O
dia seguinte era domingo e chovia. De tarde, Kikuji foi ao chachitsu
a fim de pôr em ordem os objetos que tinham sido usados na véspera
à noite. Esperava secretamente retemperar-se na atmosfera da moça,
como se ainda pudesse ali respirar o perfume da Srta. Inamura.
Tendo
pedido um guarda-chuva à empregada, aprestava-se a seguir pelas
pedras dispostas como ilhazinhas até a entrada do pavilhão de chá,
quando notou que a água caía forte diante da romãzeira. Erguendo
os olhos, constatou que havia um buraco grande na calha.
— É
preciso mandar consertar isso — disse à doméstica.
— É
também o que eu acho, senhor.
Não
raro, quando chovia à noite, ele já tinha sido perturbado na cama
por aquele jorro, que o impedia de dormir.
— Mas
quando a gente começa a fazer consertos, você sabe como são as
coisas, não se termina nunca. O melhor seria vender tudo antes que
os defeitos se tornem grandes demais.
— Todos
os que possuem casas grandes dizem o mesmo hoje — observou a fiel
auxiliar. — No entanto a senhorita que esteve aqui ontem de noite
ficou maravilhada com a casa tão grande. Ela tem o propósito de vir
morar aqui, não é?
Sem
dúvida era essa a sua forma de significar que ele não devia vender.
— A
Sra. Kurimoto lhe falou então de alguma coisa?
— Sim,
senhor. Logo que a senhorita chegou, ela fez com que visitasse a casa
toda.
— Só
faltava isso!
Na
noite anterior, a moça não lhe deixara adivinhar nada com as
palavras. Como era possível? Imaginava que ela só tivesse entrado
para o salão, daí passando para o pequeno pavilhão do jardim pelo
caminho de pedras, tal como ele ia fazer hoje.
Já
na noite precedente, como não conseguia dormir, sentia-se empurrado
para o chachitsu a fim de respirar de novo o aroma dela. Mas,
raciocinando, repetia a si mesmo, procurando dormir, que ela era dum
mundo diferente, para sempre inacessível. Alguém de outra esfera...
sempre...
Que
Chikako a tivesse feito visitar a casa toda, era a última coisa que
teria podido imaginar!
Kikuji
pediu à doméstica que lhe trouxesse um braseiro para o chachitsu
e seguiu pelo caminho das pedras. Na véspera Chikako, porque devia
voltar para Kita-Kamakura, partira ao mesmo tempo que a Srta.
Inamura, deixando à empregada a tarefa de arrumar o pavilhão de
chá. Assim, não restava mais a Kikuji que pôr no lugar a preciosa
baixela e outros objetos, provisoriamente deixados a um canto da
pequena peça. Infelizmente, conhecia mal o lugar em que cada coisa
devia ser colocada. Resmungando que, sem dúvida, a Kurimoto sabia
isso melhor que ele, virou-se para apreciar o kakemono
pendurado na véspera: o retrato de um poeta, uma pequena perfeição
de Sotatsu, delicada pintura a tinta, finamente realçada com cores
de tons esfumados.
No
curso da noitada, a Srta. Inamura lhe perguntara o nome do personagem
que o retrato representava, mas não pôde senão responder:
— Nada
sei, realmente, devo confessar. Nas obras desse estilo, os retratados
sofrem um tratamento sempre tão igual que, sem o poema, não se
adivinha quem são.
Chikako
interveio:
— Deve
ser o poeta Muneyuki, e o poema diz mais ou menos: "O verde do
pinheiro, que dura todo o ano, parece no entanto mais cintilante
quando se acerca a primavera." Devo admitir que essa estação
agora já passou um pouco. Mas o seu pai, Sr. Mitani, estimava muito
esta obra, com a qual não raro adornava o chachitsu na
primavera.
A
tais explicações, Kikuji observou que não se podia de fato saber
pelo retrato se era Muneyuki ou Tsurayuki. E confirmava de novo agora
essa imprecisão, ao contemplar aquele rosto cuja serenidade não era
perturbada por nenhum pormenor pessoal que permitisse identificá-lo.
Porém o pequeno quadro, de linhas extraordinariamente puras, tinha
uma força de sugestão impressionante. Bastava contemplá-lo para
alguém se sentir penetrado de viço e pureza.
Como
não pensar de novo na Srta. Inamura? E só o arrancou desses
pensamentos a chegada da doméstica com o braseiro e a água quente.
— Desculpe
se demorei, mas preferi aquecer antes a água. Fica mais cômodo.
Devia
ter pensado que era para o chá que pedira o fogo. Na realidade, só
pensara no úmido do pavilhão e não tinha qualquer intenção de
utilizar a chaleira.
Para
não decepcioná-la, colocou o fogo no tripé, mas não da maneira
artística, e pôs em cima a chaleira de ferro.
Desde
tenra infância, Kikuji conhecia as sessões de chá, de que seu pai
era fervente adepto, mas nunca tivera vontade de se entregar àquela
prática. Seu pai tampouco jamais insistiu para que aprendesse essa
arte.
Neste
mesmo instante, logo que a água começou a cantar na chaleira,
Kikuji, entregue às suas ideias, contentou-se em deslocar um pouco a
tampa sem cerimônia, prosseguindo em sua cisma.
A
peça cheirava um tanto a fechado, as esteiras tinham pegado umidade.
A tonalidade sóbria das paredes, tão perfeita para valorizar a
silhueta de sua jovem convidada de ontem à noite, parecia-lhe hoje
triste.
Yukiko,
nesta moldura, tinha-lhe causado um pouco o efeito duma moça
habituada a viver à maneira ocidental, que não veste senão para
certas ocasiões as roupas japonesas e só retoma por exceção o
jogo das formas tradicionais. Como para se desculpar, ele lhe tinha
dito:
— Esse
convite imprevisto da Kurimoto deve tê-la atrapalhado, imagino. É
também dela que vem a ideia de recebê-la neste pavilhão de chá.
— Disse-me
que era o aniversário da sessão de chá de seu pai.
— A
mim também lembrou isso. Tinha esquecido completamente e não me
teria de modo algum preocupado.
— A
Srta. Kurimoto é uma mestra de chá a quem não falta ironia,
receio, convidando a iniciante que eu sou para um semelhante
aniversário! Sou ainda menos digna de algo assim porque não tenho
seguido o ensino com muita aplicação nesses últimos tempos.
— Foi
também esta manhã que Kurimoto subitamente se lembrou do
aniversário e resolveu ir pôr em uso o pavilhão. Cheira a fechado,
não acha?
E
com a voz hesitante, de repente, acrescentou:
— Foi
em todo caso uma sorte para mim tê-la conhecido. Lastimo apenas que
tenha sido por intercessão dessa mulher... Lastimo muito...
especialmente por você.
A
moça o olhou, perplexa:
— Mas
por quê? Se a Srta. Kurimoto não estivesse aí, ninguém nos teria
apresentado um ao outro.
Era
tão simples quanto real. Sem Kurimoto não teriam nunca se
encontrado. E foi para Kikuji como uma chicotada deslumbrante. Não
acabava ela implicitamente de revelar que o projeto de matrimônio
tinha o seu consentimento? Era a sua convicção. O ar perplexo e o
olhar interrogativo da moça se esclareceram para ele.
Perguntava-se
ainda o que ela devia julgar de ouvir chamar simplesmente de
Kurimoto, sem uma expressão de polidez, a sua mestra de chá.
Saberia que Kurimoto tinha sido a amante de seu pai, embora apenas o
tempo duma aventura breve?
— Para
mim — quis explicar — existem amargas lembranças relacionadas
com a pessoa de Kurimoto.
Sua
voz quebrava.
— Me
seria especialmente desagradável que chegasse a ser um instrumento
do meu destino. Não quero acreditar que seja graças a ela que
conheci você.
Chikako
chegou então com o jantar para três.
— Me
admitem como comensal? — disse, deixando-se cair na esteira como
para retomar o fôlego.
Depois,
virou-se para a Srta. Inamura, inclinando levemente o busto:
— Sinto
muito, realmente, que seja a única conviva. Vai decerto se
aborrecer.
Inclinando-se
a seguir um pouco para Kikuji, finalizou:
— Mas
estou certa, Sr. Mitani, de que seu pai está contente e nos assiste.
A
jovem se satisfez em baixar os olhos, afirmando outra vez quanto se
sentia pouco qualificada para entrar no venerado chachitsu do
falecido pai do Sr. Mitani.
Chikako,
sem se deter nessas declarações, pôs-se a narrar o papel do
pavilhão antes da morte do Sr. Mitani, aflorando as recordações
que lhe ocorriam.
Parecia
não guardar a mínima dúvida quanto à conclusão do casamento
entre Kikuji e a Srta. Inamura. À porta, na hora de sair, declarou-o
mais claro ainda ao dizer, diante desta, ao rapaz:
— Na
próxima vez, seremos nós que vamos visitar a Srta. Inamura. Mas
dessa vez ao menos, avisando com antecedência.
Aprovando
com a cabeça, a moça esteve à beira de dizer alguma coisa, mas em
seguida se conteve, como a despeito de si mesma, com uma rara
expressão de pudor atingido.
Kikuji
estava tão longe de esperar uma tal transparência dos seus
sentimentos, que uma lufada de calidez o invadiu, inclusive no corpo:
teve a impressão de que passava por ele o calor dela. Apesar de
tudo, o sombrio e sujo quadro em que se debatia nem por isso se
anulou.
Agora
ainda, sozinho no silêncio da peça de chá, via diante de si esse
quadro de sujeira e trevas. Não só por causa da mulher que lhe
apresentara a Srta. Inamura, não. A mácula recaía também nele
mesmo.
Tinha
uma imagem no espírito: via o pai, com os dentes escuros,
mordiscando as manchas imundas de Chikako; e sentia, em imagem, que
não era diferente do pai.
A
moça nem se preocupava com o fato de Chikako ser a origem do
encontro de ambos; mas ele não podia suportar que ela tivesse
representado a alcoviteira entre os dois. Havia nisso algo que o
embaraçava ao ponto de paralisá-lo; mas se esse problema explicava
em parte sua indecisão e suas covardias, não havia apenas isso, mas
outras coisas bem diversas que lhe pesavam.
Se
tinha horror de Chikako, sabia quão pouco sincero era ao atiçar seu
ódio com o pretexto de ser ela que lhe impunha o casamento com a
Srta. Inamura. Nesse papel, em suma, ela se achava muito bem no seu
lugar e favorecia uma comodidade indiscutível.
Nessa
altura de sua reflexão, Kikuji se sentiu como esbofeteado ao pensar
que a Srta. Inamura tinha talvez ido até o fundo dele, e ficou
aterrado ao medir de repente a amplidão da sua covardia, de que não
tivera consciência até o momento.
No
fim da refeição, aproveitando o instante em que Chikako se afastou
para preparar o chá, desejou retomar o diálogo interrompido por sua
chegada:
— Se
cumpre ver em Kurimoto um instrumento do destino — disse, — creio
então que temos, eu e você, concepções bem diferentes do destino.
Eis
tudo o que soubera dizer e se dava perfeitamente conta de que isso
ecoava como uma má desculpa, uma desastrada e vã justificação.
E
agora compreendia em que se baseava o desprazer que tinha, depois da
morte de seu pai, ao saber que sua mãe estava só neste pavilhão de
chá. Sim, acabava de compreender: seu pai antes, depois sua mãe,
ele agora, cada um, ao vir se isolar naquele pavilhão, se achava só
com os seus pensamentos. . .
Fora,
a chuva caía pesada sobre as folhagens vergadas das árvores. E eis
que naquele atrito contínuo, distinguiu o barulho de gotas
tamborilando num guarda-chuva que se aproximava.
Do
exterior, a voz da empregada anunciou:
— A
Sra. Ota está aí.
— A
Sra. Ota?
— Sim,
senhor. E parece doente, está com tão mau aspecto.
Kikuji,
que o aviso fizera saltar de pé, ficou ali plantado, sem dizer nada.
— Onde
quer recebê-la, senhor?
— Aqui
mesmo.
— Muito
bem.
Para
vir ao chachitsu, a Sra. Ota atravessou o jardim sob a chuva forte.
Não trazia sombrinha e o rosto estava molhado quando surgiu. Kikuji
se disse que devia decerto ter deixado a sombrinha na entrada. Mas
não era a chuva, eram as lágrimas que lhe umedeciam o rosto.
Compreendendo, Kikuji foi ao seu encontro quase gritando:
— O
que houve?
Com
a face erguida para ele, a Sra. Ota se sentou na galeria exterior,
com as duas mãos apoiadas no chão. Dir-se-ia que caiu diante dele,
em cima dele. Lentamente, suas lágrimas brotavam e Kikuji, vendo as
gotas no soalho, perto da entrada, acreditou de novo que eram da
chuva.
Com
os olhos nos de Kikuji, apoiando nele com força o olhar, era como se
apenas isso a retivesse de desfalecer. Consciente do perigo, ele não
ousava desviar seu olhar, certo de que ela desmoronaria. Perscrutava,
a despeito de si mesmo, as profundas olheiras que lhe comiam o rosto,
a pele amarrotada em volta deste olhar batido, em febre, morbidamente
fixo, e no entanto transbordando uma ternura suplicante através da
torrente do pranto e cheio duma inex-primível doçura.
— Peço
que me perdoe — disse ela. — Eu não podia mais. Tinha de vê-lo.
Sua
voz, todo o seu ser não eram senão amor. Sem o extraordinário e
terno calor que dela emanava, Kikuji nunca teria suportado a vista
daquele rosto emaciado. Sentia o coração partido pelo atroz
sofrimento cujo espetáculo ela lhe ofertava. Mas ainda que soubesse
que sua causa era ele próprio, extraía uma espécie de consolo no
banho de ternura infinita que ela lhe dava.
— Venha
logo, entre, antes de se molhar completamente — disse-lhe,
agarrando-a com os dois braços para soerguê-la e guiar, com uma
ponta de brutalidade na pressa.
— Deixe!...
Largue-me! — soprou ela, procurando caminhar sozinha, pois ele
quase a levava nos braços. — Sou bem leve, não é?
— Sim.
— É
que emagreci muito nesses últimos tempos .. . Não sou mais o que
era.
Kikuji
se censurava já da violência do seu gesto.
— A
sua filha não terá ficado preocupada?
— Fumiko?
Pelo
modo de pronunciar o nome, ele jurou que a moça tivesse vindo junto.
— Ela
veio com você? — indagou.
— Oh,
não. Vim às escondidas — declarou num soluço. — Minha filha
fica me vigiando todo o tempo. Mesmo de noite, acorda ao menor ruído
que eu faça. Sofre tanto por minha causa que chego a desconhecê-la.
Diz-me coisas terríveis. “Por que sou filha única? Por que não
tiveste outros filhos? Com o Sr. Mitani tu podias ter tido, não?...”
Coisas assim!
A
Sra. Ota, ao falar, se recompunha um pouco. Kikuji adivinhava,
através de suas palavras, que insuportável mágoa sua filha sentira
ao ver a mãe sofrer por causa dele. Teve uma pontada no coração ao
saber que a moça chegara ao extremo de desejar que a mãe tivesse
tido um filho do pai dele.
Sempre
com o olhar fito em Kikuji, a Sra. Ota prosseguiu:
— É
possível que Fumiko já esteja no meu rastro. Aproveitei sua
ausência para escapar de casa. Devia ter pensado que eu não sairia
por causa da chuva.
— Por
causa da chuva? Só por isso?
— Sim,
me julga demasiado enfraquecida para enfrentar o mau tempo.
Ele
inclinou a cabeça sem dizer nada. A Sra. Ota procurou saber:
— Outro
dia ela veio cá, não?
— Sim.
Para me pedir que perdoasse você, segundo disse. . ., e fiquei sem
saber o que responder a um pedido desses.
— Ah,
eu entendo o que ela sente; e no entanto eis-me de novo aqui, apesar
de tudo! Por que faço isso?.. . É horrível. Horrível.
— Mas
que coisa. A não ser gratidão, que outro sentimento posso ter por
você?
— Oh,
obrigada! É mais do que eu poderia esperar ... Não mereço perdão
daquela infelicidade depois da...
— E
por quê? Não está ligada a ninguém, a nada... a menos que seja ao
fantasma de meu pai!
O
rosto da Sra. Ota permaneceu impassível, como se ela não tivesse
ouvido. Ele teve a impressão de haver falado no vácuo.
— Esqueçamos
tudo, não pensemos mais sobre isso — disse. — Nunca eu devia
ter-me deixado transtornar a esse ponto pelo telefonema da Srta.
Kurimoto! Estou envergonhada.
— Kurimoto
lhe telefonou?
— Hoje
de manhã. Para me dizer que o seu casamento com a Srta. Inamura
estava praticamente resolvido. Ah, por que tinha de ser ela quem
desse a notícia! Você poderia ter-me avisado...
Uma
onda de lágrimas subiu-lhe aos olhos e ele esperava vê-la soluçar
de novo quando, de repente, sorriu. Não o sorriso forçado de quem
deseja rir entre lágrimas, não. Um sorriso de criança, cândido e
doce.
— Ainda
nem mesmo encarei a possibilidade de me meter nessa história —
insurgiu-se Kikuji, — Será que permitiu a Kurimoto farejar alguma
coisa a nosso respeito? Avistou-se com ela nesse período?
— Não,
não a encontrei, mas sei como ela é: é bem capaz de ter descoberto
algo. Hoje de manhã, no telefone, podia ter desconfiado.. . Fui tão
sem jeito, ai!, sou tão incapaz.. . Tive uma espécie de síncope e
acho que dei um grito. E ao telefone se adivinha fácil os
sentimentos do outro, não é? Em todo caso, ela me disse: “Querida
senhora, por favor, não crie obstáculos.”
Seus
ombros se puseram a tremer como se a sacudisse um calafrio de febre.
Sua boca se crispou e o semblante descomposto refletia uma angústia
sem limites. Parecia à beira duma síncope.
Kikuji
se ergueu e estendeu a mão para sustentá-la pelos ombros, mas a
Sra. Ota pegou-a:
— Tenho
medo, ah, tenho medo! — suspirou, com o rosto extremamente pálido
a trair a sua idade.
Seu
olhar errou por todos os lados. E súbito, reencontrando ânimo,
examinou a peça e inquiriu:
— Foi
neste pavilhão?
Kikuji,
sem entender o que queria significar, redargüiu com um "sim"
vago e ocasional.
— Um
maravilhoso chachitsu! — disse ela. Estaria pensando que o marido
morto tinha sido não raro recebido nesta sala de chá? Ou pensava no
pai de Kikuji?
— É
a primeira vez que aqui vem? — quis saber Kikuji.
— Sim.
— Que
é que está olhando com este ar engraçado?
— Nada...
nada...
— É
uma pintura de Sotatsu, o retrato de um poeta.
A
Sra. Ota aquiesceu com um sinal de cabeça e baixou os olhos.
— Já
tinha vindo aqui em casa?
— Não,
nem uma vez.
— De
fato? — ele se admirou.
— Ah,
sim, perdão. . . Uma vez... no enterro de seu pai.
Sua
voz estava tão fraca que Kikuji se fêz diligente:
— A
água está fervendo, não acha que isso talvez a animasse? Eu também
gostaria de tomar uma taça de chá.
— Com
prazer — disse ela. — Dá licença? Ao erguer-se, vacilou um
pouco mas se aprumou, dominando-se.
Kikuji
foi abrir os estojos colocados num canto e tirou as taças. Por um
momento pensou em que esses objetos tinham sido usados na véspera
para o chá da Srta. Inamura. Mas afastou a ideia e voltou com as
preciosas peças.
Ante
o fogo, querendo tirar a tampa da chaleira, a Sra. Ota não pôde
impedir a mão de tremer e houve um leve estalido do ferro atritado.
Ao se inclinar para a frente, com o bule d'água na mão, suas
lágrimas caíram com pequeno ruído no exterior do caldeirão.
— Também
isso foi o seu pai que comprou de mim — disse.
— Sim?
Não sabia.
Não
sentira qualquer embaraço ouvindo dizer que o objeto vinha das
coleções de seu marido, tal a forma natural e simples com que ela o
informara.
Preparou
o chá e o convidou a que ele mesmo viesse pegar sua taça:
— Não
posso levá-la — disse.
Ele
se colocou ao lado do caldeirão para tomar o chá. Num acesso de
fraqueza, ela caiu sobre seus joelhos. Kikuji lhe passou o braço nos
ombros e sentiu sua respiração se precipitar.
E
foi como uma criança que agarrasse nos braços, tão leve, tão
abandonada.
Yasunari Kawabata, in Nuvens de Pássaros Brancos
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