Ilustração: Bruno Martins
Deu-se
aquilo porque Sinha Vitória não conversou um instante com o menino
mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a
linguagem de Sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória,
distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o
filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.
O
menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão,
com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.
– Bota
o pé aqui.
A
ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata: deu um traço
com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo
grande. Riscou em seguida a forma do calçado e bateu palmas .
– Arreda.
O
pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente
arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi
pendurar-se à saia da mãe:
– Como
é?
Sinha
Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
– A
senhora viu?
Aí
Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um
cocorote.
O
menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro,
escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa
vazia.
A
cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à
trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não
o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era
doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras
onde a confiança brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo
na panela, e ninguém lhe tirava esta certeza, nenhuma inquietação
lhe perturbava os desejos moderados. As vezes recebia pontapés sem
motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do
osso.
Naquele
dia a voz estridente de Sinha Vitória e o cascudo no menino mais
velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as
coisas não iam bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão,
fazendo-se miúda entre cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou
o focinho e procurou orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa
fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo da parede, transpôs a
janela baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou pelo pé de
turco, topou a camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das
catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e
balançando a cauda. Não podia sentir dor excessiva. E como nunca se
impacientava, continuou a pular, ofegante, chamando a atenção do
amigo. Afinal convenceu-o de que o procedimento dele era inútil.
O
pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se
a contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão
minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se,
pois, de exclamações e de gestos, Baleia respondia com o rabo, com
a língua, com movimentos fáceis de entender.
Todos
o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava
simpatia. Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal
encolheu-se para sentir bem o contato agradável, experimentou uma
sensação como a que lhe dava a cinza do borralho.
Continuou
a acariciá-la, aproximou do focinho dela a cara enlameada, olhou bem
no fundo os olhos tranquilos.
Estivera
metido no barreiro com o irmão, fazendo bichos de barro,
lambuzando-se. Deixara o brinquedo e fora interrogar Sinha Vitória.
Um desastre. A culpada era Sinha Terta, que na véspera, depois de
curar com reza a espinhela de Fabiano, soltara uma palavra esquisita,
chiando, o canudo do cachimbo preso nas gengivas banguelas. Ele tinha
querido que a palavra virasse coisa o ficara desapontado quando a mãe
se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso
rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.
Todos
os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o
barreiro, o pátio, o bebedouro – mundo onde existiam seres reais,
a família do vaqueiro e os bichos da fazenda. Além havia uma serra
distante e azulada, um monte que a cachorra visitava, caçando preás,
veredas quase imperceptíveis na catinga, moitas, os capões de mato,
impenetráveis bancos de macambira – e aí fervilhava uma população
de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos
viviam em paz, às vezes desapareciam as fronteiras, habitantes dos
dois lados – entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam
sem dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas forças
eram sempre vencidas. E quando Fabiano amansava brabo, evidentemente
uma entidade protetora segurava-o na sela, indicava-lhe os caminhos
menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos galhos.
Naquele
tempo o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para bem dizer as
coisas ruins não tinham existido. No jirau da cozinha arrumavam-se
mantas de carne seca e pedaços de toicinho. A sede não atormentava
as pessoas, e à tarde; aberta a porteira, o gado miúdo corria para
o bebedouro. Ossos e seixos transformavam-se às vezes nos entes que
povoavam as moitas, o morro, a serra distante e os bancos de
macambira.
Como
não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões
complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o
barulho do vente, o som dos galhos que rangiam na catinga,
roçando-se. Agora tinha tido a idéia de aprender uma palavra, com
certeza importante porque figurava na conversa de Sinha Terta. Ia
decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra. Baleia
permaneceria indiferente, mas o irmão se admiraria, invejoso.
– Inferno,
inferno.
Não
acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.
E resolvera discutir com Sinha Vitória. Se ela houvesse dito que
tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitória impunha-se, autoridade
visível e poderosa. Se houvesse feito menção de qualquer
autoridade invisível e mais poderosa, muito bem. Mas tentara
convencê-la dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo.
Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam,
pensava até que a zanga delas era a causa única dos cascudos e
puxavantes de orelhas. Esta convicção tornava-o desconfiado,
fazia-o observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a
interrogar Sinha Vitória porque ela estava bem-disposta. Explicou
isto à cachorrinha com abundância de gritos e gestos.
Baleia
detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e
bocejou. Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e
necessários Só tinha um meio de evitá-los, a fuga. Mas às vezes
apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de alpercata batia-lhe no
traseiro – saía latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de
morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se.
Efetivamente a exaltação do amigo era desarrazoada. Tornou a
estirar as pernas e bocejou de novo. Seria bom dormir.
O
menino beijou-lhe o focinho úmido, embalou-a. A alma dele pôs-se a
fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos de macambira.
Fabiano dizia que na serra havia tocas de suçuaranas. E nos bancos
de macambira, rendilhados de espinhos, surgiam cabeças chatas de
jararacas.
Esfregou
as mãos finas, esgaravatou as unhas sujas. Pensou nas figurinhas
abandonadas junto ao barreiro, mas isto lhe trouxe a recordação da
palavra infeliz. Diligenciou afastar do espírito aquela curiosidade
funesta, imaginou que não fizera a pergunta, não recebera portanto
o cascudo. Levantou-se. Via a janela da cozinha, o cocó de Sinha
Vitória, e isto lhe dava pensamentos maus. Foi sentar-se debaixo de
outra árvore, avistou a serra coberta de nuvens. Ao escurecer a
serra misturava-se com o céu e as estrelas andavam em cima dela.
Como era possível haver estrelas na terra?
A
cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as mãos e
acomodou-se.
Como
era possível haver estrelas na terra?
Entristeceu.
Talvez Sinha Vitória dissesse a verdade. O inferno devia estar cheio
de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam
cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca.
Apesar
de ter mudado de lugar, não podia livrar-se da presença de Sinha
Vitória. Repetiu que não havia acontecido nada e tentou pensar nas
estrelas que se acendiam na serra. Inutilmente. Aquela hora as
estrelas estavam apagadas.
Sentiu-se
fraco e desamparado, olhou os braços magros, os dedos finos, pôs-se
a fazer no chão desenhos misteriosos. Para que Sinha Vitória tinha
dito aquilo?
Abraçou
a cachorrinha com uma violência que a descontentou. Não gostava de
ser apertada, preferia saltar e espojar-se. Farejando a panela,
franzia as ventas e reprovava os modos estranhos do amigo. Um osso
grande subia e descia no caldo. Esta imagem consoladora não a
deixava.
O
menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não
magoá-lo, sofria a carícia excessiva. O cheiro dele era bom, mas
estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um
osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne.
Graciliano Ramos, in Vidas Secas
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