Lembra
quando falei que gostava de observar Sarah e Bruce subindo a rua no
domingo à noite? Bem, durante a semana tudo isso pareceu mudar.
Também
teve outra mudança, porque Steve, que normalmente não volta para
casa do escritório até umas oito da noite, também está em casa. A
razão para isso era que, na véspera, no futebol, ele tinha torcido
o tornozelo. Não era grave, dissera, mas, na segunda-feira de manhã,
o tornozelo estava do tamanho de uma bola de arremesso de peso. O
médico o afastara durante seis semanas, por causa de danos no
ligamento.
— Mas
voltarei em um mês, vocês vão ver.
Ele
ficava sentado no chão com as muletas perto e o pé erguido sobre
umas almofadas. Ficaria em casa durante quinze dias, antes de o
patrão lhe dar metade das férias antecipadamente. Isso deixou o
Steve maluco, não apenas porque ele ia perder parte das férias de
verão, mas porque odiava ficar sentado lá.
O
mau humor dele com certeza não ajudou a melhorar as coisas na sala
entre Sarah e Bruce.
No
sofá, na terça-feira, em vez de mandar ver como costumavam fazer,
os dois pareciam colados no assento de tão tensos que estavam.
— Cheira
esta almofada — disse Rube uma hora, quando eu os observava
enquanto tentava não fazer isso.
— Por
quê? — Está fedendo.
— Não
estou a fim de cheirar.
— Anda.
— O rosto peludo e ameaçador se aproximou, e eu sabia que ele não
ia aceitar um não como resposta.
Jogou
a almofada em cima de mim, esperando que eu a pegasse e enfiasse
minha cara nela, e dissesse que fedia. Rube sempre estava me
obrigando a fazer coisas assim, que pareciam ridículas e sem
sentido.
— Anda!
— Está bem! — Cheira — falou — e me diz se não está com o
cheiro do pijama do Steve.
— Do
pijama do Steve? -É.
— Meu
pijama não fede. — Steve olhou para nós.
— O
meu fede — falei. Era uma piada. Ninguém riu. Então me virei para
Rube.
— Como
você sabe que o pijama do Steve tem esse cheiro? Você anda por aí
cheirando o pijama das pessoas? Você é uma droga de cheirador de
pijama ou coisa do tipo? Indiferente, Rube me deu uma olhada.
— Você
pode sentir o cheiro quando ele passa. Agora cheirai Cheirei e
concordei que a almofada não tinha cheiro de rosas.
— Eu
disse.
— Ótimo.
Joguei
de volta para ele, que a devolveu para o lugar onde estava. Esse era
o Rube. A almofada fedia, ele sabia que fedia e estava preocupado com
isso. Queria conversar sobre o assunto, mas uma coisa era certa: de
jeito nenhum ele ia lavar a almofada. Voltando para o canto do sofá,
ela ficou por lá, fedendo. Eu ainda podia sentir o cheiro dela
agora, mas só porque o Rube tinha chamado a atenção.
Provavelmente, era a minha imaginação. Obrigado, Rube.
O
que deixava as coisas mais complicadas era que, normalmente, se Bruce
e Sarah não estavam se agarrando, pelo menos, falavam alguma coisa,
por mais besteira que a gente falasse. Naquele dia, no entanto, Bruce
não disse nada, e Sarah não disse nada. Eles apenas ficaram
sentados, assistindo ao vídeo que tinham alugado. Sem dizer uma
palavra.
Enquanto
tudo isso acontecia, melhor eu dizer que rezava por Rebecca Conlon e
sua família. Isso fez até com que eu começasse a rezar pela minha
família. Eu rezava para não decepcionar mais minha mãe e para meu
pai não trabalhar tanto assim e se matar antes dos 45 anos. E rezava
para o tornozelo de Steve melhorar. Rezava para Rube tomar um rumo na
vida uma hora dessas. Rezava para Sarah ficar bem, e que ela e Bruce
ficassem bem. Só ficassem bem. Ficassem bem. Disse isso um monte de
vezes. Disse quando comecei a rezar por toda a droga da idiota raça
humana e por qualquer pessoa ferida, faminta, morrendo ou sendo
estuprada naquele exato instante.
Só
faça com que fiquem bem, pedi a Deus. Todas as pessoas com Aids e
todas essas coisas também. Só faça com que fiquem bem agora, e
aqueles caras sem-teto com barba e trapos, e sapatos estropiados, e
dentes estragados. Faça eles ficarem bem... mas, sobretudo, faça
Rebecca Conlon ficar bem.
Isso
estava me deixando maluco.
De
verdade.
Quando
Sarah e Bruce não percebiam que eu os estava observando, ficava
olhando fixamente para eles e me perguntando há quantos dias e
semanas eles estavam trocando amassos.
Imaginava
como isso podia acontecer.
Me
dava medo.
Deus,
por favor, abençoe Rebecca Conlon. Faça com que fique bem...
Mais
tarde, quando voltei para o meu quarto e de Rube, pude ouvir o rumor
de Sarah e Bruce conversando atrás da parede, no quarto dela. A
cidade estava escura, a não ser pelas luzes do edifício que
pareciam feridas, como se os band-aids tivessem sido arrancados para
expor a pele da cidade.
A
única coisa que parecia nunca mudar era a cidade na hora da
transição entre a tarde e a noite. Sempre ficava sombria, distante,
ignorando o que se passava. Eram milhares de lares em toda a cidade,
e alguma coisa estava acontecendo em todos eles. Havia um tipo de
história em cada um, mas independente. Ninguém mais sabia.
Ninguém
mais se importava. Ninguém mais sabia sobre Sarah Wolfe e Bruce
Patterson, nem ligava para o tornozelo de Steven Wolfe. Ninguém
mais, lá fora, rezava por eles ou rezava repetidas vezes por Rebecca
Conlon. Ninguém.
Então,
percebi que havia apenas um eu. Havia apenas um eu que podia se
preocupar com o que estava acontecendo aqui, no interior das paredes
da minha vida. Outras pessoas tinham os próprios mundos com os quais
se preocupar e, no fim, tinham que cuidar delas mesmas, assim como
nós.
Eu
andava em círculos.
Rezando.
Me
preocupando com Sarah.
Rezando
feito um idiota incoerente.
Este
capítulo é curto, mas, se eu o aumentasse, seria um mentiroso.
O
que me lembro sobre aquela noite é a oração, a discussão sobre a
almofada fedorenta, o tornozelo do Steve e a tensão entre Sarah e
Bruce.
E
a cidade que existia lá fora. Me lembro disso também.
O
futuro:
Hora
de relaxar.
Estamos
no limite da cidade, bem perto dela, como se pudéssemos estender a
mão e tocar os edifícios; estender a mão e apagar as luzes que
tentam brilhar em nossos olhos para nos cegar.
Estamos
pescando. Rube e eu.
Nunca
pescamos antes, mas hoje estamos pescando, durante toda a noite.
Nossas
linhas balançam num imenso lago, de um azul que escurece, com
estrelas descendo sobre a água.
A
água está parada, mas cheia de vida. Podemos senti-la se mover
debaixo do barco velho e gasto que alugamos de um vigarista na praia.
De vez em quando, ele balança debaixo de nós. De início, não
sentimos medo porque, mesmo não sendo totalmente estável, sabemos
onde estamos, e as coisas não estão se movendo com tanta rápida.
Pegamos.
Nada.
Absolutamente.
Nada.
— Droga
de casos perdidos. — Rube começa a conversar.
— Eu
falei que não devíamos sair pra pescar. Quem sabe o que tem neste
lago?
— As
almas dos mortos da cidade. — Rube sorri com um tipo de alegria
irônica. — E se eu encontrar uma no fim da linha?
— Pula
do barco, marujo.
— Com
toda certeza.
A
água se mexe mais uma vez e devagar as ondas começam a rolar de um
lugar que não podemos ver. Elevam-se, pulam para dentro do barco e
ficam mais altas.
E
tem um cheiro.
— Um
cheiro?
— É,
não está sentindo? — pergunto a Rube. Digo isso como se fosse uma
acusação.
— Estou,
sim, agora que você falou.
A
água está muito alta agora, erguendo o barco e nós, e nos jogando
para baixo de novo. Uma onda atinge meu rosto, e fico com a boca
cheia de água. O gosto é nojento, arde, e percebo pela expressão
no rosto de Rube que ele também engoliu um pouco.
— É
petróleo — fala.
— Ai,
meu Deus.
As
ondas diminuem um pouco agora, e me viro para um barco que está mais
próximo da cidade, bem perto da praia. Tem um cara dentro dele, e
uma garota. O cara desce na praia com alguma coisa na mão.
A
coisa brilha.
— Não!
— Levanto e agito os braços. Ele acende. Um cigarro.
Acende,
quando vejo outra pessoa dando voltas na baía intensamente. Quem é?
Me pergunto, e, em outro barco, um homem e uma mulher de meia-idade
também estão remando.
O
cara joga o cigarro dentro do lago.
Vermelho
e amarelo rolam para dentro dos meus olhos.
Esquecimento.
Markus Zusak, in O azarão
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