Os
sons da harmônica silenciavam os grilos pelo atalho. No grupo –
vários homens, algumas mulheres – também silenciaram as
conversas, os comentários, as risadas. Bastião começara a tocar.
Era antiga e passada de moda a polca, aquele fim de mundo as coisas
chegavam com muito atraso, as músicas também. Se o dr. Aureliano
morasse na casa-grande talvez houvesse por lá um rádio de bateria
mas o fazendeiro residia no Rio, onde se formara e tinha interesses
comerciais. O coronel Inácio durante anos fizera projetos de comprar
um mas ficara satisfeito com o velho gramofone de segunda mão que um
sírio mascate lhe empurrara e que não tardou a quebrar a mola.
Enquanto esteve funcionando sinhá Ângela passava horas inteiras,
quando não estava mandando as negras na cozinha, dando corda na
máquina e tocando os três únicos discos nos quais Caruso cantava
trechos de ópera. Terminara pelos cantos da casa, coisa inútil, de
difícil conserto. “Dinheiro jogado fora”, concluía o coronel
Inácio olhando a máquina agora apenas decorativa na sala de moveis
pesados da casa-grande.
Além
do gramofone toda a música resumia-se nas harmônicas, nos violões
e nos cavaquinhos dos colonos e trabalhadores. Perto da fazenda
morava Pedro da Restinga, cego violeiro afamado, cantador de
desafios, e nos tempos do coronel Inácio ele costumava vir a
casa-grande nos dias de festa, tirar trovas na viola, para deleite do
velho fazendeiro. Mas todas essas coisas eram do passado, depois que
Inácio e Ângela morreram Pedro da Restinga teve suspensa sua conta
no armazém – conta que ele não pagava nunca, espécie de esmola
que o coronel lhe dava. Tinha direito de comprar toda semana feijão
e farinha, uma garrafa de cachaça e um pedaço de carne-seca. Era
anotado no livro mas todos já sabiam que não era para pagar, ele
pagava era com suas trovas, seus versos na viola, suas rimas em ao,
suas tiradas que faziam Inácio rir. Aureliano nada dissera sobre a
conta de Pedro da Restinga e Artur – que passou a habitar na
casa-grande – a cortou no primeiro sábado. Aquilo foi a causa
inicial da antipatia que lhe votavam os trabalhadores e os colonos.
No entanto Artur não se sentia culpado, ate lembrava que poderia ter
cobrado a dívida que se tornara enorme no correr dos anos. Pedro da
Restinga deixara de vir a fazenda e na feira do arraial – onde
brilhava com sua viola e sua cuia de esmolas – cantara umas trovas
onde dizia o que pensava sobre Aureliano e Artur:
“Esmola
pro pobre cego
que
perdeu seu de comer…
........................................…
“Seu
Inácio era homem bom,
Don'Ana
melhor não ha.
Na
viola eu busco um tom
Pra
sua bondade louvar.
“O
filho não lhe puxou
A
bondade sem igual.
Em
doutor já se formou
Mas
aos pobres só faz mal…
“Ruim
que nem Satanás
Homem
de mau coração,
E
Artur, seu capataz
Incapaz
de u'a boa ação
................................
“Esmola
pra um pobre cego
que
perdeu seu de comer...”
Já
Bastião não perdera seu pedaço de terra, aquele com que Inácio o
presenteara em certa festa, contente de ter em sua fazenda um tocador
de harmônica como ele. Quando do inventário, Aureliano demorara-se
na fazenda e ao partir dera suas ordens. Artur lhe perguntara:
– E
Bastião?
– O
que e que ha com Bastião?
O
negro estava perto, se aproximou:
– Seu
coronel me deu o pedaço de terra onde tá minha rocinha... – e
começou a contar a história.
Mas
Aureliano que ainda estava sob a emoção da morte quase simultânea
dos pais, o interrompeu:
– Fica
com tua terra, negro.
Bastião
teve vontade de pedir que ele botasse a coisa no papel. Ao velho
Inácio não sentira necessidade de fazer tal pedido. A palavra do
coronel era uma só, não voltava atrás. Não pediu, no entanto.
Teve receio de ofender o doutor, deixou para outra vez. Vez que nunca
chegou pois Aureliano deixara-se, ficar pelo Rio, era Artur quem
fazia e desfazia na propriedade. Velha polca suficiente para alegrar
os que iam no grupo, cercando Bastião, já no gozo da festa. Os pés
do negro que levava o cavaquinho moviam-se na estrada como se ele
bailasse no ritmo daquela polca antiga. O sarara conduzia um violão,
mas não tocavam, nem um nem outro, porque era mestre Bastião quem
estava com a harmônica e seu nome era respeitado, tocador que se lhe
comparasse não havia por ali. Sua carapinha começava a
embranquecer, seus dedos já não eram tão ágeis no teclado como
antigamente, mas continuava igual à sua resistência, tocando noites
inteiras, quanto mais bebia melhor. Os sons da polca rolavam sobre os
matos e sobre os grilos, as estrelas enchiam o céu de lua cheia.
Havia uma beleza densa pelos campos mas os homens nem reparavam nela,
seus pensamentos estavam na festa e andavam depressa. Mais depressa
que todos ia o negro do cavaquinho, vontade de apertar, nas voltas da
dança, o corpo de Marta batendo os pés no chão de barro. Ia mais
rápido que todos no seu passo de baile que tornava leve e elegante
seu corpo enorme, seus disformes pes. Voltearia Marta ao som da
música de Bastião, seria uma noite gloriosa, cabrocha bonita como
aquela Deus não pusera outra no mundo. E os sons rolavam e, levados
pela brisa vespertina, eram ouvidos, como um insistente e alegre
convite, nas casas todas da fazenda. No silêncio em torno vibrava a
harmônica nas mãos sabias de Bastião, anunciando a festa do
casamento de Cosme e Teresa.
Era
noite de alegria na fazenda. Não havia homem ou mulher, solteiro,
casado ou amigado, que não estivesse contente, que não se reparasse
para palmilhar os caminhos da casa de Ataliba. Só Gregório
mastigava em silêncio sua carne-seca com pirão de água fria,
pensando no milharal que ia plantar, enquanto Militão, de botinas
rangedeiras, partia para a festa, o cabelo alisado a forca de
brilhantina de 500 réis a lata. Também Zefa, soturna em frente aos
seus santos que uma lamparina iluminava, tinha o pensamento distante
da festa do casamento. Não eram festas que ela enxergava com seus
olhos de medo, não eram acontecimentos felizes, não eram boas
notícias as que ela tinha para dar. Via coisas terríveis, enxergava
desgraças indescritíveis.
Mas
eram os únicos, Zefa, Jucundina e Gregório, que não tinham o
pensamento na festa e não se preparavam para ela. Os demais ou já
tinham partido ou estavam trocando de roupa, lavando os pés, para
ser mais fácil calçar as botinas. Só os três não ouviam os sons
convidativos da harmônica que chegavam do atalho e enchiam a noite
da fazenda. Porque ate os grilos silenciavam para escutar a música
daquela polca. Era Bastião quem tocava e nenhum tocador como ele, ai
nenhum!
Jorge Amado, in Seara Vermelha
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