segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Os idiotas


As paredes internas do vestiário exalavam tristeza, com um grafite amador nada menos do que vergonhoso. Sentado no chão, descalço, Clay não estava nem aí para isso. De frente para ele, Tommy tirava tufos de grama da barriga de Aurora, que se levantou e foi até Clay. Ele pousou a mão no focinho da border collie.
Dunbar.
Como era de se esperar, havia seis outros garotos, cada um em sua pequena área do grafite. Cinco deles conversavam e brincavam. Um desfilava com uma menina: o animalesco Starkey.
Ei, Dunbar — chamou ele.
Que foi?
Não você, Tommy, seu merdinha.
Clay ergueu os olhos.
Toma — disse Starkey, jogando um rolo de fita adesiva no garoto.
A fita bateu no peito de Clay e caiu no chão, indo parar na boca de Aurora em questão de segundos. Clay assistia à luta da cadela com o rolo enquanto Starkey tagarelava.
Nem adianta vir com suas desculpinhas esfarrapadas quando eu acabar com você lá fora. Aliás, tenho lembranças vívidas daquele seu truque de merda com fita adesiva, de quando a gente era mais novo. E tá cheio de caco de vidro lá fora. Não quero que você machuque seus lindos pezinhos.
Você disse vívidas? — perguntou Tommy.
Só porque sou pobre não posso falar bonito? Eu disse seu merdinha também, e caiu como uma luva pra você e sua laia.
Starkey e a garota riram, e por alguma razão Clay simpatizou com ela, notando seu batom e o sorriso malicioso. Ele também gostou da alça do sutiã caída, da forma como pendia no ombro, e não ligava para o que os dois estavam fazendo, se tocando e se pegando, a virilha dela na coxa de Starkey, uma perna de cada lado. Claro, ele tinha curiosidade, mas nada de mais. Para começo de conversa, ela não era nenhuma Carey Novac. Sem contar que aquilo não fazia parte da vida dele. Para os que estavam do lado de fora, os garotos ali eram como engrenagens de um lindo maquinário; entretenimento impuro. Para Clay, eram colegas com um propósito específico. Até que ponto conseguiriam machucá-lo? Até que ponto ele conseguiria sobreviver?

***

Ele sabia que logo iriam para a pista, então se recostou, fechou os olhos e imaginou Carey ao seu lado; o calor e a luz que emanavam dos braços dela. As sardas no rosto, furinhos — bem profundos e vermelhos, minúsculos — formando um diagrama, ou, melhor ainda, um desenho no estilo “ligue os pontos” dos livros infantis. No colo dela repousava o livro de capa desbotada que compartilhavam, com letras douradas e descascadas: O MARMOREIRO
O subtítulo dizia: Tudo que você sempre quis saber sobre Michelangelo Buonarroti — uma mina inesgotável de grandeza. Logo no começo do livro, um filete rasgado de uma folha faltando, a que trazia a biografia do autor. O marcador de página era um pule de uma aposta recente:

Royal Hennessey, Páreo 5
#2 Matador
Vitória: $1

Em seguida, ela se levantou e se apoiou nele.
Ela sorriu daquele seu jeito intrigante, de quem encara tudo de frente. Aproximou-se mais ainda e começou; encostou o lábio inferior no lábio superior dele, segurando o livro entre os dois.
— “Ele soube na mesma hora que este era o mundo, e que não passava de uma visão.”
Conforme ela recitava uma de suas passagens favoritas, sua boca encostava suavemente na dele — três, quatro vezes, cinco, até — e recuava de leve:
Sábado, então?
Ele assentiu, visto que sábado à noite, dali a apenas três dias, eles se encontrariam no mundo real, em outro campo abandonado, o favorito dele, um lugar chamado Cercanias. Lá, naquele lugar, passariam a noite em claro. O cabelo dela roçaria nele por horas. Mas ele jamais moveria ou arrumaria um fio.
Clay — disse ela, desaparecendo aos poucos. — Chegou a hora.
Mas ele não queria abrir os olhos.

***

Enquanto isso, um garoto dentuço que chamavam de Fuinha se retirou, e Rory, como sempre, deu as caras. Toda vez que ele aparecia para relembrar os velhos tempos era a mesma história.
Ele entrou no vestiário caindo aos pedaços, e até Starkey interrompeu os amassos quando o viu. Rory levou um dedo aos lábios, pedindo silêncio. Bagunçou o cabelo de Tommy de um jeito quase hostil e parou diante de Clay. Examinou o irmão com seus inestimáveis olhos de sucata e seu sorriso casual.
Ei, Clay! — Ele não se conteve. — Ainda metido nessas merdas, é?
Clay também sorriu para ele, não lhe restava outra opção.
Sorriu, mas não olhou para o irmão.

***

Prontos, garotos?
Henry, com o cronômetro em mãos, era quem dava o sinal.
Clay se levantou, Tommy fez a pergunta; tudo parte do ritual. Apontou casualmente para o bolso do irmão.
Quer que eu guarde pra você, Clay?
Clay nada disse, mas não era preciso.
A resposta era sempre a mesma.
Ele nem balançou a cabeça.

***

Então o grafite ficou para trás.
Eles passaram pelo túnel.
Adaptaram-se à luz.
Na arena havia mais de vinte imbecis, metade de cada lado, para torcer por eles. Imbecis torcendo por imbecis, que fantástico. Era o que faziam de melhor.
Vamos lá, garotos!
As vozes eram encorajadoras. As palmas também.
Corre, Clay! Derruba eles!
A luz amarela persistia por trás da arquibancada.
Não precisa matar ninguém, viu, Rory?
Acaba com ele, Starkinho, seu filho duma égua!
Risadas. Starkey parou.
Ei! — Com um dedo em riste, ele falou como um personagem de filme. — Que tal eu acabar com vocês antes?
Para filho duma égua ele não dava a mínima, mas Starkinho o deixava furioso. Starkey olhou para trás e viu sua garota se aventurar pelos bancos de madeira da arquibancada. Ela não tinha nada que estar ali com aqueles arruaceiros; um arruaceiro já estava de bom tamanho para ela. Ele botou o corpo robusto em movimento para alcançar os outros.
Em pouco tempo, todos estavam na pista, e logo os garotos do vestiário se dispersaram. Os três primeiros eram Sumido, Maguire e Sininho: dois com agilidade e força, o terceiro um paredão de tijolos no caminho.
A dupla na linha dos duzentos metros era Schwartz e Starkey, um deles um perfeito lorde, e o outro um brutamontes profissional. O problema de Schwartz, no entanto, era que, embora fosse um defensor ferrenho da justiça, era impiedoso na competição. Depois, vinha com sorrisos cheios de dentes e tapinhas nas costas. Mas, posicionado ao lado da gaiola de lançamento de disco, era um trem em alta velocidade que atropelava quem quer que estivesse em seu caminho.

***

Os apostadores estavam em polvorosa.
Dispararam até a última fileira da arquibancada, lá em cima, para enxergar o campo todo.
Os garotos na pista se preparavam:
Davam soquinhos nos quadríceps.
Alongavam-se, estapeavam os próprios braços.
Na marca dos cem metros, cada um ia para a sua raia. Os meninos emanavam uma aura incrível, as pernas iluminadas pelo sol poente ao fundo.
Na linha dos duzentos metros, Schwartz balançava a cabeça. Cabelo louro, sobrancelhas louras, olhos focados. Na raia ao lado, Starkey cuspiu no chão. O bigode dele estava encardido e alerta, espichado. O cabelo parecia um capacho. Mais uma vez, ele encarou os demais e cuspiu.
Ei! — disse Schwartz, sem tirar os olhos da linha dos cem metros. — É capaz de a gente ir parar nesse chão todo cuspido em dois segundos.
E daí?
E então, por último, no fim da reta, a uns cinquenta metros da linha de chegada, estava Rory, bem à vontade, como se momentos como aquele fizessem sentido; porque era assim que tinha que ser.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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