sexta-feira, 22 de setembro de 2023

O sorridente




Três... dois... um... Já!
Um clique do cronômetro, e Clay saiu em disparada.
Ultimamente, era assim que faziam; Henry adorava o momento da largada nas competições de esqui que via na TV e resolveu adotar o método.
Como de costume, Clay começou a contagem regressiva a certa distância da linha. Estava impassível, imperturbável, e os pés descalços pareciam prontos para voar. Pousaram tranquilos na linha na hora do já. Só quando começou a correr foi que sentiu duas lágrimas, pungentes e ardidas, se avolumarem nos olhos. Foi aí que cerrou os punhos; estava pronto para a brigada de imbecis, para aquele mundo estupendamente adolescente. Ele nunca mais o veria ou faria parte dele.
A grama sob seus pés balançava de um lado para outro, ávida por sair de seu caminho. Até o ar que ele respirava parecia louco para escapar dali. Ainda assim, seu rosto nada demonstrava, apenas os dois trajetos arqueados das lágrimas, secando conforme ele fazia a primeira curva e se aproximava de Sumido, Maguire e Sininho. Dunbar sabia como feri-los. Podia ter dois braços e duas pernas, mas era como se tivesse uns mil cotovelos.
É agora.
Como se combinado, convergiram.
Clay foi recebido na raia quatro por suor tóxico e axilas; suas pernas continuaram correndo, cortando o ar. A vantagem, de um jeito ou de outro, era dele. A mão direita entrou na jogada, então um joelho, e ele empurrou Maguire para trás; esquivou-se do rosto de Sumido, e pouco depois só restou a Clay a visão embaçada do pobre garoto, que ele derrubou em seguida, sem dó nem piedade.
Àquela altura, o rechonchudo Brian Bell, também conhecido por Sininho, ou pelo apelido menos usado de Senhor Roliço, entrou em cena com um ataque voraz. Era punho atravessando garganta, peitoral batendo nas costas. Com um sussurro quente e rouco, o garoto soltou um “te peguei”. Clay não gostava que sussurrassem coisas em seu ouvido e pouco se importava com um “te peguei” qualquer, e não demorou muito para que um saco deprimente de carne se estatelasse no gramado. Um saco com uma orelha sangrando.
Merda!
Clay já tinha sumido de vista.
Sim, Sininho ficou para trás, mas os outros dois voltaram para a pista, um lesionado, outro, inteiro; não deram conta. Clay se soltou. Seguiu a passos largos. Dominou a reta.

***

Então ele encarava mais dois adversários, que não o esperavam tão cedo.
Schwartz se preparou.
Starkey cuspiu de novo. O garoto era uma maldita fonte de saliva. Uma gárgula!
Vem!
Era a criatura na garganta de Starkey que falava, chamando para a briga, aos gritos. Ele já deveria saber que Clay não se sentiria ameaçado ou perturbado. Ao fundo, os primeiros três garotos estavam encolhidos, não passavam de borrões na cena, conforme Clay fazia a curva aberta e mudava de raia. Sua atenção estava voltada para Starkey, que já não cuspia mais, apenas se aproximava, a tempo de enganchar um dedo na costura do short de Clay; e então, é claro, veio Schwartz.
O garoto cumpriu a promessa e atropelou Clay.
O expresso dos 2’13”.
Sua franja arrumadinha foi jogada para trás quando ele soterrou Clay sem piedade entre a raia um e o gramado, e Starkey deu uma ajudinha com os joelhos e os pelos faciais, que arranharam a bochecha de Clay. Até beliscões Starkey deu, conforme os garotos chutavam e arrancavam pedaços uns dos outros em meio a sangue, empurrões e o bafo de cerveja de Starkey. (Coitada da garota na arquibancada.)
Mais parecia que estavam sufocando, os corpos se debatendo no chão.
De longe, talvez de quilômetros de distância, veio uma reclamação da arquibancada.
Não tô vendo merda nenhuma!
Se eles continuassem na área interna do campo, os torcedores teriam que descer até a vala.
Estavam atracados no meio do gramado do parque Bernborough, mas Clay sempre dava um jeito. Para ele, não havia vitória, derrota, uma marca de tempo ou dinheiro. Por mais que o machucassem, nunca conseguiriam machucá-lo. Por mais que o segurassem, nunca conseguiriam segurá-lo. Ou, pelo menos, nunca conseguiriam machucá-lo de fato, não o bastante.
Segura o joelho dele!
Uma sugestão prudente de Schwartz, mas chegou tarde demais. Um joelho livre significava Clay livre, e ele conseguiu se desvencilhar, saltar os cem quilos a seus pés e acelerar.

***

A torcida vibrava, assoviava.
Uma horda de apelidos desmoronou da arquibancada para a pista. Àquela distância, os gritos eram quase inaudíveis — como os sons do vento sul que volta e meia batiam à sua janela, à noite —, mas estavam presentes, assim como Rory.
Por cento e cinquenta metros, Clay teve toda a superfície ocre para si. O coração dele ressoava, as linhas de lágrimas ressequidas rachando.
Ele correu rumo à luz hostil, aos raios corpulentos e teimosos.
Observou a própria marcha ao longo do saibro.
Ele corria para os gritos da torcida, para os garotos que clamavam por ele na beira da arquibancada. Em algum lugar ali estava a garota de lábios vermelhos e ombros rebeldes e despreocupados. Não havia malícia nesse pensamento, apenas uma noção familiar de diversão. Ele pensou nela deliberadamente, porque sabia que o sofrimento se aproximava. Não importava se era o tempo mais rápido que fizera até então. Nada. Não significava nada, porque ali, a cinquenta metros da linha de chegada, Rory o aguardava feito um rumor.

***

Quanto mais perto chegava, mais Clay tinha certeza de que precisaria ser categórico. Hesitar seria sua ruína. A inibição poderia matá-lo. Pouco antes de se enfrentarem, na extremidade direita de seu campo de visão, ouviu gritos variados de vinte e quatro garotos. A arquibancada praticamente veio abaixo com o vislumbre de Rory à frente. Ele costumava ser bruto e cruel.
E Clay?
Ele lutou contra todos os impulsos de dar um passo para o lado, fosse para a esquerda ou para a direita. Praticamente escalou o homem à sua frente e de alguma forma chegou ao outro lado. Ele sentiu a anatomia do irmão: o amor e a adorável raiva. Garoto e chão colidiram, e um pé foi agarrado. O braço travado em seu tornozelo era a única coisa que separava Clay de algo considerado inatingível havia muito tempo. Não dava para ultrapassar Rory. Nunca. Contudo, lá estava ele, arrastando-o. Virando-se para trás e tentando se desvencilhar. O braço de Clay enrijeceu, e, a um ou dois palmos de seu rosto, a mão de Rory emergiu das profundezas feito um titã. Em um aperto de mãos perverso, ele esmagou os dedos de Clay sem sequer fazer força, e assim o levou ao chão.
A dez metros da chegada, Clay se estatelou na pista. Como lidar com a leveza de Rory? Era um paradoxo. Ele era conhecido por ser um rolo compressor, o que sugeria um peso intolerável, mas o garoto mais parecia uma névoa. Você se virava, e lá estava ele, e quando você tentava pegá-lo, já não restava mais nada. Ele já estava em outro lugar, aterrorizante como sempre. As únicas coisas que tinham massa e peso nele eram a profundidade e a ferrugem de seu cabelo, e aqueles olhos densos de um cinza metálico.
Ele conseguiu prender Clay de jeito. As vozes dos garotos e do céu fechado desciam e os alcançavam.
Vai, Clay! São só dez metros, você tá quase lá!
Tommy:
O que Zola Budd faria, Clay? O que o Escocês Voador faria? Tem que lutar até a linha de chegada!
Aurora latia.
Henry:
Rory não deixa barato mesmo, hein?
Rory encarou o irmão e sorriu com os olhos, enigmático.
Outra voz não Dunbar, para Tommy:
Que merda é essa de Zola Budd? E de Escocês Vaiador?
Voador.
Grandes merdas!
Podem fazer o favor de calar a boca? Tem uma briga acontecendo ali na frente!
Geralmente era assim que a contenda se configurava.
Os garotos se demoravam, acompanhando cada lance, em parte desejando ter a mesma coragem para brigar daquele jeito, mas ao mesmo tempo gratos por não terem. O falatório era uma medida de segurança, pois havia algo de abominável entre aqueles meninos engalfinhados na pista, a respiração e os pulmões estraçalhados.
Clay se contorcia, mas Rory não saía de cima.
Somente uma vez, passados longos minutos, ele quase se libertou, até viu a linha de chegada, praticamente sentiu o cheiro da tinta, mas foi recapturado pelo irmão.
Oito minutos — anunciou Henry. — Ei, Clay, não acha que já deu pra você, não?
Os meninos formaram um círculo inevitável e turbulento em volta dos irmãos; sabiam demonstrar respeito. Caso alguém sacasse um celular para filmar ou tirar foto, seria escorraçado.
Ei, Clay! — chamou Henry, um pouquinho mais alto. — Já deu, né?
Não.
Foi o que ele disse, como sempre, sem dizer nada, porque ainda não estava sorrindo.
Nove minutos, dez, logo chegaram à marca dos treze, e Rory considerou esganá-lo; mas então, perto da marca de quinze minutos, Clay finalmente relaxou, jogou a cabeça para trás e abriu um sorriso largo e relaxado. Como se fosse um prêmio de consolação, por entre as pernas deles, Clay viu a garota lá em cima, na sombra, com a alça do sutiã e tudo, e Rory suspirou, aliviado.
Graças a Deus.
Tombou para o lado e assistiu enquanto Clay — devagar, com uma das mãos boa, a outra sem forças — se arrastava pela linha de chegada.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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