domingo, 10 de setembro de 2023

PRÉ-RELATO | O que aconteceu antes da nossa partida


[...]
Quando eu era criança, tinha um gato igualzinho a você!
Satoru pegou um álbum de fotos do armário e me mostrou.
Olha só.
Era o álbum inteiro só de fotos do mesmo gato. Ah, já saquei tudo! Os humanos que fazem esse tipo de coisa são os tais “gateiros”.
O gato das fotos realmente se parecia comigo. Tinha o pelo quase todo branco, com exceção de duas manchinhas marrons na testa e o rabo preto e torto. A única diferença era que o rabo dele virava para o outro lado. Até as manchas no rosto eram idênticas.
Ele se chamava Hachi, “oito”, por causa dessas manchas inclinadas na testa, que parecem o ideograma do número.
Nossa, mas que falta de criatividade! Oito, Nana, como no ideograma ! Comecei a ficar preocupado com o nome que ele pretendia me dar.
E se ele me chamar de “nove”? Eu seria “Kyu”?
Que tal Nana, de “sete”?
Opa, uma subtração? Por essa eu não esperava.
É que seu rabo faz uma curva para o lado oposto do rabo do Hachi, e olhando de cima parece o número 7!
Ah, então a coisa tinha a ver com meu rabo…
Ei, espera aí. Nana não é nome de menina? Eu sou um macho autêntico, viu? Como é que fica isso?
É um bom nome, hein, Nana? Sete é o número da sorte!
Miei bem alto — Ei, me ouve! —, mas Satoru só afagou meu queixo, sorrindo satisfeito.
Achou legal também?
Não! Mas… poxa, perguntar enquanto me faz carinho é sacanagem.
Foi só eu me distrair e dar uma ronronadinha que Satoru se animou:
Que bom que você gostou!
Nããão, eu odiei!
Acabei nunca tendo a oportunidade de esclarecer o mal-entendido (o cara não parava com os cafunés!), então esse ficou sendo meu nome.
Vamos precisar nos mudar …
Naquele prédio eram proibidos animais de estimação, Satoru tinha negociado para eu poder ficar só até minha pata sarar. Fomos morar em um apartamento no mesmo bairro. Mudar de casa por causa de um gato… Sei que eu, por razões óbvias, não deveria dizer isto, mas só um gateiro de carteirinha para fazer uma coisa dessas.
E assim começou nossa vida juntos. Satoru não deixava nada a desejar como roommate de gato, e eu não deixava nada a desejar como roommate de humano.
A gente realmente se entendeu muito bem, durante aqueles cinco anos.

*

Eu já era um gato adulto e Satoru passava dos trinta anos quando partimos.
Nana, me perdoe.
Satoru afagou minha cabeça. Tudo bem, tudo bem, não se preocupe.
Me perdoe por ter que fazer isso.
Não precisa dizer mais nada. Sou um gato muito sagaz, já entendi tudo.
Eu não queria ter que me desfazer de você, nunca.
Não tem jeito, a vida nem sempre corre como a gente deseja. Pelo menos eu tenho sete delas.
Se eu não puder mais viver com você, volto à situação em que eu estava cinco anos atrás, só isso. É como se, naquele incidente em que quebrei a perna, eu tivesse só esperado sarar e ido embora. Pronto. Tive um pequeno hiato, mas amanhã mesmo posso voltar a ser um gato de rua.
Não perdi nada. Só ganhei: o nome Nana e os cinco anos que passamos juntos.
Então não faz essa cara, vai.
Um bom gato aceita, sem drama, tudo o que o destino lhe reserva.
A única vez que não consegui fazer isso foi quando quebrei a pata e gritei por socorro.
Bom, então vamos indo?
Satoru abriu a portinhola da caixa de transporte e eu entrei, obediente. Durante os anos que vivi com Satoru, sempre fui muito obediente. Nunca fiz escândalo ou me recusei a entrar na caixa, nem quando ele ia me levar ao veterinário, aquele inferno na terra.
O.k., vamos lá. Eu, que não deixei nada a desejar como roommate, certamente não deixarei nada a desejar como companheiro de viagem.
Satoru entrou na van prata, carregando minha caixa.

Hiro Arikawa, in Relatos de um gato viajante

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