As
paredes internas do vestiário exalavam tristeza, com um grafite
amador nada menos do que vergonhoso. Sentado no chão, descalço,
Clay não estava nem aí para isso. De frente para ele, Tommy tirava
tufos de grama da barriga de Aurora, que se levantou e foi até Clay.
Ele pousou a mão no focinho da border collie.
— Dunbar.
Como
era de se esperar, havia seis outros garotos, cada um em sua pequena
área do grafite. Cinco deles conversavam e brincavam. Um desfilava
com uma menina: o animalesco Starkey.
— Ei,
Dunbar — chamou ele.
— Que
foi?
— Não
você, Tommy, seu merdinha.
Clay
ergueu os olhos.
— Toma
— disse Starkey, jogando um rolo de fita adesiva no garoto.
A
fita bateu no peito de Clay e caiu no chão, indo parar na boca de
Aurora em questão de segundos. Clay assistia à luta da cadela com o
rolo enquanto Starkey tagarelava.
— Nem
adianta vir com suas desculpinhas esfarrapadas quando eu acabar com
você lá fora. Aliás, tenho lembranças vívidas daquele seu truque
de merda com fita adesiva, de quando a gente era mais novo. E tá
cheio de caco de vidro lá fora. Não quero que você machuque seus
lindos pezinhos.
— Você
disse vívidas? — perguntou Tommy.
— Só
porque sou pobre não posso falar bonito? Eu disse seu merdinha
também, e caiu como uma luva pra você e sua laia.
Starkey
e a garota riram, e por alguma razão Clay simpatizou com ela,
notando seu batom e o sorriso malicioso. Ele também gostou da alça
do sutiã caída, da forma como pendia no ombro, e não ligava para o
que os dois estavam fazendo, se tocando e se pegando, a virilha dela
na coxa de Starkey, uma perna de cada lado. Claro, ele tinha
curiosidade, mas nada de mais. Para começo de conversa, ela não era
nenhuma Carey Novac. Sem contar que aquilo não fazia parte da vida
dele. Para os que estavam do lado de fora, os garotos ali eram como
engrenagens de um lindo maquinário; entretenimento impuro. Para
Clay, eram colegas com um propósito específico. Até que ponto
conseguiriam machucá-lo? Até que ponto ele conseguiria sobreviver?
***
Ele
sabia que logo iriam para a pista, então se recostou, fechou os
olhos e imaginou Carey ao seu lado; o calor e a luz que emanavam dos
braços dela. As sardas no rosto, furinhos — bem profundos e
vermelhos, minúsculos — formando um diagrama, ou, melhor ainda, um
desenho no estilo “ligue os pontos” dos livros infantis. No colo
dela repousava o livro de capa desbotada que compartilhavam, com
letras douradas e descascadas: O MARMOREIRO
O
subtítulo dizia: Tudo que você sempre quis saber sobre
Michelangelo Buonarroti — uma mina inesgotável de grandeza.
Logo no começo do livro, um filete rasgado de uma folha faltando, a
que trazia a biografia do autor. O marcador de página era um pule de
uma aposta recente:
Royal
Hennessey, Páreo 5
#2
Matador
Vitória:
$1
Em
seguida, ela se levantou e se apoiou nele.
Ela
sorriu daquele seu jeito intrigante, de quem encara tudo de frente.
Aproximou-se mais ainda e começou; encostou o lábio inferior no
lábio superior dele, segurando o livro entre os dois.
— “Ele
soube na mesma hora que este era o mundo, e que não passava de uma
visão.”
Conforme
ela recitava uma de suas passagens favoritas, sua boca encostava
suavemente na dele — três, quatro vezes, cinco, até — e recuava
de leve:
— Sábado,
então?
Ele
assentiu, visto que sábado à noite, dali a apenas três dias, eles
se encontrariam no mundo real, em outro campo abandonado, o favorito
dele, um lugar chamado Cercanias. Lá, naquele lugar, passariam a
noite em claro. O cabelo dela roçaria nele por horas. Mas ele jamais
moveria ou arrumaria um fio.
— Clay
— disse ela, desaparecendo aos poucos. — Chegou a hora.
Mas
ele não queria abrir os olhos.
***
Enquanto
isso, um garoto dentuço que chamavam de Fuinha se retirou, e Rory,
como sempre, deu as caras. Toda vez que ele aparecia para relembrar
os velhos tempos era a mesma história.
Ele
entrou no vestiário caindo aos pedaços, e até Starkey interrompeu
os amassos quando o viu. Rory levou um dedo aos lábios, pedindo
silêncio. Bagunçou o cabelo de Tommy de um jeito quase hostil e
parou diante de Clay. Examinou o irmão com seus inestimáveis olhos
de sucata e seu sorriso casual.
— Ei,
Clay! — Ele não se conteve. — Ainda metido nessas merdas, é?
Clay
também sorriu para ele, não lhe restava outra opção.
Sorriu,
mas não olhou para o irmão.
***
— Prontos,
garotos?
Henry,
com o cronômetro em mãos, era quem dava o sinal.
Clay
se levantou, Tommy fez a pergunta; tudo parte do ritual. Apontou
casualmente para o bolso do irmão.
— Quer
que eu guarde pra você, Clay?
Clay
nada disse, mas não era preciso.
A
resposta era sempre a mesma.
Ele
nem balançou a cabeça.
***
Então
o grafite ficou para trás.
Eles
passaram pelo túnel.
Adaptaram-se
à luz.
Na
arena havia mais de vinte imbecis, metade de cada lado, para torcer
por eles. Imbecis torcendo por imbecis, que fantástico. Era o que
faziam de melhor.
— Vamos
lá, garotos!
As
vozes eram encorajadoras. As palmas também.
— Corre,
Clay! Derruba eles!
A
luz amarela persistia por trás da arquibancada.
— Não
precisa matar ninguém, viu, Rory?
— Acaba
com ele, Starkinho, seu filho duma égua!
Risadas.
Starkey parou.
— Ei!
— Com um dedo em riste, ele falou como um personagem de filme. —
Que tal eu acabar com vocês antes?
Para
filho duma égua ele não dava a mínima, mas Starkinho o
deixava furioso. Starkey olhou para trás e viu sua garota se
aventurar pelos bancos de madeira da arquibancada. Ela não tinha
nada que estar ali com aqueles arruaceiros; um arruaceiro já estava
de bom tamanho para ela. Ele botou o corpo robusto em movimento para
alcançar os outros.
Em
pouco tempo, todos estavam na pista, e logo os garotos do vestiário
se dispersaram. Os três primeiros eram Sumido, Maguire e Sininho:
dois com agilidade e força, o terceiro um paredão de tijolos no
caminho.
A
dupla na linha dos duzentos metros era Schwartz e Starkey, um deles
um perfeito lorde, e o outro um brutamontes profissional. O problema
de Schwartz, no entanto, era que, embora fosse um defensor ferrenho
da justiça, era impiedoso na competição. Depois, vinha com
sorrisos cheios de dentes e tapinhas nas costas. Mas, posicionado ao
lado da gaiola de lançamento de disco, era um trem em alta
velocidade que atropelava quem quer que estivesse em seu caminho.
***
Os
apostadores estavam em polvorosa.
Dispararam
até a última fileira da arquibancada, lá em cima, para enxergar o
campo todo.
Os
garotos na pista se preparavam:
Davam
soquinhos nos quadríceps.
Alongavam-se,
estapeavam os próprios braços.
Na
marca dos cem metros, cada um ia para a sua raia. Os meninos emanavam
uma aura incrível, as pernas iluminadas pelo sol poente ao fundo.
Na
linha dos duzentos metros, Schwartz balançava a cabeça. Cabelo
louro, sobrancelhas louras, olhos focados. Na raia ao lado, Starkey
cuspiu no chão. O bigode dele estava encardido e alerta, espichado.
O cabelo parecia um capacho. Mais uma vez, ele encarou os demais e
cuspiu.
— Ei!
— disse Schwartz, sem tirar os olhos da linha dos cem metros. — É
capaz de a gente ir parar nesse chão todo cuspido em dois segundos.
— E
daí?
E
então, por último, no fim da reta, a uns cinquenta metros da linha
de chegada, estava Rory, bem à vontade, como se momentos como aquele
fizessem sentido; porque era assim que tinha que ser.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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