– Ah,
Liza, não fale assim. Isso não tem nada a ver com livro! Eu estou
de fora e ainda assim me sinto mal. Aliás, não estou de fora. Tudo
isso foi despertado agora dentro de mim... Mas será possível que
você mesma não se sinta mal aqui? Mas não, pelo visto o hábito
significa muito! Só Deus sabe o que o hábito pode fazer com uma
pessoa. Será que você crê seriamente que nunca vai envelhecer, que
será sempre bonita e que vão abrigá-la aqui eternamente? Já nem
estou falando da porcaria que é isto aqui... Além do mais, escute o
que quero dizer sobre esta sua vida: agora você é jovem, bonita,
tem alma, coração. Mas, sabe que assim que acordei, ainda há
pouco, eu me senti mal por estar aqui com você? Só mesmo bêbado
alguém pode vir parar neste lugar. Se você estivesse em outro
lugar, vivendo como as pessoas direitas, talvez eu viesse não apenas
a cortejá-la, mas até me apaixonaria por você; ficaria feliz
apenas com um olhar seu, que diria com uma palavra sua; eu a
espreitaria no portão, ficaria de joelhos diante de você e a veria
como minha noiva, o que seria para mim uma honra. Não ousaria nem
pensar em alguma coisa impura. Mas, aqui, eu sei que basta eu dar um
assobio e você me seguirá, querendo ou não, e não sou eu que
tenho de perguntar qual é a sua vontade, mas sim você a minha. O
camponês mais desgraçado, quando faz um contrato de trabalho, não
se escraviza por inteiro e, além disso, sabe que aquilo tem um
prazo. E você, qual é o seu prazo? Reflita apenas: o que você está
dando aqui, o que está entregando? Sua alma, a alma que não lhe
pertence, você a está entregando junto com o seu corpo! Seu amor,
você o entrega a qualquer bêbado para que ele o profane. O amor!
Mas o amor é tudo, é um diamante, o tesouro de toda moça! Veja que
para merecer esse amor há homens que são capazes de dar sua alma e
até morrer se for preciso. E o seu amor quanto vale agora? Você foi
comprada por inteiro, e para que alguém disputaria o seu amor, se
mesmo sem amor pode obter tudo? Não existe ofensa maior para uma
moça, você compreende isso? Ouvi dizer que dão uma alegria a vocês
aqui deixando que tenham amantes. Ora, isso é pura farra, puro
engodo, eles riem de vocês, mas vocês acreditam. Será que ele ama
você realmente, o tal amante? Não acredito. Como ele poderia amar,
se sabe que a qualquer momento você pode ser chamada e terá de
deixá-lo? Ele seria um porco depois disso. Será que ele tem um
pingo de respeito por você? Que você tem em comum com ele? Ele ri e
ainda rouba de você – não passa disso o seu amor. E você ainda é
feliz se ele não lhe bate. Mas talvez ele lhe bata. Quer ver? Se
você tem um amante desses, pergunte a ele se vai casar com você.
Ele vai dar uma gargalhada, isso se não cuspir na sua cara ou não
lhe bater – e ele mesmo talvez não valha um tostão furado. E você
vai se perguntar em troca de que destruiu toda a sua vida neste
lugar. Será porque lhe dão café e comida farta? Mas por que motivo
a alimentam? Uma moça honesta talvez não conseguisse engolir essa
comida, porque saberia com que finalidade ela é dada. Você aqui é
a eterna devedora, vai continuar devendo a eles até o final, até a
hora em que os fregueses começarem a ter nojo de você. E isso não
tardará a acontecer. Não confie tanto na juventude. Aqui tudo passa
rápido como um galope. Eles se livrarão de você. Mas não a
mandarão simplesmente embora. Bem antes, começarão a implicar, a
censurar, a xingar – como se não fosse você quem deu a sua saúde
para eles, quem em troca de nada destruiu sua mocidade e sua saúde
em benefício deles. E a proprietária fará parecer que você a
arruinou, roubou, pôs na miséria. E não conte com o apoio de
ninguém: suas colegas também irão insultá-la para agradar à
patroa, porque aqui são todas escravas e faz tempo que perderam a
consciência e a compaixão. Tornaram-se mesquinhas, e não há na
Terra nada mais vil, baixo, cruel, do que os insultos que lhe
lançarão. E você deixará aqui tudo, sem retorno: sua saúde, sua
mocidade, sua beleza, suas esperanças, e aos vinte e dois anos
parecerá que tem trinta e cinco, e ainda terá sorte se não
adoecer, reze a Deus por isso. Pois neste momento você talvez pense
que não tem um trabalho, que isto aqui é uma farra. Mas não existe
trabalho mais pesado, mais escravo do que este na face da Terra, e
nunca houve. É de fazer o coração se debulhar em lágrimas. Você
não ousará dizer nem meia palavra quando a expulsarem daqui e irá
embora sentindo-se culpada. Irá para outro lugar, depois para um
terceiro, para outra casa ainda e chegará finalmente à Sênnaia. Lá
começarão a lhe bater; esta é a amabilidade por lá: o freguês
não sabe fazer um carinho sem antes dar um tapa. Não acredita que
lá seja tão horrível? Então vá lá uma hora dessas e veja com os
próprios olhos. Uma vez vi ali uma mulher, no Ano Novo, diante de
uma porta. Ela tinha sido posta para fora pelas próprias
companheiras, para pegar um pouco de frio, porque estava chorando
muito, e a deixaram lá fora e trancaram a porta. Às nove da manhã
ela já estava completamente bêbada, descabelada, seminua e tinha
levado uma surra. Ela tinha pó-de-arroz no rosto, mas manchas roxas
ao redor dos olhos e sangue escorrendo do nariz e das gengivas:
provavelmente algum cocheiro acabara de lhe fazer aquilo. Estava
sentada nos degraus de pedra com um peixe salgado na mão. Ela
soluçava, repetia umas lamentações sobre sua desgrama e
batia com o peixe nos degraus da escada. Um bando de cocheiros e
soldados bêbados juntou-se perto da porta e pôs-se a mexer com ela.
Você não acredita que um dia ficará como ela? Eu também gostaria
de não acreditar, mas quem pode saber? Talvez uns oito ou dez anos
antes a mesma mulher, a do peixe salgado, tenha chegado aqui vinda de
algum lugar, fresquinha como um querubim, inocente, pura; não
conhecia o mal, corava a cada palavra. Talvez fosse como você,
altiva, magoável, diferente das outras, com ar de princesa, certa de
que uma imensa felicidade esperava aquele que a amasse e a quem ela
amasse. Vê como terminou? E se ela, no instante em que batia com
aquele peixe sobre os degraus sujos, bêbada e descabelada, se
naquele instante ela se recordasse dos anos passados na casa paterna,
quando ela ainda ia à escola, e o filho do vizinho a espreitava no
caminho e jurava que a amaria para o resto da sua vida, que entregava
a ela seu destino, e eles prometiam amar-se eternamente e casar-se
assim que crescessem? Não, Liza, será uma felicidade, uma
felicidade para você, se morrer rapidamente em algum canto de porão,
de tuberculose, como a mulher que vi de manhã. No hospital, não foi
o que você disse? Está certo, talvez a levem, mas e se a dona ainda
precisar de você? A tísica é uma doença diferente, não é como a
febre. Até o último instante a pessoa tem esperança e diz que está
melhor. Ela se consola com isso. E, para a proprietária, isso é
vantajoso. Não se preocupe, é assim mesmo. Você lhe vendeu sua
alma, além disso lhe deve dinheiro, por isso não ousará soltar um
pio. E, quando estiver morrendo, todos a abandonarão e lhe darão as
costas – o que há mais para lhe tomar? E ainda hão de acusá-la
de estar ocupando de graça um lugar e demorando a morrer. Você se
cansará de pedir água e, quando a derem, será com um insulto:
“Quando é que vai morrer, coisa ruim? Não deixa ninguém dormir
com seus gemidos e afugenta os clientes.” É a pura verdade; eu
mesmo já ouvi tais palavras. Vão enfiá-la, moribunda, no canto
mais fétido do porão – escuridão, umidade... Em que pensará,
deitada ali sozinha? E, quando morrer, mãos estranhas vão arrumá-la
às pressas, com resmungos impacientes – não haverá ninguém para
abençoá-la, ninguém vai suspirar por você, o que vão querer é
só se livrar de você o quanto antes. Comprarão um caixão e a
levarão, como levaram a outra de manhã, coitada, e depois irão ao
botequim beber à sua memória. A cova estará cheia de lama, sujeira
e neve derretida – mas não será com você que vão fazer
cerimônia! “Vamos baixar ela, Vaniúkha. Eh, que desgrama, até
aqui essa zinha continua de pernas pro ar! Puxa mais as cordas,
moleque.” “Tá bom assim mesmo.” “Como tá bom? Ela tá caída
de lado. Era gente também ou não? Tá bem, joga a terra.” E não
vão querer ficar brigando muito tempo por sua causa. Vão cobri-la
às pressas com lama azulada e correrão para o botequim... Aqui
termina sua memória nesta Terra. Outros túmulos são visitados por
filhos, pais, maridos, mas, para você, não haverá lágrimas,
suspiros, recordações, e ninguém em todo o mundo virá à sua
sepultura, seu nome desaparecerá da face da terra – como se você
nunca tivesse existido, nem mesmo tivesse nascido! Só lama e
pântano, mesmo que você bata na tampa do seu caixão à noite,
quando os defuntos se levantam: “Deixe-me sair, gente boa, para eu
viver um pouco no mundo! Eu vivi sem viver. Minha vida foi gasta em
vão; foi bebida num botequim na Sênnaia. Deixe-me sair, gente boa,
para eu viver novamente no mundo!...”
Eu
me tornara tão patético que quase me deu um espasmo na garganta
e... De repente parei, ergui o tronco assustado e, inclinando
amedrontado a cabeça, pus-me a escutar, com o coração disparado.
Algo perturbador estava de fato acontecendo.
Já
bem antes eu havia pressentido que estava revolvendo toda a sua alma
e partindo o seu coração e, quanto mais eu me certificava disso,
mais queria atingir esse objetivo o mais rápida e poderosamente
possível. Foi o jogo, o jogo que me estimulou; aliás, não foi
apenas o jogo...
Eu
sabia que meu discurso era pesado, artificial, livresco mesmo. Em
suma: de outra forma eu não sabia me expressar, a não ser “como
num livro”. Mas não estava preocupado com isso, pois sabia, tinha
o pressentimento de que seria compreendido e de que o próprio estilo
livresco iria ajudar-me ainda mais. Porém, depois que o resultado
foi atingido, de repente me assustei. Nunca, nunca eu fora testemunha
de tamanho desespero! Ela estava deitada de bruços, o rosto enfiado
no travesseiro ao qual estava abraçada. Seu peito parecia que ia
explodir. O corpo jovem estremecia em convulsões. Os soluços
contidos dentro do seu peito pressionavam sua garganta, pareciam
dilacerá-la e irrompiam de repente com urros e gritos. Então ela
enfiou ainda mais o rosto no travesseiro: não queria que ninguém
ali, nem uma alma viva sequer, soubesse do seu sofrimento e do seu
pranto. Ela mordia o travesseiro, mordeu seu braço até tirar sangue
(isso eu vi depois); ou então, agarrando com os dedos as tranças
desfeitas, ficava paralisada no esforço, contendo a respiração e
apertando os dentes. Quis dizer-lhe alguma coisa, pedir que se
acalmasse, mas senti que não poderia e, de repente, senti um
calafrio. Quase em pânico, atirei-me, tateando, para de alguma forma
me arrumar e ir embora. Estava escuro: por mais que tentasse, não
conseguia terminar logo com aquilo. De repente apalpei uma caixa de
fósforos e um castiçal com uma vela inteira. Assim que a chama
iluminou o quarto, Liza deu um pulo, sentou-se e olhou para mim com o
rosto contraído e um sorriso meio demente, com um olhar que não
expressava nada. Sentei-me ao seu lado e segurei suas mãos. Ela
voltou a si, atirou-se para mim, fez menção de me abraçar, mas não
teve coragem e ficou calada na minha frente, com a cabeça baixa.
– Liza,
minha amiga, agi mal... perdoe-me – comecei, mas ela apertou seus
dedos nas minhas mãos com tamanha força, que percebi que estava
dizendo o que não devia e parei.
– Aqui
está meu endereço, Liza, vá à minha casa.
– Eu
vou... – murmurou ela com decisão, ainda de cabeça baixa.
– Agora
eu vou embora, adeus... Até logo.
Levantei-me;
ela fez o mesmo e de repente ruborizou-se toda, estremeceu, apanhou
um xale da cadeira e atirou-o nos ombros, cobrindo-se até o queixo.
Feito isso, deu novamente um sorriso sofrido, corou e olhou para mim
de modo estranho. Aquilo era doloroso para mim; tive pressa de sair,
de desaparecer.
– Espere
– disse ela de repente, já no vestíbulo, quase na porta da rua, e
puxou-me pelo casaco, fazendo-me parar. Deixou por ali o castiçal e
correu para dentro – pelo visto, lembrara-se de alguma coisa que
queria me mostrar. Naquele momento ela estava toda corada, seus olhos
brilhavam e tinha um sorriso nos lábios – o que seria? Fui forçado
a esperar. Ela voltou um minuto depois, com um olhar que parecia
pedir perdão por alguma coisa. Seu rosto não parecia o mesmo, e seu
olhar não era mais sombrio, desconfiado e obstinado como na noite
anterior. Seu olhar agora era suplicante, suave e ao mesmo tempo
confiante, carinhoso, tímido, um olhar como o que as crianças
lançam às pessoas que elas amam ou a quem pedem alguma coisa. Seus
olhos eram castanho-claros, belos olhos, vivos, capazes de expressar
tanto o amor como o ódio mais sinistro.
Sem
me explicar nada, como se eu fosse um ser superior e devesse saber de
tudo, ela me estendeu um papel. Todo o seu rosto iluminou-se naquele
instante com um ar de triunfo ingênuo e quase infantil. Desdobrei o
papel. Era uma carta que um estudante de medicina lhe havia enviado,
ou algo semelhante, com uma declaração de amor muito solene,
floreada, mas extremamente respeitosa. Não me recordo agora das
palavras, mas me lembro muito bem de que através do estilo rebuscado
vislumbrava-se um sentimento verdadeiro, difícil de ser simulado.
Quando terminei de ler, vi fixado em mim um olhar ardente, curioso,
impaciente como o de uma criança. Ela havia cravado os olhos no meu
rosto e esperava com ansiedade o que eu iria dizer. Às pressas, com
poucas palavras, mas com uma certa alegria e aparente orgulho, ela me
explicou que fora a uma festa na casa de uma família, de pessoas
“muito, muito boas, que ainda não sabem de nada, absolutamente
nada”, porque ela está aqui há muito pouco tempo, que veio só
para ver como era e não ainda resolveu se vai ficar, e que sem falta
vai embora, assim que pagar sua dívida... “Bom, disse que aquele
estudante estava lá na tal festa e dançou a noite toda com ela, e
que eles conversaram e descobriram que, quando eram crianças, ainda
em Riga, eles se conheciam e brincaram juntos, só que isso fora há
muito tempo – e que ele conhecia os pais dela, mas sobre isso
ele não sabia nada-nada-nada, e nem desconfiava! E depois, no dia
seguinte ao baile (isso fora três dias antes), ele lhe havia mandado
pela amiga que a levara na festa aquela carta... e... isso era tudo”.
Meio
envergonhada, ela baixou seus olhos brilhantes, assim que terminou de
falar.
A
pobrezinha guardava a carta daquele estudante como um tesouro, e
correra a buscar o seu único tesouro porque não queria que eu me
fosse sem saber que alguém a amava sincera e honestamente e que a
tratava com respeito. Provavelmente aquela carta estava fadada a
permanecer guardada num estojinho, sem maiores conseqüências. Mas
isso não importa; estou certo de que ela iria guardá-la por toda a
vida, como um tesouro, seria seu orgulho e sua justificação. E,
naquele momento, ela se lembrou da carta e foi buscá-la, para
ingenuamente se vangloriar diante de mim, para se reabilitar aos meus
olhos, para que eu também a visse e também a elogiasse. Eu não
disse nada, dei-lhe um aperto de mão e saí. Queria tanto ir
embora... Fiz o caminho todo a pé, apesar de ainda estar caindo
aquela neve molhada, em flocos. Eu estava exausto, abatido, perplexo.
Mas a verdade já se entrevia através da perplexidade. Uma torpe
verdade!
Dostoiévski, in Notas do Subsolo
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