terça-feira, 15 de agosto de 2023

O que é arte? | Capítulo XI

Madona do Prado (1506), de Rafael

Tornando-se cada vez mais pobre no conteúdo e cada vez mais incompreensível na forma, a arte nas suas manifestações mais recentes perdeu todas as propriedades de arte e foi substituída por um simulacro desta.
Como se não fosse suficiente que, devido à sua separação da arte do povo, a arte da alta classe tenha se tornado pobre em conteúdo e má na forma — isto é, mais e mais incompreensível —, ela cessou mesmo de ser arte, no curso do tempo, e foi substituída por falsificações de arte.
Isso aconteceu pelas razões explicadas a seguir. A arte do povo emerge somente quando um homem do povo, tendo vivenciado um forte sentimento, tem necessidade de transmiti-lo a outros. A arte da classe rica emerge não por necessidade do artista, mas principalmente porque as pessoas dessa classe exigem divertimentos, que são muito bem remunerados.
As altas classes exigem que a arte transmita sentimentos agradáveis a elas, e os artistas tentam satisfazer essas exigências.
Mas satisfazê-las é muito difícil, pois essas pessoas, que levam uma vida de ócio e luxo, requerem da arte divertimento contínuo, ao passo que é impossível produzir arte à vontade, até a do tipo mais baixo — ela deve nascer de si mesma, no artista. E, portanto, para satisfazer as demandas das altas classes, os artistas tiveram que desenvolver métodos pelos quais pudessem produzir objetos simulando arte; e os desenvolveram.
Esses métodos são: (1) empréstimo, (2) imitação, (3) efeito e (4) desvio.
O primeiro consiste em emprestar temas inteiros ou somente características separadas de obras poéticas anteriores e bem conhecidas e retrabalhá-las de tal modo que, com alguns acréscimos, representem algo novo. Tais obras, ao evocar em pessoas pertencentes a certo círculo memórias de sentimentos artísticos anteriormente experimentados, produzem uma impressão semelhante à da arte e passam por arte entre aqueles que buscam prazer nela, se algumas outras condições necessárias forem satisfeitas ao mesmo tempo. Temas emprestados de obras anteriores são geralmente chamados temas poéticos. Objetos e personagens emprestados de obras anteriores são chamados objetos poéticos. Assim, em nosso círculo, todos os tipos de lenda, saga e velhas histórias são vistos como temas poéticos. Personagens e objetos poéticos compreendem donzelas, guerreiros, pastores, eremitas, anjos, demônios sob todas as formas, luar, tempestades, montanhas, o mar, precipícios, flores, cabelo longo, leões, o carneiro, a pomba, o rouxinol. Todos os objetos usados por artistas anteriores em suas obras são geralmente considerados poéticos.
Há cerca de quarenta anos, uma senhora (hoje falecida) não muito inteligente mas altamente civilizada, ayant beaucoup d’acquis, convidou-me para ouvir um romance que ela havia escrito. A ação começava com a heroína em uma poética floresta, à beira d’água, com um poético vestido branco e com poéticos cabelos soltos, lendo poesia. Isso se passava na Rússia, e subitamente, detrás dos arbustos aparecia o herói, usando um chapéu com uma pena à la Guillaume Tell (assim estava escrito), com dois poéticos cachorros brancos a acompanhá-lo. Parecia à autora que tudo isso era muito poético. Tudo estaria bem, entretanto, se o herói não precisasse falar: mas, assim que o cavalheiro do chapéu à la Guilherme Tell começou a falar com a moça do vestido branco, ficou óbvio que a autora não tinha nada a dizer, que ela estava tocada por memórias poéticas de outras obras e pensara que, remexendo essas memórias, poderia produzir uma impressão artística. Mas uma impressão artística é um contágio, ela atua somente quando o autor experimentou algum sentimento e o transmite a seu próprio modo, não quando expressa o sentimento de outra pessoa, como lhe foi transmitido. Esse tipo de poesia tirada de poesia não pode contagiar as pessoas e só produz o simulacro de uma obra de arte, e isso somente para pessoas com gosto estético pervertido. Aquela senhora era muito ignorante e desprovida de talento, e, portanto, podia-se ver imediatamente como eram as coisas; mas quando tais empréstimos são empreendidos por pessoas letradas e talentosas, e, além disso, com uma técnica artística desenvolvida, os resultados são esses empréstimos do mundo grego, antigo, cristão ou mitológico, que se multiplicaram enormemente e, especialmente agora, continuam a aparecer em grande número — e que o público toma por obras de arte, se os empréstimos são bem apresentados por meio da técnica da arte à qual pertencem.
A peça Princesse lointaine [Princesa distante], de Rostand, na qual não há um vestígio de arte, mas que parece a muitos, provavelmente também a seu autor, ser bastante poética, pode servir como exemplo típico dessas falsificações artísticas.
O segundo método de produzir um simulacro de arte é o que chamei de imitação. A essência desse método consiste em expressar os detalhes que acompanham o que está sendo descrito ou retratado. Na arte verbal, consiste em descrever detalhadamente a aparência externa, rostos, roupas, gestos, sons e posições dos personagens, com todos os acidentes que ocorrem na vida. Assim, em romances e histórias, cada vez que um personagem fala nos é dito em que espécie de voz ele falou e o que ele estava fazendo ao mesmo tempo. E as falas em si são dadas, não de forma a terem um significado maior, mas de uma maneira que imita a vida, mal compostas, com interrupções e omissões. Na arte dramática, esse método consiste em apresentar, juntamente com o discurso imitativo, a situação e todas as ações dos personagens como seriam na vida real. Na pintura, esse método reduz a pintura à fotografia e abole a diferença entre ambas. Por mais estranho que pareça, esse método é também empregado na música, quando ela tenta imitar, não apenas com o ritmo, mas com os próprios sons, aquilo que acompanha na vida real, o que se está querendo retratar.
O terceiro método consiste em afetar sensações externas, muitas vezes de maneira puramente física, por meio do que é chamado efeito. Esses efeitos, em todas as artes, consistem principalmente em contrastes — na justaposição de horrível e terno, belo e feio, estridente e suave, escuro e claro, o mais comum e o mais extraordinário. Na arte verbal, além desses efeitos, há também aqueles que consistem na descrição ou retrato de algo que nunca foi descrito ou retratado antes, predominantemente na reprodução de detalhes que excitem o desejo sexual, ou detalhes de sofrimento e de morte que evoquem o sentimento de horror — por exemplo, no caso de um assassinato, dar uma descrição minuciosa dos tecidos dilacerados, inchaços, cheiro, quantidade e aparência do sangue. Assim também na pintura: juntamente com contrastes de vários tipos, outro contraste vem se tornando largamente utilizado, que consiste no acabamento completo de um objeto e tratamento de rascunho do restante. Os principais efeitos usados na pintura são os efeitos de luz e o retrato do horrível. No teatro, os efeitos mais usuais, além dos contrastes, são tempestades, temporais, luar, ação no mar ou junto ao mar, trocas de figurino, desnudamento do corpo feminino, loucura, assassinatos e mortes em geral, quando as pessoas que morrem expressam detalhadamente todas as fases de sua agonia. Na música, os efeitos mais comumente utilizados consistem em seguir sons muito fracos e monótonos de um crescendo e complicações, culminando nos sons mais fortes e complexos da orquestra inteira, ou em repetir os mesmos sons em arpeggio em todas as oitavas e em todos os instrumentos, ou então em ter uma harmonia, tempo ou ritmo totalmente diferentes do que fluiria naturalmente do curso da ideia musical, e espetacular em seu inesperado.
Além desses efeitos, que são os mais utilizados nas diversas artes, há ainda outro, que também é comum a todas: retratar por meio de uma arte o que é geralmente retratado por outra, de forma que a música deve “descrever”, como toda música de programa faz — tanto a de Wagner quanto a de seus seguidores —, enquanto a pintura, o teatro e a poesia devem “criar uma disposição”, como é feito na arte decadente.
O quarto método é o desvio ou distração, isto é, um interesse intelectual acrescentado à obra de arte. O desvio pode consistir em um enredo emaranhado — um método ainda muito em uso nos romances ingleses recentes e nas comédias e dramas franceses, mas que agora está saindo de moda e sendo substituído por métodos documentaristas, isto é, pela descrição detalhada, seja de um período histórico, seja de alguma esfera em particular da vida contemporânea. Assim, por exemplo, o desvio consiste em descrever a vida egípcia ou romana em um romance, ou a vida de mineiros, ou a de vendedores em uma loja de departamentos — o leitor se torna interessado e confunde esse interesse com uma impressão artística. Ele pode consistir também nos próprios métodos de expressão. Esse tipo de desvio está muito em voga. Poesia e prosa, assim como quadros, peças de teatro e peças musicais, são escritas hoje de tal forma que precisam ser decifradas como charadas, e esse processo garante prazer e dá algo semelhante à impressão produzida pela arte.
Diz-se muito frequentemente que uma obra de arte é muito boa porque é poética, ou realista, ou eficaz, ou interessante, ao passo que nenhum desses atributos pode ser um padrão de valor na arte; mais do que isso, eles nem mesmo têm nada em comum com ela.
Poético significa emprestado. E qualquer empréstimo apenas sugere aos leitores, espectadores ou ouvintes algumas vagas memórias das impressões artísticas que receberam de obras de arte anteriores, e não os contagia como um sentimento que o próprio artista vivenciou. Uma obra baseada em empréstimo — o Fausto de Goethe, por exemplo — pode ser muito bem executada, cheia de inteligência e de beleza, mas não pode produzir uma impressão artística verdadeira porque carece da principal propriedade de uma obra de arte — inteireza, organicidade — na qual forma e conteúdo constituem um todo inseparável que expressa o sentimento experimentado pelo artista. No empréstimo, o artista transmite o sentimento que foi passado a ele por uma obra de arte anterior, e, portanto, todo empréstimo de temas inteiros ou de várias cenas, situações e descrições é somente um reflexo de arte; é o seu simulacro, e não a própria arte. E, portanto, dizer que uma obra dessas é boa porque é poética — querendo dizer que ela lembra uma obra de arte — é o mesmo que dizer que uma moeda é boa porque lembra dinheiro de verdade. Da mesma forma a imitação ou realismo, ao contrário do que muitos pensam, não pode ser um padrão para o valor da arte. A imitação não pode ser uma medida do valor da arte porque, se a principal propriedade da arte é contagiar outros com o sentimento vivenciado pelo artista, esse contágio não só não combina com uma descrição minuciosa do que está sendo transmitido, como é em geral rompido pelo supérfluo dos detalhes. A atenção daquele que recebe a impressão artística é distraída por todos esses tão bem observados detalhes, e isso impede que o sentimento do autor, se de fato existir algum, seja transmitido.
Avaliar uma obra de arte pelo seu grau de realismo, pela veracidade dos detalhes transmitidos, é tão estranho quanto julgar as qualidades nutricionais do alimento por sua aparência. Quando definimos o valor de uma obra de arte por seu realismo, nós meramente mostramos com isso que estamos falando não de arte, mas de falsificação.
O terceiro método de falsificar arte — pelo extraordinário ou pelo efeito — não combina, como os dois primeiros, com o conceito de arte genuína porque os efeitos de novidade, contrastes inesperados e horrores não transmitem nenhum sentimento, apenas afetam os nervos. Se um artista faz um excelente retrato de um ferimento sangrento, a sua visão me impressionará, mas não haverá arte nisso. Uma nota prolongada em um órgão poderoso produzirá uma impressão chocante e até invocará lágrimas, mas não haverá música nisso, porque não transmite sentimento algum. E, no entanto, efeitos fisiológicos dessa espécie são constantemente confundidos com arte pelas pessoas do nosso círculo, não só na música como na poesia, pintura e teatro. Diz-se que a arte se tornou refinada na nossa época; pelo contrário, devido à busca de efeitos, ela se tornou extremamente grosseira. Tome uma apresentação da nova peça Hannele, que está sendo apresentada em teatros por toda a Europa e na qual o autor deseja transmitir ao público sua compaixão por uma garota atormentada até a morte. Para invocar essa emoção nos espectadores por meio da arte, o autor devia ter feito um de seus personagens expressar essa compaixão de tal forma que contagiasse a todos, ou ter dado uma descrição verdadeira das sensações da moça. Mas ele não pode, ou não quer, fazer isso e escolhe outra maneira, mais complicada para os técnicos de palco, porém mais fácil para os artistas. Ele faz a garota morrer no palco. Além disso, para aumentar o efeito psicológico sobre o público, apaga as luzes do teatro, deixando a plateia às escuras e, ao som de música lamentável, mostra o pai bêbado perseguindo-a e espancando-a. A garota se contorce, grita, geme, cai. Aparecem anjos e a levam embora. A plateia, experimentando um certo nervosismo, fica certa de que se trata de uma sensação estética. Mas não há nada estético nesse nervosismo, porque não se trata de um homem contagiando outro, mas apenas de um sentimento misto de sofrimento por outrem e alegria por si mesmo, por não ser eu quem está sofrendo — como o que experimentaríamos ao ver uma execução, ou o que os romanos vivenciavam em seus circos.
A substituição de sentimento estético por efeitos é especialmente perceptível na arte musical — uma arte peculiar em seu impacto fisiológico direto sobre os nervos. Em lugar de usar a melodia para transmitir os sentimentos vivenciados pelo compositor, o novo músico acumula e entretece sons e, alternadamente intensificando-os e enfraquecendo-os, produz um efeito fisiológico sobre o público, que pode ser medido por um aparelho especialmente projetado para esse fim. E o público confunde esse efeito fisiológico com um efeito artístico.
Quanto ao quarto método, o desvio, embora seja mais estranho à arte do que os outros, é mais confundido com ela. Sem mencionar a ação pela qual o autor deliberadamente oculta algo em um romance ou história, que o leitor precisará então adivinhar, ouve-se frequentemente que um quadro ou uma composição musical é interessante. O que significa “interessante”? Uma obra de arte interessante é a que provoca curiosidade não satisfeita, a que, no nosso modo de ver, dá informações que são novas, ou então a que não é totalmente compreensível e cujo significado percebemos gradualmente e com esforço, encontrando um certo prazer nesse processo de adivinhação. Em todos esses casos, o desvio não tem nada a ver com impressão artística. O objetivo da arte é contagiar as pessoas com um sentimento experimentado pelo artista. Mas o esforço mental exigido de um espectador, ouvinte ou leitor para satisfazer sua curiosidade despertada, ou para dominar as novas informações trazidas pela obra, ou para captar seu significado, absorve a sua atenção, interferindo assim no contágio. E, portanto, o que deriva da obra não só não tem nada a ver com valor artístico, como atrapalha a impressão artística, em lugar de ajudar.
Uma obra de arte pode ser poética, imitativa, espetacular ou derivativa, mas nenhuma dessas qualidades pode substituir a principal propriedade da arte: o sentimento vivenciado pelo artista. Recentemente, entretanto, na arte das altas classes, a maior parte dos objetos que são considerados objetos de arte são precisamente do tipo que somente parece arte, mas não têm como base essa propriedade artística principal.
Há muitas condições necessárias para que um homem crie um verdadeiro objeto de arte. É necessário que ele ocupe o nível da mais alta visão de mundo de seu tempo, que tenha experimentado um sentimento e tenha o desejo e a oportunidade de transmiti-lo, e que tenha, juntamente com tudo isso, um talento para algum tipo de arte. É muito raro que todas essas condições necessárias para a produção da verdadeira arte ocorram juntas. Mas para produzir, com a ajuda dos métodos de empréstimo, imitação, efeito e desvio, aquele simulacro de arte que é tão bem remunerado em nossa sociedade, só é necessário ter talento para alguma espécie de arte, o que ocorre com grande frequência. Na arte verbal, chamo de talento a capacidade de expressar os pensamentos e impressões com facilidade e de observar e lembrar detalhes característicos; na arte plástica, de distinguir, lembrar e transmitir linhas, formas e cores; na música, de distinguir intervalos, lembrar e transmitir uma sequência de sons. Em nossa época, um homem com tal talento, uma vez que tenha aprendido as técnicas e os métodos de falsificar sua arte, se for paciente e se o seu senso estético, que faria tais trabalhos serem odiosos para ele, tiver se atrofiado, poderá produzir sem cessar, até o fim da vida, obras que em nossa sociedade serão consideradas arte.
Para produzir essas falsificações, existem certas regras ou receitas em todo tipo de arte, de forma que um homem talentoso, havendo-as aprendido, pode produzir tais objetos à froid, friamente, sem o mínimo sentimento. Para escrever poesia, um homem com talento verbal só precisa se acostumar a utilizar, em lugar de cada palavra real e necessária, e dependendo das exigências de métrica e rima, outras dez palavras que tenham aproximadamente o mesmo significado, e então acostumar-se a dizer cada sentença, que para ser clara deve ter sua ordem específica de palavras, em todas as outras combinações verbais possíveis, desde que haja alguma aparência de significado. E depois, também, dependendo das palavras que rimem, acostumar-se a inventar simulacros de pensamentos, sentimentos ou imagens que combinem com essas palavras. E então esse homem pode prosseguir produzindo versos, incessantemente, curtos ou longos, religiosos, de amor ou cívicos, dependendo da necessidade.
Se um homem talentoso na arte verbal deseja escrever contos ou romances, tudo o que precisa fazer é desenvolver um estilo — isto é, aprender a descrever tudo o que vê e acostumar-se a lembrar ou a anotar detalhes. Tendo dominado isso, pode escrever sem cessar romances ou contos, dependendo da demanda ou de sua própria vontade — históricos, naturalistas, sociais, eróticos, psicológicos ou mesmo religiosos, tema para o qual está começando a aparecer uma moda e uma demanda. Ele pode tirar os enredos de suas leituras ou de eventos pelos quais passou e copiar as características dos protagonistas de seus próprios conhecidos.
E tais romances e contos, se forem decorados com detalhes bem observados e registrados, principalmente se forem eróticos, serão considerados obras de arte, mesmo que careçam de um vestígio de sentimento vivido.
Para produzir arte na forma dramática, um homem talentoso, juntamente com tudo que é necessário para escrever um romance ou conto, deve aprender também a colocar na boca de seus personagens o máximo possível de palavras perspicazes e espirituosas, usar efeitos teatrais e entrelaçar as ações dos heróis de tal forma que não haja uma única conversação longa no palco, mas criar tanto alvoroço e movimento quanto seja possível. Se um escritor souber como fazer isso, poderá escrever peças dramáticas incessantemente, escolhendo suas tramas entre os registros criminais ou as últimas questões adotadas pela sociedade, tais como o hipnotismo, a hereditariedade, e assim por diante, ou de domínios mais antigos e até mesmo fantásticos.
Para um homem talentoso na pintura ou escultura, é ainda mais fácil produzir objetos que lembrem arte. Tudo o que ele precisa é aprender a desenhar, pintar ou esculpir — especialmente corpos nus. Tendo aprendido isso, ele pode pintar um quadro depois do outro ou esculpir uma estátua depois da outra, escolhendo, segundo sua inclinação, temas mitológicos, religiosos, fantásticos ou simbólicos, ou retratando o que é publicado nos jornais — uma coroação, uma greve, a guerra greco-turca, catástrofes ou penúria; ou, o que é mais comum, retratando tudo o que parece belo, de mulheres nuas a bacias de cobre.
Para produzir arte musical, um homem talentoso precisa menos ainda daquilo que constitui a essência da arte — ou seja, um sentimento que vá contagiar outros —, mas, por sua vez, ele precisa de mais trabalho físico e acrobático do que para qualquer outra arte, com a possível exceção da dança. Para produzir obras de arte musical, é necessário antes de mais nada aprender a mover os dedos sobre um instrumento tão rapidamente quanto aqueles que atingiram o mais alto grau de perfeição; depois, é preciso aprender como a música polifônica era escrita nos tempos antigos — isto é, aprender o que é conhecido como contraponto e fuga; e, então, dominar a orquestração, ou seja, o uso de efeitos instrumentais. Tendo aprendido tudo isso, o músico então pode escrever sem cessar uma obra após outra: música de programa, óperas e canções, imaginando sons que mais ou menos correspondam às palavras; ou então música de câmara — isto é, tomando temas de outras pessoas e retrabalhando-os por meio de contraponto e fuga, dentro de formas definidas; ou, o que é mais comum, uma música fantástica, pegando combinações de sons que acidentalmente lhe venham às mãos e empilhando toda sorte de complicações e adornos sobre esses sons acidentais.
Assim, em todas as áreas da arte, obras forjadas são produzidas por meio de receita pronta e formulada, e nosso público da alta classe as toma por arte genuína.
E essa substituição de obras de arte por falsificações é a terceira e a mais importante consequência da separação entre a arte da alta classe e a do povo.

Leon Tolstói, in O que é arte?

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