domingo, 12 de novembro de 2023

O azarão | 6



Lembra quando falei que gostava de observar Sarah e Bruce subindo a rua no domingo à noite? Bem, durante a semana tudo isso pareceu mudar.
Também teve outra mudança, porque Steve, que normalmente não volta para casa do escritório até umas oito da noite, também está em casa. A razão para isso era que, na véspera, no futebol, ele tinha torcido o tornozelo. Não era grave, dissera, mas, na segunda-feira de manhã, o tornozelo estava do tamanho de uma bola de arremesso de peso. O médico o afastara durante seis semanas, por causa de danos no ligamento.
Mas voltarei em um mês, vocês vão ver.
Ele ficava sentado no chão com as muletas perto e o pé erguido sobre umas almofadas. Ficaria em casa durante quinze dias, antes de o patrão lhe dar metade das férias antecipadamente. Isso deixou o Steve maluco, não apenas porque ele ia perder parte das férias de verão, mas porque odiava ficar sentado lá.
O mau humor dele com certeza não ajudou a melhorar as coisas na sala entre Sarah e Bruce.
No sofá, na terça-feira, em vez de mandar ver como costumavam fazer, os dois pareciam colados no assento de tão tensos que estavam.
Cheira esta almofada — disse Rube uma hora, quando eu os observava enquanto tentava não fazer isso.
Por quê? — Está fedendo.
Não estou a fim de cheirar.
Anda. — O rosto peludo e ameaçador se aproximou, e eu sabia que ele não ia aceitar um não como resposta.
Jogou a almofada em cima de mim, esperando que eu a pegasse e enfiasse minha cara nela, e dissesse que fedia. Rube sempre estava me obrigando a fazer coisas assim, que pareciam ridículas e sem sentido.
Anda! — Está bem! — Cheira — falou — e me diz se não está com o cheiro do pijama do Steve.
Do pijama do Steve? -É.
Meu pijama não fede. — Steve olhou para nós.
O meu fede — falei. Era uma piada. Ninguém riu. Então me virei para Rube.
Como você sabe que o pijama do Steve tem esse cheiro? Você anda por aí cheirando o pijama das pessoas? Você é uma droga de cheirador de pijama ou coisa do tipo? Indiferente, Rube me deu uma olhada.
Você pode sentir o cheiro quando ele passa. Agora cheirai Cheirei e concordei que a almofada não tinha cheiro de rosas.
Eu disse.
Ótimo.
Joguei de volta para ele, que a devolveu para o lugar onde estava. Esse era o Rube. A almofada fedia, ele sabia que fedia e estava preocupado com isso. Queria conversar sobre o assunto, mas uma coisa era certa: de jeito nenhum ele ia lavar a almofada. Voltando para o canto do sofá, ela ficou por lá, fedendo. Eu ainda podia sentir o cheiro dela agora, mas só porque o Rube tinha chamado a atenção. Provavelmente, era a minha imaginação. Obrigado, Rube.
O que deixava as coisas mais complicadas era que, normalmente, se Bruce e Sarah não estavam se agarrando, pelo menos, falavam alguma coisa, por mais besteira que a gente falasse. Naquele dia, no entanto, Bruce não disse nada, e Sarah não disse nada. Eles apenas ficaram sentados, assistindo ao vídeo que tinham alugado. Sem dizer uma palavra.
Enquanto tudo isso acontecia, melhor eu dizer que rezava por Rebecca Conlon e sua família. Isso fez até com que eu começasse a rezar pela minha família. Eu rezava para não decepcionar mais minha mãe e para meu pai não trabalhar tanto assim e se matar antes dos 45 anos. E rezava para o tornozelo de Steve melhorar. Rezava para Rube tomar um rumo na vida uma hora dessas. Rezava para Sarah ficar bem, e que ela e Bruce ficassem bem. Só ficassem bem. Ficassem bem. Disse isso um monte de vezes. Disse quando comecei a rezar por toda a droga da idiota raça humana e por qualquer pessoa ferida, faminta, morrendo ou sendo estuprada naquele exato instante.
Só faça com que fiquem bem, pedi a Deus. Todas as pessoas com Aids e todas essas coisas também. Só faça com que fiquem bem agora, e aqueles caras sem-teto com barba e trapos, e sapatos estropiados, e dentes estragados. Faça eles ficarem bem... mas, sobretudo, faça Rebecca Conlon ficar bem.
Isso estava me deixando maluco.
De verdade.
Quando Sarah e Bruce não percebiam que eu os estava observando, ficava olhando fixamente para eles e me perguntando há quantos dias e semanas eles estavam trocando amassos.
Imaginava como isso podia acontecer.
Me dava medo.
Deus, por favor, abençoe Rebecca Conlon. Faça com que fique bem...
Mais tarde, quando voltei para o meu quarto e de Rube, pude ouvir o rumor de Sarah e Bruce conversando atrás da parede, no quarto dela. A cidade estava escura, a não ser pelas luzes do edifício que pareciam feridas, como se os band-aids tivessem sido arrancados para expor a pele da cidade.
A única coisa que parecia nunca mudar era a cidade na hora da transição entre a tarde e a noite. Sempre ficava sombria, distante, ignorando o que se passava. Eram milhares de lares em toda a cidade, e alguma coisa estava acontecendo em todos eles. Havia um tipo de história em cada um, mas independente. Ninguém mais sabia.
Ninguém mais se importava. Ninguém mais sabia sobre Sarah Wolfe e Bruce Patterson, nem ligava para o tornozelo de Steven Wolfe. Ninguém mais, lá fora, rezava por eles ou rezava repetidas vezes por Rebecca Conlon. Ninguém.
Então, percebi que havia apenas um eu. Havia apenas um eu que podia se preocupar com o que estava acontecendo aqui, no interior das paredes da minha vida. Outras pessoas tinham os próprios mundos com os quais se preocupar e, no fim, tinham que cuidar delas mesmas, assim como nós.
Eu andava em círculos.
Rezando.
Me preocupando com Sarah.
Rezando feito um idiota incoerente.
Este capítulo é curto, mas, se eu o aumentasse, seria um mentiroso.
O que me lembro sobre aquela noite é a oração, a discussão sobre a almofada fedorenta, o tornozelo do Steve e a tensão entre Sarah e Bruce.
E a cidade que existia lá fora. Me lembro disso também.

O futuro:
Hora de relaxar.
Estamos no limite da cidade, bem perto dela, como se pudéssemos estender a mão e tocar os edifícios; estender a mão e apagar as luzes que tentam brilhar em nossos olhos para nos cegar.
Estamos pescando. Rube e eu.
Nunca pescamos antes, mas hoje estamos pescando, durante toda a noite.
Nossas linhas balançam num imenso lago, de um azul que escurece, com estrelas descendo sobre a água.
A água está parada, mas cheia de vida. Podemos senti-la se mover debaixo do barco velho e gasto que alugamos de um vigarista na praia. De vez em quando, ele balança debaixo de nós. De início, não sentimos medo porque, mesmo não sendo totalmente estável, sabemos onde estamos, e as coisas não estão se movendo com tanta rápida.
Pegamos.
Nada.
Absolutamente. Nada.
Droga de casos perdidos. — Rube começa a conversar.
Eu falei que não devíamos sair pra pescar. Quem sabe o que tem neste lago?
As almas dos mortos da cidade. — Rube sorri com um tipo de alegria irônica. — E se eu encontrar uma no fim da linha?
Pula do barco, marujo.
Com toda certeza.
A água se mexe mais uma vez e devagar as ondas começam a rolar de um lugar que não podemos ver. Elevam-se, pulam para dentro do barco e ficam mais altas.
E tem um cheiro.
Um cheiro?
É, não está sentindo? — pergunto a Rube. Digo isso como se fosse uma acusação.
Estou, sim, agora que você falou.
A água está muito alta agora, erguendo o barco e nós, e nos jogando para baixo de novo. Uma onda atinge meu rosto, e fico com a boca cheia de água. O gosto é nojento, arde, e percebo pela expressão no rosto de Rube que ele também engoliu um pouco.
É petróleo — fala.
Ai, meu Deus.
As ondas diminuem um pouco agora, e me viro para um barco que está mais próximo da cidade, bem perto da praia. Tem um cara dentro dele, e uma garota. O cara desce na praia com alguma coisa na mão.
A coisa brilha.
Não! — Levanto e agito os braços. Ele acende. Um cigarro.
Acende, quando vejo outra pessoa dando voltas na baía intensamente. Quem é? Me pergunto, e, em outro barco, um homem e uma mulher de meia-idade também estão remando.
O cara joga o cigarro dentro do lago.
Vermelho e amarelo rolam para dentro dos meus olhos.
Esquecimento.

Markus Zusak, in O azarão

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