Nem
é preciso dizer que Penélope não chegou a ir ao festival de artes;
não foi a um ensaio sequer, nem passeou pela cidade de telhas
verde-água. Ela ficou na estação de Westbahnhof, na plataforma,
sentada na mala, cotovelos apoiados nos joelhos. Com os dedos limpos
e ressecados, ela brincou com os botões do vestido de lã azul.
Havia trocado sua passagem de volta por outra, para retornar o quanto
antes para casa.
Horas
depois, quando o trem que a levaria embora dali estava pronto para
partir, ela deu um pulo. Um condutor, barba por fazer, acima do peso,
despontou de um vagão.
— Kommst
einer?
Penélope
apenas olhou para ele, tomada pela indecisão, girando um botão na
altura do peito. A mala estava diante dela. Uma âncora aos seus pés.
— Nah,
kommst du jetzt, oder net?!
Havia
algo de encantador no desleixo do condutor.
— Você
vem ou não vem?
Até
os dentes dele eram tortos. Ele se inclinava para a plataforma de um
jeito quase infantil, como um colegial, e em vez de soprar o apito
apenas gritou para a frente do trem.
— Geht
schon!
E
sorriu.
Abriu
um sorriso que era mais uma confusão de dentes, e nesse momento
Penélope estendeu a mão direita, com o botão na palma.
***
Como
o pai dela havia previsto, contudo, a viagem correu bem.
Ela
era apenas uma maleta e vulnerabilidade, mas, exatamente como Waldek
planejara, conseguiu.
Havia
um acampamento em um lugar chamado Traiskirchen, que não passava de
um exército de beliches e um banheiro de piso vinoso. O primeiro
problema foi encontrar o fim da fila. Por sorte Penélope tinha muita
prática; se havia uma coisa que a Europa Oriental lhe ensinara era a
ficar na fila. O segundo problema, uma vez lá dentro, foi andar pelo
mar de recusas em que ela afundou até o tornozelo. Um mar ruidoso e
tanto, um teste de nervos e resistência.
As
pessoas da fila estavam cansadas e apáticas, e cada uma tinha os
próprios medos, embora compartilhassem o maior deles. Não poderiam,
sob circunstância alguma, ser enviadas de volta para casa.
Quando
chegou a vez dela, foi interrogada.
Tiraram
suas impressões digitais, traduziram o que ela disse.
A
Áustria era essencialmente um local de retenção, e na maioria dos
casos levava vinte e quatro horas para a pessoa ser analisada e
enviada para um albergue, onde aguardaria a aprovação de outra
embaixada.
O
pai de Penélope havia pensado nos mínimos detalhes; só não lhe
ocorreu que sexta-feira seria um dia ruim para chegar. Ela teria que
resistir a um fim de semana no acampamento — que não era lá um
mar de rosas —, mas resistiu. Afinal, em suas próprias palavras,
tampouco era o inferno na Terra. Nada comparado ao que outras pessoas
enfrentaram. O pior era não saber.
***
Na
semana seguinte, ela pegou outro trem, daquela vez para as montanhas,
para outro conjunto de beliches, e começou o processo de espera.
Imagino
que, depois de nove meses, fosse possível se familiarizar com aquele
lugar, mas o que sei de fato sobre aquele período? O que Clay sabia?
Ao que parece, a vida nas montanhas era um dos poucos períodos sobre
o qual ela não comentava muito — mas quando o fazia, falava com
simplicidade e beleza, e o que podemos chamar de luto. Nas palavras
dela para Clay:
Houve
um breve telefonema, e uma canção antiga.
Pequenas
partes para contar o todo.
***
Nos
primeiros dias, ela reparou que pessoas faziam ligações de uma
antiga cabine telefônica na beira da estrada. Era um corpo estranho
na vastidão da floresta e do céu.
Dava
para ver que estavam ligando para casa: ficavam de olhos marejados e
volta e meia sofriam para sair da cabine depois que desligavam.
Penélope,
como muitos outros, hesitou.
Avaliou
se era seguro.
Os
boatos de escutas do governo eram o bastante para deixar as pessoas
nervosas. Como já falei, os que ficavam é que eram punidos.
O
que muitos ali tinham a seu favor era o fato de estarem viajando por
períodos supostamente longos. Então por que não ligariam para casa
após algumas semanas fora? Para Penélope, não era tão simples:
ela já deveria ter voltado. Será que um telefonema colocaria seu
pai em perigo? Por sorte, enrolou tanto tempo que um homem chamado
Tadek esbarrou nela. Ele tinha uma voz e um corpo, era como uma das
árvores que cercavam o lugar.
— Quer
ligar pra casa, mocinha? — Diante da relutância de Penélope em
falar, Tadek encostou no vidro para mostrar que a cabine telefônica
não mordia. — Tem alguém da sua família no movimento? — E
então, foi mais específico: — Solidarność?
— Nie.
— Você
já mexeu com quem não devia? — Ela balançou a cabeça. — Foi o
que pensei. — Ele sorriu, como se tivesse pegado emprestado os
dentes do condutor de trem austríaco. — Então, se me permite a
pergunta, são seus pais?
— Meu
pai.
— E
tem certeza de que não causou nenhum problema?
— Tenho.
— E
ele?
— É
só um velho condutor de bonde, mal abre a boca.
— Ah,
muito que bem, então acho que não tem problema. O Partido está
passando por maus bocados. Acho que estão sem tempo pra se preocupar
com um velho condutor de Tramwaj. Difícil ter alguma certeza hoje em
dia, mas disso estou certo.
Foi
então que, segundo ela, Tadek olhou pelos pinheiros e corredores de
luz e perguntou:
— Ele
foi um bom pai pra você?
— Tak.
— E
ficaria feliz de receber notícias?
— Tak.
— Bom,
então tome aqui. — Ele se virou para ela e jogou alguns trocados.
— Diga oi por mim.
E
saiu andando.
***
Na
conversa telefônica, houve dez breves palavras, traduzidas como:
— Alô?
Nada.
Ele repetiu.
Aquela
voz, feito cimento, feito pedra.
Somente
um ruído.
— Alô?
Ela
estava perdida em uma encosta de montanha cheia de pinheiros, os
punhos brancos de tão apertados.
— Rainha
dos Erros? Rainha dos Erros, é você?
Então
ela o imaginou na cozinha, e a estante com trinta e nove livros;
encostou a cabeça na vidraça da cabine, como se dissesse “Sim”.
Então
desligou com cuidado.
As
montanhas ao redor sumiram.
***
Agora
vamos à música, poucos meses depois, à noite, na pensão.
A
lua contra o vidro.
A
data era o aniversário do pai dela.
Na
Europa Oriental, davam mais importância à celebração do
onomástico, mas no exterior as coisas ganhavam outra dimensão. Ela
deixou escapar isso para uma das mulheres.
Não
tinham wódka, mas sempre havia schnapps de sobra, e surgiu uma
bandeja com taças. Assim que foram distribuídas, o dono da bebida
ergueu a sua, propôs um brinde e olhou para Penélope, no salão.
Meia dúzia de pessoas estava reunida, e quando ela ouviu as palavras
em seu idioma, “A seu pai”, levantou o rosto e sorriu, tentando
aguentar firme. Nesse momento, outro homem se levantou. Claro que era
Tadek, que começou um canto de beleza e dor:
Sto
lat, sto lat,
niech
żyje, żyje nam.
Sto
lat, sto lat,
niech
żyje, żyje nam…
Ela
não se conteve.
Desde
os primeiros dias, do telefonema, estava tudo guardado, e Penélope
não conseguiu segurar mais. Ela se levantou e cantou, mas algo
dentro de si se rompeu. Ela entoou a canção de seu país que falava
sobre acaso e companheirismo, enquanto se perguntava como podia ter
deixado o pai. As palavras vinham em ondas de amor e autodesprezo, e,
quando acabou, muitos ali choravam. Não sabiam se veriam suas
famílias de novo; deveriam se sentir gratos ou condenados? A única
certeza definitiva era de que isso estava fora da alçada deles.
Tinha começado e precisava terminar.
A
propósito, estes são os primeiros versos da canção:
Cem
anos, cem anos,
Que
você viva cem anos.
Enquanto
cantava, ela sabia que ele não viveria.
Ela
nunca mais o veria.
***
Para
Penélope, era difícil não reviver sempre aquele sentimento, não
deixar que ele tomasse conta durante o tempo que lhe restava naquele
lugar — ainda mais levando uma vida tão cômoda.
Todos
a tratavam muito bem.
Gostavam
dela — de sua tranquilidade, daquela insegurança polida —, e
passaram a chamá-la de Garota do Aniversário; geralmente pelas
costas, quase nunca na sua frente. De quando em quando, sobretudo os
homens, diziam na lata, em diversas línguas, quando ela fazia
faxina, ou lavava roupa, ou amarrava o cadarço de uma criança.
“Dzięki,
Jubilatko.”
“Vielen
Dank, Geburtstagskind.”
“Děkuji,
Oslavenkyně...”
Obrigado,
Garota do Aniversário.
Um
sorriso precisava desbravar o caminho até seu rosto.
***
Enquanto
isso, tudo que lhe restava eram a espera e as lembranças do pai. Às
vezes, parecia que ela sobrevivia movida por certo rancor, mas isso
em seus momentos mais depressivos, quando a chuva desabava das
montanhas.
Em
dias assim, ela trabalhava com mais vigor e por mais tempo.
Cozinhava
e limpava.
Lavava
a louça e trocava a roupa de cama.
No
fim, foram nove meses de esperança culpada e nenhum piano, até que
por fim um país a aceitou. Ela se sentou na beirada do beliche,
envelope em mãos. Seu olhar se perdeu pela vidraça branca e
embaçada da janela.
Mesmo
agora, não consigo deixar de visualizá-la nesse lugar, nos Alpes
que volta e meia imagino. Consigo invocar a imagem dela na época, ou
como Clay uma vez a descreveu:
A
futura Penny Dunbar, entrando em mais uma fila, para voar para longe,
para o sul e, de certa forma, direto para o sol.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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