Humor
envelhece. Quando a Companhia das Letras me chamou para escrever
sobre o Millôr, tremi nas bases. E se ele tiver envelhecido? Essa
parte da vida é triste. Depois de morrer, a gente continua
envelhecendo. Ou melhor, as pessoas continuam envelhecendo. A gente,
por não envelhecer junto, acaba perdendo o vigor, saindo do tom,
soando repetitivo de tanto que já nos repetiram. E se o Millôr,
nosso humorista mais inteligente e mordaz, tiver ficado obsoleto? Já
aconteceu com outros, tão bons quanto ele. Já não assistimos aos
filmes de Oscarito e nem ouvimos os programas da PRK30. Humor passa.
Mais rápido do que o drama. Seu material é a sociedade atual, e ela
muda o tempo todo.
Breve
flashback. Tinha oito anos quando percebi que o Papai Noel que
frequentava minha casa uma vez por ano parecia demais com meu avô, e
os dois nunca estavam na sala ao mesmo tempo. Fui o último dos
primos a perceber. Decepcionei-me duplamente: o Papai Noel não
existia e eu fui estúpido o bastante para acreditar nele.
Passei
a duvidar de tudo. Como saber se a Vovó Mafalda existe? Como saber
se a Vovó Mafalda não é o meu avô? E o chão? O fogo? Logo
percebi que o fogo existia, quando me queimei. Na falta de prova
melhor, passei a acreditar cegamente nos meus sentidos (depois deixei
de acreditar, quando usei drogas. Mas isso foi muito depois).
Não
demorei a duvidar da existência de Deus. Ele se parecia com meu avô.
Mais do que a Vovó Mafalda. E ao contrário da Vovó Mafalda, que
estava na televisão ao mesmo tempo que meu avô estava na poltrona,
eu nunca tinha visto Deus e o meu avô ao mesmo tempo, no mesmo
lugar. Pra falar a verdade, eu nunca tinha sequer visto Deus. Será
que, assim como Papai Noel e Vovó Mafalda, pensei, Deus é só um
velhinho que inventaram pra gerar lucro?
Talvez
tenha sido pra aplacar essa dúvida que ganhei de presente um livro
chamado A Bíblia para crianças. Gostava muito de ler e
lembro que devorei aquelas páginas com a mesma avidez dedicada aos
meus livros preferidos. No entanto, ao contrário de Convenção
das bruxas e O grande amor do pequeno vampiro, aquela
história pecava por não ter coerência interna. Por que Deus criou
o mundo e só depois criou a luz? Não era mais fácil ter feito o
contrário? Os filhos de Adão e Eva eram irmãos? E tiveram filhos?
Não é pecado? Procurei em vão pelo nome do autor, para lhe
escrever uma carta. Não havia nenhuma menção ao autor, somente ao
ilustrador, o que não me servia de nada. Pensei que talvez o
protagonista pudesse me esclarecer alguma coisa.
Resolvi
convocá-lo. Lembro-me como se fosse ontem. Fui até a janela do
quarto e pensei bem forte: “Aparece, se você existe”. Nada.
“Vai, só pra mim, eu não conto pra ninguém.” Repeti em voz
alta: “Aparece, cara”. Quem sabe, se eu disser as palavras
mágicas, ele vem. “Por favor. Eu estou pedindo por favor.” Nada.
Passei
um bom tempo inconsolável. Ou bem Deus não existia, ou não estava
nem aí pra mim. Ou ambas as coisas. Não, ambas as coisas não era
possível. O fato é que o mundo ficou com uma lacuna impreenchível.
Por que isso tudo? Pra que isso tudo? O que é isso tudo? O que vem
depois disso tudo?
Foi
por acaso (será?) que topei com um livro chamado A Bíblia do
caos. O título me interessou, embora não soubesse o que é
caos. Ou talvez por isso mesmo. O título era mais convidativo do que
A Bíblia para crianças ou A Bíblia Sagrada. E
embaixo do título, estava escrito: Millôr Definitivo. Pelo menos o
autor dessa bíblia tinha coragem de assiná-la.
Logo
na primeira página, percebi que aquilo, sim, era um livro que
explicava o mundo. “Viver é desenhar sem borracha.” Em cada
verbete, Millôr revelava verdades subversivas. “O pessimista é um
sujeito que acerta duas vezes: quando acerta e quando erra.” E,
finalmente, a frase que me arrebatou: “Se Deus existisse, já teria
me convencido”.
Usei
o livro de todos os jeitos. Decorava as frases, uma por uma. Fazia
perguntas e abria o livro numa página aleatória, como se faz com o
I Ching. Anotava uma frase no caderno e assinava Gregorio
Duvivier, só pra sentir como seria ter escrito uma frase dessas.
Um
dia, minha mãe me apresentou para um senhor careca, atlético, de
nariz grande e olhos vivos. “Esse é o Millôr”, ela disse. “O
definitivo?”, perguntei. Ele não se parecia com Deus. Faltavam a
barba e a cabeleira. Mas ele pelo menos existia. Decidi, desde então,
que só ia venerar um Deus que frequentasse a minha casa.
E
assim foi. Pelo menos um domingo por mês, o Millôr almoçava na
varanda lá de casa, acompanhado de sua inseparável companheira Cora
Rónai. Almoçavam também minhas incontáveis tias, primos, e outros
artistas e jornalistas agregados. Mas eu só tinha olhos para o
Millôr. Todo o mundo só tinha olhos para o Millôr.
Qualquer
assunto que se apresentasse, o Millôr matava no peito e chutava de
voleio, no ângulo. Ele falava tão bem quanto escrevia: com gestos
largos e voz baixa, chiando no s, carioquíssimo. Tinha um vício de
linguagem: suas frases eram concluídas pela expressão “você
entende?”. Era desnecessário. Todos já tinham entendido. E
concordado. Quer dizer, nem sempre. Lembro de um dia em que ele
discursava, veemente, contra a ciclovia. Era pequeno e não entendi
nada. Perguntei à minha mãe, recentemente, o porquê desse ódio.
Ela disse que não fazia a menor ideia. Mas era engraçado.
Vivemos
tempos obscuros. Talvez Millôr tenha sido o primeiro a ver aquilo
que ele chamava de “escuridão no fim do túnel”. O aumento de
informação não significa uma melhor qualidade de informação. O
humor ficou mais iconoclasta, graças a Deus (quer dizer, apesar
d’Ele), mas não melhor. O mesmo vale pro jornalismo. Sua carteira
de trabalho, que lhe atribuía, na época, sessenta anos de
jornalismo, já não valeria de nada. Qualquer um é jornalista.
Qualquer um é produtor de conteúdo. Isso é ótimo. Mas é
perigosíssimo.
Outro
dia, vi um humorista usando o Millôr pra defender o politicamente
incorreto e o “humor sem limites” (esse é um dos problemas de
morrer, você continua sendo usado por aí). Não sei se o Millôr
concordaria com isso. Apesar de ter sofrido com a censura e as
patrulhas, tanto de esquerda como de direita, Millôr era bastante
responsável politicamente. “Quem se curva aos opressores mostra a
bunda aos oprimidos.” Acho difícil que, em seu incontável rol de
piadas, encontrem-se piadas racistas, por exemplo. Não estou dizendo
que é impossível. Estou dizendo que é improvável. Tampouco o vejo
alegando, em sua defesa, que determinada piada “é só uma piada”.
A piada é o seu material de trabalho, e não há nada de pequeno
nisso. Uma piada, para o Millôr, é enorme. Trata-se de uma arma e
ele sabia disso melhor que ninguém. “O humorista é um sujeito que
tem importância suficiente pra ser preso mas não o bastante pra ser
solto.”
Ao
ler Tempo e contratempo, não se deixe enganar. Seu texto
frequentemente mimetiza a linguagem da infância. Seu traço parece
naïf. O próprio título é um trocadilho bobo, assinado por um
alter ego pueril. Mas por trás de Emmanuel Vão Gôgo, em cada
página, se esconde Millôr Fernandes, nosso humorista mais cético.
Em cada verbete desta enciclopédia humorística, a roupagem ingênua
esconde um olhar subversivo sobre o mundo, mas também profundamente
poético. E afetivo. O olhar de Vão Gôgo é o de quem vê o mundo
pela primeira vez. E gosta dele. Assim como o pequeno Nicolau, de
Goscinny, Vão Gôgo é uma criança que tenta entender o mundo,
maravilhado. E a gente, que achava que entendia o mundo, percebe que
não tinha entendido nada.
Gregório Duvivier, in Put some farofa
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