quarta-feira, 15 de novembro de 2023

De como evitar um homem nu


Trata-se de um filme que não escandalizaria ninguém. E no entanto foi proibida a sua exibição no Brasil. Embora, contraditoriamente, tenham permitido a sua venda para o mercado exterior. É um filme da Condor Filmes S/A – argumento, roteiro e direção de Nelson Pereira dos Santos.
Só não gosto do título – Como era gostoso o meu francês – que dá uma ideia jocosa de um filme nada jocoso.
Época: século XVI: França Antártica. Após escapar da morte a que fora condenado, Jean (Arduíno Colasanti) encontra um grupo de portugueses que naufragam em pleno território inimigo (Brasil). Os portugueses aprisionam o francês e entregam-lhe dois pequenos canhões para serem usados contra os índios. Estes atacam de surpresa e prendem Jean, tomando-o como um poderoso português, pois estava, durante o combate, manejando os canhões. Jean torna-se escravo de Cunhambebe (Eduardo Imbassaí), grande chefe dos índios tupinambás, e que pretende devorar Jean a fim de possuir os poderes do artilheiro e, assim, mais força na sua luta contra os portugueses.
Na aldeia tupinambá, o prisioneiro é guardado por uma viúva, Seboipep (Ana Maria Magalhães), que cumpre também o papel de esposa até o dia da execução de Jean. Com o passar das luas, Jean vai compreendendo a língua e os costumes dos índios e adota-lhes os hábitos. Obtém pólvora para os seus canhões e com eles participa de uma guerra contra os índios amigos dos portugueses (e portanto inimigos dos tupinambás). Quando espera ser libertado, vê que Cunhambebe apenas o estivera provando como guerreiro, a fim de devorá-lo em grande festa.
Este filme precisou de cinco anos de preparação e pesquisas. As fontes de pesquisas são sérias: Biblioteca Nacional, Museu do Índio, Serviço de Proteção ao Índio, Museu do Homem (Paris).
Os livros consultados: Civilização tupinambá (Metraux), Viagem ao Brasil (Hans Staden), Tupinambás (Jean de Léry), Civilização tupinambá (Florestan Fernandes) – além de outros cronistas da época (século XVI).
Os diálogos foram escritos em tupi-guarani por Humberto Mauro. O francês quinhentista (lindo), por especialistas franceses. Foram quatro meses de filmagem intensa. Os locais eram nas praias e matas entre Parati e Angra dos Reis.
Este filme – de muita beleza e de enorme interesse porque afinal se trata de origens do Brasil – custou Cr$ 760.000,00 (setecentos e sessenta mil cruzeiros) – cerca de 150 mil dólares.
Para garantir a autenticidade, houve não só construção de tabas e reconstituição de guarda-roupa dos personagens portugueses e do francês, mas também o uso de objetos e adornos indígenas para garantir a legitimidade. Mais de 500 figurantes aparecem no filme. Este foi realizado com a colaboração do Exército brasileiro, cidade de Parati, Funai, Museu da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Forte de São João.
Todo o elenco foi depilado completamente, de acordo com as características raciais dos índios. As pinturas de corpo são rigorosamente de acordo com as minuciosas pesquisas feitas.
Pois este filme foi interditado no território nacional e liberado para exportação (!!). Foi considerado atentatório ao pudor, aos costumes e à moral. Mas a Censura implicou verdadeiramente com o nu masculino. Depois de alguma discussão deixaram passar o nu masculino dos índios – mas disseram que o nu do homem branco (o francês que viveu entre os índios e adotou-lhes o modo de viver) não seria permitido em hipótese nenhuma...Talvez seja inocência minha, mas por favor me respondam: qual é a diferença entre o corpo nu de um índio e o corpo nu de um homem branco?
Assisti ao filme em salinha de projeção particular. Havia outras pessoas assistindo também. Duas delas eram freiras de alto nível eclesiástico. A opinião delas: filme belíssimo, de uma grande pureza, de um valor histórico inestimável por causa de toda a reconstituição. Disseram que era um filme poético. A única cena realmente impura – disseram – seria aquela em que um mercador francês demonstrou sua cupidez diante do tesouro dos índios – aí é que se reconhece uma civilização de agora.
Espera-se – tem-se mesmo muita esperança – uma liberação também para território nacional: não é justo que os estrangeiros usufruam coisa nossa sem nós também participarmos dela. A esperança vem também de que no filme inteiro não há um só gesto ou intenção obscenos ou simples sugestão maliciosa. E garanto-vos que a nudez de Arduíno Colasanti é casta. Será que daqui a pouco nos escandalizaremos se virmos um menino branco nu? Por que em menino pode e em adulto não pode? Lembro-me de um verso que uma pessoa, José Augusto (S. Paulo), me mandou:
Saí nu na rua
e não me entenderam.
Vou pôr terno e gravata.”
Melhor, por via das dúvidas, pôr terno e gravata nos tupinambás.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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