Madona do Prado (1506), de Rafael
Tornando-se
cada vez mais pobre no conteúdo e cada vez mais incompreensível na
forma, a arte nas suas manifestações mais recentes perdeu todas as
propriedades de arte e foi substituída por um simulacro desta.
Como
se não fosse suficiente que, devido à sua separação da arte do
povo, a arte da alta classe tenha se tornado pobre em conteúdo e má
na forma — isto é, mais e mais incompreensível —, ela cessou
mesmo de ser arte, no curso do tempo, e foi substituída por
falsificações de arte.
Isso
aconteceu pelas razões explicadas a seguir. A arte do povo emerge
somente quando um homem do povo, tendo vivenciado um forte
sentimento, tem necessidade de transmiti-lo a outros. A arte da
classe rica emerge não por necessidade do artista, mas
principalmente porque as pessoas dessa classe exigem divertimentos,
que são muito bem remunerados.
As
altas classes exigem que a arte transmita sentimentos agradáveis a
elas, e os artistas tentam satisfazer essas exigências.
Mas
satisfazê-las é muito difícil, pois essas pessoas, que levam uma
vida de ócio e luxo, requerem da arte divertimento contínuo, ao
passo que é impossível produzir arte à vontade, até a do tipo
mais baixo — ela deve nascer de si mesma, no artista. E, portanto,
para satisfazer as demandas das altas classes, os artistas tiveram
que desenvolver métodos pelos quais pudessem produzir objetos
simulando arte; e os desenvolveram.
Esses
métodos são: (1) empréstimo, (2) imitação, (3) efeito e (4)
desvio.
O
primeiro consiste em emprestar temas inteiros ou somente
características separadas de obras poéticas anteriores e bem
conhecidas e retrabalhá-las de tal modo que, com alguns acréscimos,
representem algo novo. Tais obras, ao evocar em pessoas pertencentes
a certo círculo memórias de sentimentos artísticos anteriormente
experimentados, produzem uma impressão semelhante à da arte e
passam por arte entre aqueles que buscam prazer nela, se algumas
outras condições necessárias forem satisfeitas ao mesmo tempo.
Temas emprestados de obras anteriores são geralmente chamados temas
poéticos. Objetos e personagens emprestados de obras anteriores são
chamados objetos poéticos. Assim, em nosso círculo, todos os tipos
de lenda, saga e velhas histórias são vistos como temas poéticos.
Personagens e objetos poéticos compreendem donzelas, guerreiros,
pastores, eremitas, anjos, demônios sob todas as formas, luar,
tempestades, montanhas, o mar, precipícios, flores, cabelo longo,
leões, o carneiro, a pomba, o rouxinol. Todos os objetos usados por
artistas anteriores em suas obras são geralmente considerados
poéticos.
Há
cerca de quarenta anos, uma senhora (hoje falecida) não muito
inteligente mas altamente civilizada, ayant beaucoup d’acquis,
convidou-me para ouvir um romance que ela havia escrito. A ação
começava com a heroína em uma poética floresta, à beira d’água,
com um poético vestido branco e com poéticos cabelos soltos, lendo
poesia. Isso se passava na Rússia, e subitamente, detrás dos
arbustos aparecia o herói, usando um chapéu com uma pena à
la Guillaume Tell (assim estava escrito), com dois poéticos
cachorros brancos a acompanhá-lo. Parecia à autora que tudo isso
era muito poético. Tudo estaria bem, entretanto, se o herói não
precisasse falar: mas, assim que o cavalheiro do chapéu à la
Guilherme Tell começou a falar com a moça do vestido branco, ficou
óbvio que a autora não tinha nada a dizer, que ela estava tocada
por memórias poéticas de outras obras e pensara que, remexendo
essas memórias, poderia produzir uma impressão artística. Mas uma
impressão artística é um contágio, ela atua somente quando o
autor experimentou algum sentimento e o transmite a seu próprio
modo, não quando expressa o sentimento de outra pessoa, como lhe foi
transmitido. Esse tipo de poesia tirada de poesia não pode contagiar
as pessoas e só produz o simulacro de uma obra de arte, e isso
somente para pessoas com gosto estético pervertido. Aquela senhora
era muito ignorante e desprovida de talento, e, portanto, podia-se
ver imediatamente como eram as coisas; mas quando tais empréstimos
são empreendidos por pessoas letradas e talentosas, e, além disso,
com uma técnica artística desenvolvida, os resultados são esses
empréstimos do mundo grego, antigo, cristão ou mitológico, que se
multiplicaram enormemente e, especialmente agora, continuam a
aparecer em grande número — e que o público toma por obras de
arte, se os empréstimos são bem apresentados por meio da técnica
da arte à qual pertencem.
A
peça Princesse lointaine [Princesa distante], de Rostand, na
qual não há um vestígio de arte, mas que parece a muitos,
provavelmente também a seu autor, ser bastante poética, pode servir
como exemplo típico dessas falsificações artísticas.
O
segundo método de produzir um simulacro de arte é o que chamei de
imitação. A essência desse método consiste em expressar os
detalhes que acompanham o que está sendo descrito ou retratado. Na
arte verbal, consiste em descrever detalhadamente a aparência
externa, rostos, roupas, gestos, sons e posições dos personagens,
com todos os acidentes que ocorrem na vida. Assim, em romances e
histórias, cada vez que um personagem fala nos é dito em que
espécie de voz ele falou e o que ele estava fazendo ao mesmo tempo.
E as falas em si são dadas, não de forma a terem um significado
maior, mas de uma maneira que imita a vida, mal compostas, com
interrupções e omissões. Na arte dramática, esse método consiste
em apresentar, juntamente com o discurso imitativo, a situação e
todas as ações dos personagens como seriam na vida real. Na
pintura, esse método reduz a pintura à fotografia e abole a
diferença entre ambas. Por mais estranho que pareça, esse método é
também empregado na música, quando ela tenta imitar, não apenas
com o ritmo, mas com os próprios sons, aquilo que acompanha na vida
real, o que se está querendo retratar.
O
terceiro método consiste em afetar sensações externas, muitas
vezes de maneira puramente física, por meio do que é chamado
efeito. Esses efeitos, em todas as artes, consistem principalmente em
contrastes — na justaposição de horrível e terno, belo e feio,
estridente e suave, escuro e claro, o mais comum e o mais
extraordinário. Na arte verbal, além desses efeitos, há também
aqueles que consistem na descrição ou retrato de algo que nunca foi
descrito ou retratado antes, predominantemente na reprodução de
detalhes que excitem o desejo sexual, ou detalhes de sofrimento e de
morte que evoquem o sentimento de horror — por exemplo, no caso de
um assassinato, dar uma descrição minuciosa dos tecidos
dilacerados, inchaços, cheiro, quantidade e aparência do sangue.
Assim também na pintura: juntamente com contrastes de vários tipos,
outro contraste vem se tornando largamente utilizado, que consiste no
acabamento completo de um objeto e tratamento de rascunho do
restante. Os principais efeitos usados na pintura são os efeitos de
luz e o retrato do horrível. No teatro, os efeitos mais usuais, além
dos contrastes, são tempestades, temporais, luar, ação no mar ou
junto ao mar, trocas de figurino, desnudamento do corpo feminino,
loucura, assassinatos e mortes em geral, quando as pessoas que morrem
expressam detalhadamente todas as fases de sua agonia. Na música, os
efeitos mais comumente utilizados consistem em seguir sons muito
fracos e monótonos de um crescendo e complicações, culminando nos
sons mais fortes e complexos da orquestra inteira, ou em repetir os
mesmos sons em arpeggio em todas as oitavas e em todos os
instrumentos, ou então em ter uma harmonia, tempo ou ritmo
totalmente diferentes do que fluiria naturalmente do curso da ideia
musical, e espetacular em seu inesperado.
Além
desses efeitos, que são os mais utilizados nas diversas artes, há
ainda outro, que também é comum a todas: retratar por meio de uma
arte o que é geralmente retratado por outra, de forma que a música
deve “descrever”, como toda música de programa faz — tanto a
de Wagner quanto a de seus seguidores —, enquanto a pintura, o
teatro e a poesia devem “criar uma disposição”, como é feito
na arte decadente.
O
quarto método é o desvio ou distração, isto é, um interesse
intelectual acrescentado à obra de arte. O desvio pode consistir em
um enredo emaranhado — um método ainda muito em uso nos romances
ingleses recentes e nas comédias e dramas franceses, mas que agora
está saindo de moda e sendo substituído por métodos
documentaristas, isto é, pela descrição detalhada, seja de um
período histórico, seja de alguma esfera em particular da vida
contemporânea. Assim, por exemplo, o desvio consiste em descrever a
vida egípcia ou romana em um romance, ou a vida de mineiros, ou a de
vendedores em uma loja de departamentos — o leitor se torna
interessado e confunde esse interesse com uma impressão artística.
Ele pode consistir também nos próprios métodos de expressão. Esse
tipo de desvio está muito em voga. Poesia e prosa, assim como
quadros, peças de teatro e peças musicais, são escritas hoje de
tal forma que precisam ser decifradas como charadas, e esse processo
garante prazer e dá algo semelhante à impressão produzida pela
arte.
Diz-se
muito frequentemente que uma obra de arte é muito boa porque é
poética, ou realista, ou eficaz, ou interessante, ao passo que
nenhum desses atributos pode ser um padrão de valor na arte; mais do
que isso, eles nem mesmo têm nada em comum com ela.
Poético
significa emprestado. E qualquer empréstimo apenas sugere aos
leitores, espectadores ou ouvintes algumas vagas memórias das
impressões artísticas que receberam de obras de arte anteriores, e
não os contagia como um sentimento que o próprio artista vivenciou.
Uma obra baseada em empréstimo — o Fausto de Goethe, por exemplo —
pode ser muito bem executada, cheia de inteligência e de beleza, mas
não pode produzir uma impressão artística verdadeira porque carece
da principal propriedade de uma obra de arte — inteireza,
organicidade — na qual forma e conteúdo constituem um todo
inseparável que expressa o sentimento experimentado pelo artista. No
empréstimo, o artista transmite o sentimento que foi passado a ele
por uma obra de arte anterior, e, portanto, todo empréstimo de temas
inteiros ou de várias cenas, situações e descrições é somente
um reflexo de arte; é o seu simulacro, e não a própria arte. E,
portanto, dizer que uma obra dessas é boa porque é poética —
querendo dizer que ela lembra uma obra de arte — é o mesmo que
dizer que uma moeda é boa porque lembra dinheiro de verdade. Da
mesma forma a imitação ou realismo, ao contrário do que muitos
pensam, não pode ser um padrão para o valor da arte. A imitação
não pode ser uma medida do valor da arte porque, se a principal
propriedade da arte é contagiar outros com o sentimento vivenciado
pelo artista, esse contágio não só não combina com uma descrição
minuciosa do que está sendo transmitido, como é em geral rompido
pelo supérfluo dos detalhes. A atenção daquele que recebe a
impressão artística é distraída por todos esses tão bem
observados detalhes, e isso impede que o sentimento do autor, se de
fato existir algum, seja transmitido.
Avaliar
uma obra de arte pelo seu grau de realismo, pela veracidade dos
detalhes transmitidos, é tão estranho quanto julgar as qualidades
nutricionais do alimento por sua aparência. Quando definimos o valor
de uma obra de arte por seu realismo, nós meramente mostramos com
isso que estamos falando não de arte, mas de falsificação.
O
terceiro método de falsificar arte — pelo extraordinário ou pelo
efeito — não combina, como os dois primeiros, com o conceito de
arte genuína porque os efeitos de novidade, contrastes inesperados e
horrores não transmitem nenhum sentimento, apenas afetam os nervos.
Se um artista faz um excelente retrato de um ferimento sangrento, a
sua visão me impressionará, mas não haverá arte nisso. Uma nota
prolongada em um órgão poderoso produzirá uma impressão chocante
e até invocará lágrimas, mas não haverá música nisso, porque
não transmite sentimento algum. E, no entanto, efeitos fisiológicos
dessa espécie são constantemente confundidos com arte pelas pessoas
do nosso círculo, não só na música como na poesia, pintura e
teatro. Diz-se que a arte se tornou refinada na nossa época; pelo
contrário, devido à busca de efeitos, ela se tornou extremamente
grosseira. Tome uma apresentação da nova peça Hannele, que
está sendo apresentada em teatros por toda a Europa e na qual o
autor deseja transmitir ao público sua compaixão por uma garota
atormentada até a morte. Para invocar essa emoção nos espectadores
por meio da arte, o autor devia ter feito um de seus personagens
expressar essa compaixão de tal forma que contagiasse a todos, ou
ter dado uma descrição verdadeira das sensações da moça. Mas ele
não pode, ou não quer, fazer isso e escolhe outra maneira, mais
complicada para os técnicos de palco, porém mais fácil para os
artistas. Ele faz a garota morrer no palco. Além disso, para
aumentar o efeito psicológico sobre o público, apaga as luzes do
teatro, deixando a plateia às escuras e, ao som de música
lamentável, mostra o pai bêbado perseguindo-a e espancando-a. A
garota se contorce, grita, geme, cai. Aparecem anjos e a levam
embora. A plateia, experimentando um certo nervosismo, fica certa de
que se trata de uma sensação estética. Mas não há nada estético
nesse nervosismo, porque não se trata de um homem contagiando outro,
mas apenas de um sentimento misto de sofrimento por outrem e alegria
por si mesmo, por não ser eu quem está sofrendo — como o que
experimentaríamos ao ver uma execução, ou o que os romanos
vivenciavam em seus circos.
A
substituição de sentimento estético por efeitos é especialmente
perceptível na arte musical — uma arte peculiar em seu impacto
fisiológico direto sobre os nervos. Em lugar de usar a melodia para
transmitir os sentimentos vivenciados pelo compositor, o novo músico
acumula e entretece sons e, alternadamente intensificando-os e
enfraquecendo-os, produz um efeito fisiológico sobre o público, que
pode ser medido por um aparelho especialmente projetado para esse
fim. E o público confunde esse efeito fisiológico com um efeito
artístico.
Quanto
ao quarto método, o desvio, embora seja mais estranho à arte do que
os outros, é mais confundido com ela. Sem mencionar a ação pela
qual o autor deliberadamente oculta algo em um romance ou história,
que o leitor precisará então adivinhar, ouve-se frequentemente que
um quadro ou uma composição musical é interessante. O que
significa “interessante”? Uma obra de arte interessante é a que
provoca curiosidade não satisfeita, a que, no nosso modo de ver, dá
informações que são novas, ou então a que não é totalmente
compreensível e cujo significado percebemos gradualmente e com
esforço, encontrando um certo prazer nesse processo de adivinhação.
Em todos esses casos, o desvio não tem nada a ver com impressão
artística. O objetivo da arte é contagiar as pessoas com um
sentimento experimentado pelo artista. Mas o esforço mental exigido
de um espectador, ouvinte ou leitor para satisfazer sua curiosidade
despertada, ou para dominar as novas informações trazidas pela
obra, ou para captar seu significado, absorve a sua atenção,
interferindo assim no contágio. E, portanto, o que deriva da obra
não só não tem nada a ver com valor artístico, como atrapalha a
impressão artística, em lugar de ajudar.
Uma
obra de arte pode ser poética, imitativa, espetacular ou derivativa,
mas nenhuma dessas qualidades pode substituir a principal propriedade
da arte: o sentimento vivenciado pelo artista. Recentemente,
entretanto, na arte das altas classes, a maior parte dos objetos que
são considerados objetos de arte são precisamente do tipo que
somente parece arte, mas não têm como base essa propriedade
artística principal.
Há
muitas condições necessárias para que um homem crie um verdadeiro
objeto de arte. É necessário que ele ocupe o nível da mais alta
visão de mundo de seu tempo, que tenha experimentado um sentimento e
tenha o desejo e a oportunidade de transmiti-lo, e que tenha,
juntamente com tudo isso, um talento para algum tipo de arte. É
muito raro que todas essas condições necessárias para a produção
da verdadeira arte ocorram juntas. Mas para produzir, com a ajuda dos
métodos de empréstimo, imitação, efeito e desvio, aquele
simulacro de arte que é tão bem remunerado em nossa sociedade, só
é necessário ter talento para alguma espécie de arte, o que ocorre
com grande frequência. Na arte verbal, chamo de talento a capacidade
de expressar os pensamentos e impressões com facilidade e de
observar e lembrar detalhes característicos; na arte plástica, de
distinguir, lembrar e transmitir linhas, formas e cores; na música,
de distinguir intervalos, lembrar e transmitir uma sequência de
sons. Em nossa época, um homem com tal talento, uma vez que tenha
aprendido as técnicas e os métodos de falsificar sua arte, se for
paciente e se o seu senso estético, que faria tais trabalhos serem
odiosos para ele, tiver se atrofiado, poderá produzir sem cessar,
até o fim da vida, obras que em nossa sociedade serão consideradas
arte.
Para
produzir essas falsificações, existem certas regras ou receitas em
todo tipo de arte, de forma que um homem talentoso, havendo-as
aprendido, pode produzir tais objetos à froid, friamente, sem
o mínimo sentimento. Para escrever poesia, um homem com talento
verbal só precisa se acostumar a utilizar, em lugar de cada palavra
real e necessária, e dependendo das exigências de métrica e rima,
outras dez palavras que tenham aproximadamente o mesmo significado, e
então acostumar-se a dizer cada sentença, que para ser clara deve
ter sua ordem específica de palavras, em todas as outras combinações
verbais possíveis, desde que haja alguma aparência de significado.
E depois, também, dependendo das palavras que rimem, acostumar-se a
inventar simulacros de pensamentos, sentimentos ou imagens que
combinem com essas palavras. E então esse homem pode prosseguir
produzindo versos, incessantemente, curtos ou longos, religiosos, de
amor ou cívicos, dependendo da necessidade.
Se
um homem talentoso na arte verbal deseja escrever contos ou romances,
tudo o que precisa fazer é desenvolver um estilo — isto é,
aprender a descrever tudo o que vê e acostumar-se a lembrar ou a
anotar detalhes. Tendo dominado isso, pode escrever sem cessar
romances ou contos, dependendo da demanda ou de sua própria vontade
— históricos, naturalistas, sociais, eróticos, psicológicos ou
mesmo religiosos, tema para o qual está começando a aparecer uma
moda e uma demanda. Ele pode tirar os enredos de suas leituras ou de
eventos pelos quais passou e copiar as características dos
protagonistas de seus próprios conhecidos.
E
tais romances e contos, se forem decorados com detalhes bem
observados e registrados, principalmente se forem eróticos, serão
considerados obras de arte, mesmo que careçam de um vestígio de
sentimento vivido.
Para
produzir arte na forma dramática, um homem talentoso, juntamente com
tudo que é necessário para escrever um romance ou conto, deve
aprender também a colocar na boca de seus personagens o máximo
possível de palavras perspicazes e espirituosas, usar efeitos
teatrais e entrelaçar as ações dos heróis de tal forma que não
haja uma única conversação longa no palco, mas criar tanto
alvoroço e movimento quanto seja possível. Se um escritor souber
como fazer isso, poderá escrever peças dramáticas incessantemente,
escolhendo suas tramas entre os registros criminais ou as últimas
questões adotadas pela sociedade, tais como o hipnotismo, a
hereditariedade, e assim por diante, ou de domínios mais antigos e
até mesmo fantásticos.
Para
um homem talentoso na pintura ou escultura, é ainda mais fácil
produzir objetos que lembrem arte. Tudo o que ele precisa é aprender
a desenhar, pintar ou esculpir — especialmente corpos nus. Tendo
aprendido isso, ele pode pintar um quadro depois do outro ou esculpir
uma estátua depois da outra, escolhendo, segundo sua inclinação,
temas mitológicos, religiosos, fantásticos ou simbólicos, ou
retratando o que é publicado nos jornais — uma coroação, uma
greve, a guerra greco-turca, catástrofes ou penúria; ou, o que é
mais comum, retratando tudo o que parece belo, de mulheres nuas a
bacias de cobre.
Para
produzir arte musical, um homem talentoso precisa menos ainda daquilo
que constitui a essência da arte — ou seja, um sentimento que vá
contagiar outros —, mas, por sua vez, ele precisa de mais trabalho
físico e acrobático do que para qualquer outra arte, com a possível
exceção da dança. Para produzir obras de arte musical, é
necessário antes de mais nada aprender a mover os dedos sobre um
instrumento tão rapidamente quanto aqueles que atingiram o mais alto
grau de perfeição; depois, é preciso aprender como a música
polifônica era escrita nos tempos antigos — isto é, aprender o
que é conhecido como contraponto e fuga; e, então, dominar a
orquestração, ou seja, o uso de efeitos instrumentais. Tendo
aprendido tudo isso, o músico então pode escrever sem cessar uma
obra após outra: música de programa, óperas e canções,
imaginando sons que mais ou menos correspondam às palavras; ou então
música de câmara — isto é, tomando temas de outras pessoas e
retrabalhando-os por meio de contraponto e fuga, dentro de formas
definidas; ou, o que é mais comum, uma música fantástica, pegando
combinações de sons que acidentalmente lhe venham às mãos e
empilhando toda sorte de complicações e adornos sobre esses sons
acidentais.
Assim,
em todas as áreas da arte, obras forjadas são produzidas por meio
de receita pronta e formulada, e nosso público da alta classe as
toma por arte genuína.
E
essa substituição de obras de arte por falsificações é a
terceira e a mais importante consequência da separação entre a
arte da alta classe e a do povo.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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