sexta-feira, 10 de novembro de 2023

LIVRO SEGUNDO | O SOL MORRENDO ENTRE AS ÁRVORES


I

Kikuji se dispunha a deixar o escritório quando recebeu um telefonema de Chikako.
Vai direto para casa esta noite?
Era o que pretendia fazer, mas hesitou, prevendo algum contratempo.
Quer dizer...
Mas sim, sim, esta noite, por favor, vá logo. Pelo seu pai, entende? Hoje é o dia em que costumava convidar os amigos para uma sessão de chá. A lembrança disso me voltou de golpe e foi preciso que eu fizesse alguma coisa.
Kikuji nada respondeu.
Fiz uma limpeza no pequeno pavilhão de chá... Alô, está ouvindo?... Ah, sim. Pois lavei o chachitsu e em seguida me deu vontade de cozinhar um pouco.
Mas onde você está?
Na sua casa, claro, estou na sua casa. Perdoe, devia primeiro tê-lo avisado.
Surpreso, Kikuji ficou calado.
Recordando este aniversário, não pude ficar aí sem fazer nada, compreende? E disse a mim mesma que a limpeza do chachitsu me acalmaria um pouco. Ah, sei bem: devia ter-lhe pedido permissão, Mas se tivesse lhe telefonado, estou certa de que teria recusado.
O pequeno pavilhão e sua sala de chá estavam em desuso desde a morte do pai de Kikuji. Era verdade. No máximo sua mãe ia ali uma vez ou outra, antes de morrer, em busca de solidão e silêncio. Às vezes ficava tempos, mas sem nunca acender o fogo; mandava que lhe trouxessem a água quente num pequeno cântaro de ferro. Aliás ele não gostava muito de deixar a sua mãe se isolar ali, a saciar mal sabia ele que pensamentos sombrios. Preocupado, várias vezes teve vontade de ir para junto dela, mas, na hora, nunca se atreveu.
Antes da morte do pai, era Chikako que cuidava do pavilhão. Raramente sua mãe nele punha os pés.
E desde que sua mãe falecera, o chachitsu tinha ficado fechado. Só havia a velha doméstica para abri-lo uma ou duas vezes por ano, a fim de arejá-lo. Uma mulher que já os servia quando seu pai era vivo.
Há quanto tempo que não arrumam aquilo? — continuou Chikako num tom que ele considerou cada vez mais desembaraçado. — As esteiras, limpei e limpei e não consegui tirar o cheiro de mofado. De não se acreditar! Quando tudo ficou bem limpo, me deu desejo de cozinhar e lá fui eu. Assim de improviso, não havia naturalmente tudo o que precisava à mão, mas fiz pelo melhor. E agora o estou esperando, em seguida.
Realmente, não sei o que dizer.
Mas se ficarmos só nós dois, vai ser triste. Por que não traz alguns amigos do escritório?
Nem vale a pena falar, ninguém aqui conhece a prática do chá.
Não tem importância, ao contrário! É melhor que não sejam entendidos, pois não se poderá ter rigor nos preparativos. Que venham, simplesmente.
Não, lhe digo, nem vale a pena falar — cortou Kikuji num tom definitivo.
Oh! de fato? É uma pena! Mas, então, o que faremos?... Quem sabe alguns amigos de chá de seu pai? Não! não poderiam ser convidados assim. Olhe! e se convidássemos a Srta. Inamura para vir?
Está brincando, não vá fazer uma coisa dessas.
Por que não? Não compromete você em nada, que lhe importa? A família dela, sabe, se mostra favorável. Enfim, para você é apenas uma ocasião de rever a Srta. Inamura, com quem poderá falar de coração aberto. Se eu a chamar e ela aceitar vir, vai ser uma espécie de confissão de sua parte e você saberá que está de acordo.
Não quero nada desses processos! — disse Kikuji, contrafeito. — Deixe disso! Se insistir, não vou para casa.
Bem, bem! De qualquer modo não se pode discutir sobre isso no telefone e adiaremos a coisa para mais tarde. Venha depressa.
— “Isso” não existe, no que a mim diz respeito. Não quero mais ouvir falar no assunto.
Está certo. Não ouvirá falar mais. Tomo tudo por minha conta e farei como achar melhor, pronto.
Que mulher venenosa! Sua indiscrição, seu desembaraço e este jeito que tem de dispor de você! Indignado, Kikuji sofria com repugnância a autoridade que ela fazia pesar sobre ele. Reviu mais uma vez as terríveis manchas que marcavam a metade esquerda de seu peito. Escutou, como se repercutisse em sua cabeça, o ruído de sua vassoura barulhenta limpando o pavilhão de chá. Sentiu torcer-se em seu cérebro o pano molhado de que ela se servira para lavar os soalhos exteriores.
Além dessas violentas imagens de seu dissabor, Kikuji também se indignou, como duma inconveniência ao mesmo tempo ridícula e odiosa, com o fato de Chikako se permitir ao bel-prazer entrar em sua casa com ele ausente, e aí até mesmo cozinhar!
Se ainda se tivesse contentado em arrumar o chachitsu, pondo nele umas flores em memória do defunto, seria perdoável. . .
E eis que súbito, no remoer detestável dessas sensações aborrecidas, a imagem da Srta. Inamura faiscou nele como uma centelha.
A morte de seu pai forçosamente o afastou de Chikako; estaria ela com o desígnio de se reacercar e prendê-lo em suas redes por meio daquela moça?
Seu telefonema insolente e bufo, se bem que no estilo daquela original, não apenas surpreendera Kikuji, o sobressaltara. Achara no tom de Chikako, no seu modo de cinicamente utilizá-lo, de provocar com consciência o seu riso amargo, de passar adiante de qualquer reação sua, uma espécie de ameaça. Mas tudo isso não se apoiava, olhando a fundo, sobre suas próprias fraquezas? Essa dúvida o retivera, Kikuji sabia perfeitamente, de deixar explodir a sua cólera contra aquele telefonema incongruente. Se ela usava sem complacências de seu ascendente sobre ele, não seria por ter boas razões de se saber a mais forte?
Foi com essas idéias que Kikuji, ao sair do escritório, rumou para Ginza, refugiando-se na atmosfera confinada e sufocante dum café minúsculo. Quisesse ou não, não podia agora deixar de voltar para casa como lhe pedira Chikako. Mas sentia o coração pesado.
Já estaria Chikako a par de seu encontro com a Sra. Ota na saída da sessão de chá? E também de como terminara na pequena hospedaria de Kita-Kamakura? As possibilidades eram poucas... a menos que as duas mulheres não tivessem se avistado depois!
O tom autoritário dela no telefone devia imputá-lo apenas ao defeito natural seu de delicadeza? Ou ainda, não deveria ver naquilo, da parte dela, senão a pressa de ver realizado o seu desígnio, um modo bem seu de chegar logo ao que pretendia no concernente à Srta. Inamura?
Incapaz de suportar-se por mais tempo no local demasiado estreito, Kikuji saiu e foi para a estação, tomando o trem que o levaria para casa.
Pela janela do vagão repleto, entre Yurakucho e a estação central de Tóquio, uma avenida marginada por grandes árvores atraiu seu olhar.
Muito ampla, orientada de este a oeste, fazia cintilar o sol poente. Essa longa fita brilhava sob a luz como aço polido, e as grandes árvores que a margeavam, vistas assim à contra-luz, pareciam dum verde extraordinariamente sombrio. No chão, a densidade da sombra que as sublinhava era como uma fonte de frescura. As árvores eram belas, de folhagem espessa, ostentando altivamente os ramos poderosos. Aqui e ali, recuadas, se erguiam as fachadas de sólidas casas de arquitetura ocidental.
Estranhamente, em todo o comprimento, a avenida que se oferecia ao olhar estava deserta na hora, riscando como um traço de silêncio e imobilidade, um traço nu de luz até as valas do palácio imperial, ao fundo, onde ia terminar. Que contraste entre a corrida do trem repleto e a paz soberana desta vasta aléia, perpendicular à ferrovia, que semelhava ir afundar sozinha no silêncio maravilhoso, àquela hora singularmente vasta do crepúsculo, para ir dar, como num conto, na própria paisagem do poente! Por um momento, Kikuji acreditou perceber distintamente, avançando na sombra alongada das grandes árvores tão frescas e serenas, a delicada silhueta da Srta. Inamura, com o furoshiki de sembazuru na mão. Sim, via até o menor detalhe os pássaros brancos que ornavam o lenço de seda rosa!
Seu coração se pôs a bater a essa visão e seu humor, deliciosamente, se transformou. Quem sabe ela já não estava lá em sua casa?
Repôs-se pensando em Chikako e no que devia estar planejando. Por que, enfim, ela de saída lhe propôs que trouxesse amigos junto e só falou em convidar a moça depois que recusou. Um fingimento? Teria, desde o início, a intenção de chamar a Srta. Inamura? Não compreendia mais nada.
Ao chegar em casa, mal franqueou a porta, Chikako apareceu na entrada.
Está sozinho?
Respondeu com um sinal de cabeça.
Felizmente não trouxe ninguém. Ela está aí. Adiantando-se para desembaraçá-lo do chapéu e da pasta, indagou:
Não veio direto para casa, não foi?
Kikuji se interrogou se seu hálito o traía ou se se notava no quente de sua face que havia bebido.
O que andou fazendo? Aonde foi? Voltei a ligar para o escritório e me responderam que já tinha saído. Calculando o tempo necessário para chegar, deveria estar aqui bem antes.
Essa agora!
Mais uma vez a impudência de Chikako o deixou sem voz. O quê? Não bastava a ela chegar em sua casa e aí fazer tudo o que lhe desse na veneta sem mesmo pedir desculpas, tinha ainda censuras a lhe fazer! Passou ao quarto sem uma palavra. Chikako seguiu atrás. A roupa japonesa, preparada pela doméstica, estava à sua espera. Chikako quis ajudá-lo.
Não, por favor, não faça nada. Não quero abusar e realmente me magoaria infringir a esse ponto as regras da mais simples polidez ou os deveres elementares da hospitalidade! Vou mudar a roupa ao lado.
E como para anular logo qualquer perseguição de parte dela, Kikuji, que tinha tirado o casaco, passou para o vestíbulo.
Trajado à japonesa, voltou ao quarto onde Chikako, sentada a esperá-lo, o acolheu disparando:
Estes solteiros, afinal, se deslindam bem!
Acha?
Sim. Mas esse modo de viver tem muitos inconvenientes e espero que não o prolongue mais do que o necessário.
Como não! Depois do que vi com o meu pai!... Ela lhe lançou um rápido olhar. Kikuji notou que tinha posto um avental de sua mãe, emprestado pela empregada, sem dúvida. Arregaçara as mangas e ele se impressionou ao ver aqueles braços firmes e brancos, quase brancos demais, com a proeminência aparente dos duros músculos.
Num tom claramente mais convencional, Chikako lhe disse:
Por ora a introduzi no salão. Mas não seria mais simpático recebê-la no pavilhão de chá?
Não sei se ali se pode acender a luz. Não me lembro de tê-la visto nunca acesa.
Poderia se fazer um jantar a velas, era até mais cativante.
Mas não, ora!
Ah, estava me esquecendo! — mudou Chikako de assunto bruscamente como se a coisa lhe surgisse da memória. — Há pouco, no telefone, a Srta. Inamura desejou saber se sua mãe estava também convidada. Respondi que isso nos faria ainda mais contentes. Infelizmente a Sra. Inamura tinha um compromisso esta noite e acabamosdecidindo que a Srta. Inamura viria só.
Acabamos decidindo? Quer dizer que você decidiu e que a forçou de acordo com a sua conveniência. Não está direito convidar pessoas assim, no último minuto! É muito incorreto. O que elas não pensarão de nós?
Mas sim, é verdade, as regras não foram respeitadas como deviam. Mas já que a moça veio, que está aqui, se anula todo aspecto de incorreção de nossa parte.
Como assim?
Claro! Já que veio hoje, é porque aceita de bom grado a ideia do casamento. Não digo que isso seja muito clássico, evidentemente. Que mal há? Podem os dois, feita a coisa, se divertirem comigo e com minhas iniciativas “originais”! Mas, sabe, pode-se encarar dum modo ou de outro, não importa: o que deve acontecer sempre acontece. Pelo menos segundo a experiência que tenho.
Assumira no tom uma segurança insolente, como se conhecesse todos os pensamentos de Kikuji.
Você por acaso lhe disse tudo?
Naturalmente! Ela está a par de tudo.
E ao dizer isso, tomou uma atitude que dava claramente a entender: vamos, trate de se decidir, já é tempo!
Kikuji se levantou e passou pela galeria se dirigindo ao salão. Um momento, diante da romãzeira, esforçou-se por compor um rosto melhor. Iria se apresentar com seu aspecto menos ágil ante a Srta. Inamura?
Seu olhar, passando distraído pela sombra negra da árvore, lhe trouxe ao espírito as manchas de Chikako. Kikuji sacudiu a cabeça. Os últimos clarões do poente se espelhavam ainda nas pedras do pequeno jardim, guiando os passos até o salão com os tabiques bem abertos.
A Srta. Inamura, num canto da grande peça em semi-obscuridade, criava uma mancha clara que parecia luminosa. No tokonoma, havia um arranjo de íris numa taça. Cumpria ver nisso um sinal do destino? O mesmo motivo adornava a larga cinta de seda (o obi) da moça, envolvendo sua cintura em flores de íris. Talvez não fosse mais que uma simples coincidência, afinal, já que aquela era a flor da estação e se usava em geral para exprimir o clima daquela quadra do ano, o espírito destes derradeiros dias de primavera.
Não eram aliás íris selvagens, e sim cultivados os que entraram no arranjo do tokonoma. Pela disposição alta e empinada do ramalhete, das flores e das folhas, e também por seu frescor, se podia adivinhar que Chikako mal acabara de arrumá-los.

Yasunari Kawabata, in Nuvens de Pássaros Brancos

Nenhum comentário:

Postar um comentário