Atordoado.
Foi
como ele ficou, porque ela saiu da sala de embarque e o cumprimentou
com um beijo no rosto. Casados há sete anos. Beijo no rosto?
Que
afronta.
Que
falta de cuidado.
Que
bandeira.
Não
comentaram o assunto. Mas o olhar dela não procurou o carro, e sim o
olhar dele. Portanto, é lógico que ela também se surpreendeu com a
afronta, a bandeira, o gesto exageradamente burocrático.
Há
uma semana viajando. Seu marido a busca no aeroporto. De surpresa.
Espera na calçada. O carro em frente, o risco de ser multado. E como
ela agradece? Com um beijo no rosto, seco e inaudível.
Caminharam
para o carro resumindo as prioridades:
“Não
esqueceu de nada?”
“Pagou
o IPVA atrasado?”
“Tem
bateria no seu celular?”
“Ligou
para o seu pai no aniversário dele?”
Desceram
a 23 de Maio em silêncio. Há nove anos eles se conhecerem. Há sete
se casaram. Há meses eles mal se encostavam. Ela sempre dormia
antes. Desde quando se conheceram, ela dormia antes. Um hábito que
não levava em conta quem acordaria primeiro no dia seguinte.
Ultimamente,
ele entrava no quarto, e ela já dormia de costas, com a cabeça
longe.
No
começo do namoro, iam para a cama com uma regularidade que irritava
os amigos, quando as comparações eram trazidas à mesa.
Nas
viagens para a casa alugada na praia, causava admiração constatar
que os novos namorados não saíam do quarto. Nem para o pôquer com
feijão.
Claro
que com o casamento a frequência caiu.
Às
vezes, uma semana sem transar.
Cíclico:
havia semanas em que não se desgrudavam, meses em que não se
tocavam, viagens em que dormiam em camas separadas, férias em que
ficavam colados como um cometa e a cauda. Então, as estatísticas
atolaram num pântano perigoso: duas vezes por mês; uma vez por mês.
A quantidade reflete a qualidade de um casamento? Qual é o ideal, se
é que existe?
Quando
os encontros passaram para a média de uma vez por mês, o alarme
tocou. Não conversaram sobre isso. Ela era a mesma linda sedutora de
antes. Daquelas que envelhecem com metamorfismo: sai a casca juvenil,
e se liberta a mulher feita.
Ele
até emagreceu depois de muito esforço e de começar a correr junto
com ela. Por que não transavam mais se eram os mesmos que se
apaixonaram no primeiro encontro?
Porque
não eram mais os mesmos.
Só
na avenida Brasil ele voltou a falar. Perguntou como foi a viagem.
Demorou tudo isso, porque temia a resposta. Se ela dissesse “foi
ótima”, estava esclarecido o beijo no rosto; foi muito melhor do
que ficar com você, naquela nossa rotina de merda, na nossa casa em
que nem trepamos mais, até encontrei um pescador meio índio que me
virou literalmente do avesso e me fodeu como um reprodutor sobe numa
égua.
Mas
ela não respondeu e acendeu um cigarro, olhou através da janela.
Ele se irritou. A sua indiferença ante o tornado de pensamentos e
ódio e medo e indecisões que se formava assustava. E depois ela
fumava para irritá-lo. Ele tinha parado de fumar seguindo um pacto
de ela o seguir, mas ela, que fumava só eventualmente, e não como
ele, viciado compulsivo, não cumpriu o combinado.
De
raiva, ele ligou o rádio na estação de rock e aumentou no punk dos
Ramones, que dançou tanto na adolescência. E cantou:
“We’re
a happy family, me mom and daddy, sitting here in Queens, eating
refried beans…”
“Baixa
um pouco, vai”, ela pediu.
“Por
quê?”
“Abaixa…”,
ela adocicou a voz.
Obedeceu.
Sempre
a obedecia quando ela pedia docemente.
Ela
deve estar pensando no nativo deitado sobre ela, pescando para ela,
subindo em coqueiros para trazer um coco fresco, cabulando os
seminários que sua empresa organizou, dançando lambada, agarrada
num cara cuja cintura mexe mais do que um peixe tirado da água,
enquanto o otário aqui…
Na
avenida 9 de Julho, ele resolveu jogar duro:
“Não
vai falar como foi a viagem?”
“Cansativa.
Desculpe. Estou exausta.”
Ele
esperava qualquer resposta. Menos cansativa. Cansativo é ficar neste
inferno de cidade do caos. Ninguém se cansa num resort numa ilha
baiana, a não ser que se envolva com um nativo e se canse de tanto
sexo, sexo que já não pratica em casa.
“Você
sabe há quanto tempo não trepamos?”, ele perguntou.
Ela
assoprou a fumaça no rosto dele, jogou a bituca pela janela e
respondeu ligeiramente blasé:
“Você
fez as contas, é?”
“Fiz.
Sabe?”
“Quanto?”
“Três.”
“Semanas?”
“Meses!”
“Três
meses? E isso é muito ou pouco?”
“Muito.”
“Você
quer parar naquela praça agora? Já!”
“A
questão não é essa.”
“E
qual é?”
“Por
que não transamos mais como antigamente?”
“Não
sei. Por quê?”
Devolver
a pergunta foi a resposta mais eficaz.
“Isso
mesmo, por quê?”
Afinal
não era só dela a culpa, se é que culpa seja o termo a ser
empregado. Cabulando… Ele riu de ter pensado neste verbo tão
escolar. Precisa se lembrar de contar ao terapeuta que no meio de uma
DR apareceu a expressão “cabulando os seminários”.
“Por
que casais param de transar?”, ele perguntou.
“Não
sei. Por quê?”
“Tesão
acaba.”
“Acaba?”
“Acabou?”
“Não.
Sei lá. Acho que não. Acabou?”
O
carro parou no congestionamento. Ele pegou um cigarro da bolsa dela.
Acendeu no acendedor do carro. E disse, sereno:
“Acho
que o casamento acabou. E o tesão foi consequência. Tudo o que
tinha de bom ficou no passado. Por isso a gente não transa mais. O
presente é só ‘quem paga o IPVA’, ‘ligou para o seu pai?’.
Rotina.”
“Você
quer se separar.”
Ele
tragou e a imitou devolvendo a pergunta:
“Você
quer?”
“Porque
a gente não trepa mais.”
“Não
é um bom motivo?”
“É.
Que chato. Acabar um casamento por causa de sexo.”
“Da
falta de”, ele corrigiu.
“Sem
sexo, não dá, né?”
“É
um sintoma. O primeiro que aparece.”
“Sintoma?”
“De
que as coisas não andam bem.”
“E
se as coisas não andam bem, é melhor parar.”
“É.
Acho que é. Não sei. É?”
Embicou
na garagem. O portão se abriu. Entrou com o carro em marcha lenta,
até encontrar uma vaga no final, no canto da lâmpada queimada há
dias.
Ele
desligou o carro.
Olhou
para ela.
Escorria
uma lágrima do seu rosto.
Ele
a abraçou.
Beijaram-se.
Ela
desatou o cinto e se sentou no colo dele.
Ele
inclinou o encosto do banco para trás.
Não
mais atordoado.
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz
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