Não
posso infelizmente responder cartas de leitores, só uma vez ou
outra. Mas houve uma que misturava agressividade com palavras
delicadas, tinha a chamada rude franqueza. Porque em minhas colunas
eu disse que preferia ser antipática, ele diz: “Não vou cometer a
leviandade de dizer que a acho simpática, cheia de altos e baixos,
mas sou bastante vulgar para considerá-la linda.”
Diz
que me conheceu mas tenho péssima memória e nem sequer consigo
visualizar uma pessoa com esse nome. Diz: “Algumas coisas a tornam
uma digna compatriota de Tchecov. Outras a identificam com os daqui
mesmo. Não de Cruz Alta ou Montes Claros, mas de Bagé ou
Cascadura.” Meu filho, eu não me incomodo a mínima em ser de Bagé
ou Cascadura. Eu escrevo para quem quiser me ler. Você, Francisco,
reclama demais, às vezes com razão, às vezes não. Não fico nem
por um instante irritada: eu mesma me criei uma vida onde eu posso
dizer tudo e ouvir tudo. Mas na sua carta fico sem saber em vários
trechos se sou a ofendida ou a elogiada.
Você
reclama contra o meu desalento. Tem razão, Francisco, sou um pouco
desalentada, preciso demais dos outros para me animar. Meu desalento
é igual ao que sentem milhares de pessoas. Basta, porém, receber um
telefonema, ou lidar com alguém que eu gosto e minha esperança
renasce, e fico forte de novo. Você na certa deve ter me conhecido
num momento em que estava cheia de esperança.
Sabe
como eu sei? Porque você diz que eu sou linda. Ora, não sou linda.
Mas quando estou cheia de esperança, então de minha pessoa se
irradia algo que talvez se possa chamar de beleza.
Com
toda razão você quer que, como Tchecov, eu escreva coisas
engraçadas. Meu caro amigo, se eu escrevesse uma só página como
Tchecov, eu seria uma grande mulher e não a desprotegida que sou.
Não se incomode, Francisco, que minha hora de dizer coisas
engraçadas vai chegar, sou mesma de altos e baixos e aproveitarei um
dia desses a forte onda do mar para andar na sua crista. A hora de
rir há de chegar, Francisco, já estou até impaciente por esta
hora, o que é bom sinal: significa que a hora da esperança
renovar-se, dentro de tantas cinzas, está perto. Por enquanto o meu
jeito tem sido o de rir ou chorar, segundo meus altos e baixos.
Francisco,
você me oferece seu “reino, um cavalo e um prato de lentilhas”.
Considero-me a mais humilde serva de seu reino. Aceito também voar
no seu cavalo no escuro porque, Francisco, é no escuro que você me
deixou, você ainda não me ofereceu nenhuma pista para eu
desabrochar na luz, e é disso que estou precisando. Mas você é bom
e, mesmo decepcionado com minha pouca possibilidade atual de riso, me
oferece essa iguaria sem par: um prato de lentilhas. Enfim alguém
compreendeu que estou com fome.
Depois
você me propôs uma coisa tão excepcional que me senti excepcional
também. Se eu não aceitar é porque não posso mesmo. Pois você,
com a simplicidade de quem tem riqueza dentro de si, me oferece o
seguinte:
“Fujamos
para Hong Kong ou para qualquer lugar um pouco aquém do além.”
E,
como você diz: “que Deus nos proteja para todo o sempre”.
Amém,
Francisco, e obrigada: quero tudo o que você tem a me dar. Há muito
tempo não me dão um prato de lentilhas para essa fome arcaica que
eu tenho. Com seu cavalo, Francisco, iremos tão longe! E de lá
nunca voltaremos. Adeus, todo mundo! pois já estou montada no cavalo
belo que me levará à luz. Vou-me embora para a minha pasárgada,
enfim!
As
outras cartas, desta última safra, são de gente muito pura e cheia
de confiança em mim. Não sei selecionar as que mais me comoveram.
Todas esquentaram meu coração, todas quiseram me dar a mão para me
ajudar a subir mais e ver de algum modo a grande paisagem do mundo,
todas me fizeram muito bem. Sou uma colunista feliz. Escrevi nove
livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe. Mas ser cronista
tem um mistério que não entendo: é que os cronistas, pelo menos os
do Rio, são muito amados. E escrever a espécie de crônica aos
sábados tem me trazido mais amor ainda. Sinto-me tão perto de quem
me lê. E feliz por escrever para os jornais que me infundem
respeito. Só me ocorrem os nomes de três ou quatro cronistas
mulheres: Elsie Lessa, Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queirós,
eu. Vou telefonar para Elsie, que faz crônica há mais tempo que eu,
para lhe perguntar o que faço dos telefonemas maravilhosos que
recebo, das rosas pungentes de tanta beleza que me oferecem, das
cartas simples e profundas que me mandam.
Prometo
aos meus leitores que serei mais feliz e assim eu os farei, pelo
menos por um instante, mais felizes. Mas, Deus meu. Como é que se é
feliz? Pois não aguento mais a solidão neste mundo de Carlos
Drummond de Andrade. Viva muito tempo, Drummond, para que eu possa
lhe telefonar como faço uma vez ou outra, sempre com objetivo certo,
senão não teria coragem de interromper você no seu trabalho. Mas
hoje tive a coragem de ser tão linda de esperança como você me
viu, Francisco. E falei pelo telefone com Drummond, quase chamando-o
de Carlinhos, pois é essencial não esquecer que, com sua imensa
grandeza, ele é Carlinhos também e sua mãe assim o chamava. Ele
também precisa ser mimado. Vou parar aqui, pois estou cavalgando
depressa demais no cavalo de Francisco e se não tomar cuidado hoje
mesmo começa o primeiro capítulo de mais um filho: um romance. O
ruim é que dou com antecedência razoável minhas crônicas, e estas
saem publicadas num sábado de madrugada, como um pão quente saindo
do forno, talvez o céu tenha nuvens vermelhas, a lua esteja fininha
e eu já terei também outra leva de sentimentos, nos meus fatais
altos e baixos.
Sim,
Otávio Bonfim, escrever para jornal é uma grande experiência que
agora renovo, e ser jornalista, como fui e como sou hoje, é uma
grande profissão. O contato com outro ser através da palavra
escrita é uma glória. Se me fosse tirada a palavra pela qual tanto
luto, eu teria que dançar ou pintar. Alguma forma de comunicação
com o mundo eu daria um jeito de ter. E escrever é um divinizador do
ser humano.
Como?
Mas como é que eu escrevi nove livros e em nenhum deles eu vos
disse: Eu vos amo? Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e
pela minha voz que sai através da palavra escrita. Sinto-me de
repente tão responsável. Porque se sempre eu soube usar a palavra —
embora às vezes gaguejando — então sou uma criminosa se não
disser, mesmo de um modo sem jeito, o que querei ouvir de mim. O que
será que querem ouvir de mim? Tenho o instrumento na mão e não sei
tocá-lo, eis a questão. Que nunca será resolvida. Por falta de
coragem? Devo por contenção ao meu amor, devo fingir que não sinto
o que sinto: amor pelos outros?
Para
salvar essa madrugada de lua cheia eu vos digo: eu vos amo.
Não
dou pão a ninguém, só sei dar umas palavras. E dói ser tão
pobre. Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa, fui ao
terraço e vi a lua cheia — sou muito mais lunar que solar. E uma
solidão tão maior que o ser humano pode suportar, esta solidão me
toma se eu não escrever: eu vos amo. Como explicar que me sinto mãe
do mundo? Mas dizer “eu vos amo” é quase mais do que posso
suportar! Dói. Dói muito ter um amor impotente. Continuo porém a
esperar.
Clarice Lispector, in Crônicas para jovens: de escrita e vida
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