “pare” e
coisas do tipo.
Corta
para outro local...
Rube
e eu estamos andando, fora do portão principal, supostamente para
ver o Steve jogando futebol, embora seja umas duas da madrugada. Está
frio, sabe, aquele tipo de frio nojento. Frio que, de alguma forma,
respira. Penetra a boca da gente, de modo brusco e doloroso.
Uma
pergunta.
Rube:
— Você já pensou em bater no coroa?
— No
nosso coroa?
— Isso.
— Por
quê?
— Não
sei... Você não acha que seria engraçado?
— Não.
Não acho, não.
Nisso,
voltamos em silêncio, andando. Nossos pés se arrastam pelo caminho,
ao mesmo tempo que uns poucos carros isolados circulam. Os táxis
passam e mudam de direção na rua, um caminhão de lixo faz força
perto de nós, com excesso de peso. O carro alaranjado passa por nós,
rugindo.
— Imbecis
— falo para o Rube.
— Com
certeza.
Quando
ele diz isso, o carro arranca, e nós o ouvimos avançar; então, ele
volta por uma rua lateral atrás de nós.
Corta
para outro local...
Rube
e eu estamos de pé na esquina das ruas Marshall e Carlisle. Rube se
abaixa quando os últimos acordes de um carro se aproximam. Ele se
abaixa, segurando entre as pernas aplaca de “dê a preferência”
que roubamos. O poste está sem placa quando olho para ele. E só um
poste sem placa enfiado no cimento.
A
chegada.
O
carro alaranjado sobe a rua Marshall, à toda, chegando ao fim da rua
com avidez.
Quando
passa por nós, está voando.
Sem
placa.
Sem
placa.
Acelera
em nossa direção, e meus olhos se fecham; um tremendo som de metal
preso e enrolado em mais metal, um grito, e uma chuva atrasada de
cacos de vidro.
Rube
está agachado.
Fico
de pé, com os olhos ainda fechados.
Um
silêncio que murmura.
Está
em toda parte.
Meus
olhos abrem, e nós caminhamos.
Rube
baixa aplaca,fica de pé, e nós caminhamos em pânico, tremendo e
devagar, até os carros que parecem ter abocanhado um ao outro em
pleno ataque.
Em
seu interior, as pessoas parecem devoradas.
Estão
mortas, sangrando e mutiladas.
Estão
mortas.
— Estão
mortas! — grito para Rube, mas nada sai da minha boca. Nem som. Nem
voz.
Então,
um cadáver volta à vida.
Os
olhos dele estão focos em mim, a pessoa grita, e o som nos meus
ouvidos é insuportável. Isso me derruba, e pressiono as têmporas
com as mãos.
Markus Kusak, in O Azarão
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