Este
é um capítulo importante.
Pelo
menos, eu acho que é.
Os
hematomas no meu rosto sararam muito rápido, e passei toda a fase
seguinte da minha vida andando por aí. Uma coisa estava para
acontecer. Estava lá fora, em alguma parte além da vidinha limitada
de sempre. Estava lá fora; não que me esperasse, mas existia. Era.
Talvez estivesse só imaginando se eu ia alcançá-la.
Talvez
eu esteja apenas falando besteira.
Tanto
faz.
O
que aconteceu foi que conheci uma garota quando estava trabalhando
com papai durante o sábado.
Ela
valia a pena, sério.
Eu
tinha passado a manhã inteira cavando uma fossa debaixo da casa,
dessa vez, em um bairro que ficava a uns cinco quilômetros do nosso,
e estava morto. Morto na hora do almoço.
Tinha
sujeira no corpo todo, e meu pescoço estava esticado e rígido de
ficar curvado, cavando. Quando saí da parte de baixo da casa, ela
estava lá. Estava lá com a mãe e o pai, e era tão real que quase
engasguei com a boca seca. Tinha a minha altura e um rosto calmo e
real. Sorriu para mim com lábios reais, e a voz real me disse “Oi”
quando nos encontramos.
Limpei
a mão direita na calça e cumprimentei todos eles. Mãe. Pai.
Garota.
— Meu
filho, Cameron — falou papai quando me arrastei para longe, tirando
a terra do cabelo. Até parecia que ele gostava um pouco de me ter
por perto.
— Bom-dia
— falei, quando ergui os olhos para eles, e papai meio que levou os
pais dela para dar uma volta e ver o que tínhamos feito na
propriedade. Eles estavam fazendo umas ampliações bem grandes que
bagunçaram um pouco o terreno. Mas era uma bela casa.
A
garota.
— Rebecca
— tinha me dito a mãe.
Enquanto
papai dava a grande volta, fiquei sozinho com ela.
O
que eu devia fazer? Falar? Esperar? Sentar? No fim, tudo que fizemos
foi ficar ali de pé um pouco e depois sentar numa dessas cadeiras
dobráveis. Desviei os olhos, olhei para ela e os desviei de novo.
Que
animal.
Eu
tinha mesmo jeito com as damas, não é? Finalmente, quando era quase
tarde demais, e os coroas estavam voltando, falei para ela com uma
voz baixa e surtada: “Eu gosto de trabalhar aqui”, e, depois do
silêncio, nós dois rimos um pouco e pensamos Que coisa esquisita de
se dizer. Eu gosto de trabalhar aqui. Eu gosto de trabalhar aqui. Eu
gosto. Trabalhar aqui. Eu. Gosto de trabalhar aqui.
Enquanto
repetia isso mentalmente, ficava imaginando se ela sabia o que
realmente significava.
Acho
que sabia.
Rebecca.
Era
um belo nome, e, embora eu gostasse da tranquilidade do rosto dela,
gostava mais ainda da voz. Me lembrava dela e a deixava cantar
através de mim.
Só
aquele “Oi”. Patético, eu sei, mas, quando a sua experiência
com mulheres é tão pequena quanto a minha, você aproveita o que
tem.
Isso
durou toda a tarde. E nem tinha tanta dor assim no trabalho que eu
fazia, porque eu tinha Rebecca agora. Tinha a voz dela, e a realidade
daquilo para entorpecer tudo. Entorpeceu as bolhas que se formavam na
base dos dedos e amaciou a pá que castigava minha espinha.
— Oi
— dissera ela. — Oi. — E tinha rido comigo, quando eu disse
alguma coisa tola. As garotas já tinham rido de mim, mas era raro eu
rir com uma delas. Era raro me sentir bem com uma cidade sobre os
ombros e o rosto de uma garota tão perto do meu. Ela respirava e via
as coisas, e era real. Essa era a melhor parte. Era mais real que a
auxiliar de dentista, porque não estava atrás de um balcão, sendo
paga para ser simpática. E, com certeza, era mais real que as
mulheres daquele catálogo, porque não dava para fazer picadinho
dessa garota. Eu nunca ousaria machucá-la, xingá-la ou escondê-la
debaixo da cama.
Olhos.
Olhos vivos. Cabelo claro descendo pelas costas. Uma espinha na
lateral do rosto, perto do cabelo. Pescoço e ombros bonitos. Não
era uma rainha da beleza.
Não
uma daquelas. Você sabe, aquelas.
Era
real.
Ela
tocou música depois, e não era algo de que eu gostasse, mas isso a
tornou ainda mais real. A situação toda até me fez sorrir para o
papai, quando ele me deu uma bronca por cavar no local errado.
— Desculpa,
pai — falei.
— Cave
ali.
Fico
imaginando se ele sabia. Duvido. Pareceu não entender nada quando
perguntei se voltaríamos na semana seguinte.
— Claro,
voltaremos — respondeu, curto e grosso. Um pouco depois, perguntei:
— Qual é o sobrenome dessa gente? — Conlon.
Rebecca
Conlon.
O
que mais me impressionou é que, de repente, comecei a rezar. Comecei
a fazer orações por Rebecca Conlon e a família dela. Não
conseguia parar.
— Por
favor, abençoe Rebecca Conlon — ficava pedindo a Deus. — Faça
com que ela fique bem, certo? Faça ela e a família dela ficarem bem
hoje à noite. É só o que peço. Em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. — E fazia o sinal da cruz como os católicos
fazem, e nem sou católico. Não sei o que sou.
Na
semana seguinte, continuei rezando e continuei me esforçando para me
lembrar do rosto, da voz dela.
— Eu
seria bom para ela — continuei dizendo a Deus. — Seria.
Na
verdade, estava dividido entre o amor que sentia pelo rosto e pelo
corpo dela e o amor que tinha pela voz dela. O rosto tinha muita
personalidade. Força. Eu adorava.
E,
com certeza, adorava o pescoço e a garganta, e os ombros, os braços,
e as pernas dela. Tudo isso, e então tinha a voz.
A
voz vinha de alguma parte dela. Vinha de alguma parte que não se
mostrava, eu esperava, para qualquer um.
A
pergunta era: Em qual parte dela eu estava mais interessado? Era na
aparência ou na realidade interior que eu podia sentir saindo
sorrateiramente? Comecei a dar caminhadas, só para pensar nela, só
para imaginar o que estava fazendo, e se, por acaso, estava pensando
em mim.
Virou
uma tortura.
— Deus,
ela está pensando em mim? — perguntei a Deus.
Deus
não respondeu, então eu não sabia. Sabia apenas que andava
paralelo ao trânsito, que ria ao passar por mim. Multidões desciam
do ônibus e trens me ignorando ao caminhar. Não importava. Eu tinha
Rebecca Conlon. Nada mais tinha importância para mim. Mesmo ao
voltar para casa, quando discutia com Rube, eu não me preocupava.
Continuava
a não me preocupar porque ela estava em algum lugar perto de tudo
isso no meu pensamento.
Alegria.
Era
isso que eu sentia? Algumas vezes.
Outras
vezes, era invadido por pensamentos de dúvida e um tipo de verdade
que me dizia que ela não tinha pensado em mim. Era possível, pois
as coisas nunca acontecem do jeito que devem. Era muito provável que
uma garota doce como aquela pudesse arrumar coisa melhor que eu.
Podia arrumar coisa melhor que um cara que planejava assaltos
ridículos com o irmão, era despedido de bancas de jornal e
humilhado pela mãe.
Algumas
vezes, eu pensava nela nua, mas nunca durante muito tempo. Não
queria ela só para isso. Sério.
Eu
queria encontrar o local de onde vinha a voz dela. Era isso que
queria. Queria ser bom para ela. Queria agradá-la, e suplicava para
isso acontecer. Suplicar, porém, não leva a lugar nenhum. Sabia que
era verdade, mas fazia isso em meu íntimo, de qualquer forma,
enquanto contava as horas até voltar para ela.
Coisas
aconteceram durante a semana que se seguirá nos próximos capítulos,
mas agora eu devo contar no fim deste o que aconteceu quando papai e
eu aparecemos na casa dos Conlon no sábado seguinte.
Foi
isso que aconteceu.
Meu
coração bateu forte.
Uma
delas voltou.
Dá
pra acreditar? Que cara de pau.
Sabe
do que estou falando? É uma das mulheres daquele catálogo de roupa
de banho, e ela vai atrás de mim na cozinha.
Sedutora.
Está
bolorenta e meio escurecida. Suada.
— Olá,
Cameron. — Ela continua caminhando e puxa uma cadeira para se
sentar bem na minha frente. Nossos joelhos se tocam, ela chega perto
de mim desse jeito. O sorriso dela significa alguma coisa.
Perigo?Desejo?Erotismo? Como posso sonhar com isso agora? Hoje à
noite? Depois de tudo que aconteceu ultimamente? Só posso estar de
brincadeira comigo mesmo.
Será
que é um teste? Bem, seja lá o que for, ela se curva na minha
direção e lambe os lábios. A roupa de banho é um biquíni, que é
amarelo e mostra muita coisa do corpo dela. Dá para acreditar? Deixa
um dos dedos tocar meu pescoço, deslizando-o por ele, e a unha é
leve o suficiente para não arranhar. É suave, e alguma coisa me diz
para aproveitar ao máximo, para não deixá-la parar. Então, alguma
outra coisa grita, em alguma parte, aos meus pés, e tenho que lhe
pedir que pare. Sobe.
Ela
está em cima de mim. Respirando.
Sinto
o perfume e o movimento delicado do cabelo dela. Suas mãos começam
a me despir e a boca toca a minha. Eu sinto. Aproximando. Empurrando.
Na minha direção.
Ela
desce, deixando os dentes tocarem apele do meu pescoço. Me beija,
por muito tempo, com a língua tocando... Dou um salto.
— O
quê? Estou de pé.
— O
quê? — pergunta. Ohh...
— Não
posso. — Seguro a mão dela para dizer a verdade. — Não posso.
Simplesmente, não posso.
— Por
que não? Os olhos são de um azul forte, e quase deixo que continue,
quando começa a acariciar minha barriga, buscando as outras partes
do meu corpo. Faço-a parar, bem na hora, fico imaginando como
consegui.
Me
afasto e respondo: — Eu tenho alguém real. Alguém que não é só…
— Só
o que...
Verdade:
— Uma coisa que eu só deseje.
— É
só isso que sou? Uma coisa? — Sim. — Vejo a mudança.
Ela
parece um fantasma e quando estendo a mão para tocá-la, minha mão
a atravessa.
— Sabe
— explico — olhe para mim. Um cara como eu não pode realmente
tocar alguém como você. É assim que as coisas funcionam.
Quando
ela desaparece completamente, percebo que minha realidade não é a
garota do catálogo ou a rainha da beleza da escola ou alguém assim.
A
modelo usando roupa de banho deixara a bomba sobre a mesa. Vou
pegá-la, mas não a abro por medo de explodir no meu rosto.
A
rainha da beleza que eu desejo.
A
garota real que desejo agradar.
Sonho
completo.
Markus Zusak, in O Azarão
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