Sarah
e eu decidimos visitar novamente o gueto. Como ainda tínhamos o
velho fusca, decidi ir nele até lá.
Uma
vez lá, parecia o mesmo, a não ser por um velho colchão deixado no
meio da rua, que tivemos de contornar.
Todo
o lugar tinha a aparência de uma aldeia bombardeada. Nesse dia não
havia ninguém à vista. Era como se, a um sinal, todos tivessem se
escondido. Mas eu sentia uma centena de olhos em cima da gente. A
porta tinha cinco buracos de balas. Algo novo.
Tornei
a bater.
– Sim?
– ouvi a voz de Jon.
– É
Hank e Sarah. Nós ligamos. Estamos aqui.
– Oh...
A
porta abriu-se.
– Entrem,
por favor...
François
Racine estava à mesa com sua garrafa de vinho.
– A
vida não vale nada – ele disse.
Jon
passou a corrente na porta. Sarah correu os dedos pelos buracos de
bala.
– Vejo
que tiveram cupins...
Jon
deu uma risada.
– Oh,
sim... sentem-se...
Pegou
alguns copos e nos sentamos. Ele serviu o vinho.
– Outro
dia estupraram uma garota no capô do meu carro. Cinco ou seis deles.
Nós protestamos. Eles ficaram furiosos. Passaram-se alguns dias, e
aí, uma noite, estávamos sentados aqui e bang, bang, bang, bang,
bang, as balas passaram através da porta. Depois ficou tudo em
silêncio.
– Ainda
estamos vivos – disse François. – Nos sentamos e bebemos vinho.
– É
só um blefe – disse Jon. – Querem que a gente se mude. Eu me
recuso a mudar.
– Um
dia não poderemos nos mudar mais – disse François.
– Eles
têm mais armas que a polícia – disse Jon – e disparam mais.
– Vocês
deviam sair daqui – disse Sarah.
– Está
brincando? Alugamos este lugar por três meses adiantados.
Perderíamos toda a grana.
– É
melhor perder nossas vidas? – perguntou François.
– Conseguem
dormir à noite? – perguntei.
– Temos
de beber pra dormir. E mesmo assim nunca se tem certeza. Essas barras
nas janelas talvez não signifiquem grande coisa. O vizinho também
tem. Outra noite, estava jantando sozinho e lá estava um cara parado
atrás dele com uma arma. De alguma forma, entrara pelo telhado. Tem
uma espécie de passagem lá por cima. Eles estão embaixo e em cima
da casa. Ouvem tudo que a gente diz. Estão escutando agora.
Quatro
fortes batidas ressoaram no assoalho.
– Estão
vendo?
François
saltou e bateu com o pé no chão.
– QUIETOS!
QUIETOS! QUE TIPO DE DEMÔNIO SÃO VOCÊS?
Silêncio
lá embaixo. Acho que só queriam nos informar que estavam lá.
François
tornou a sentar-se.
– Toda
essa coisa é aterrorizante – disse Sarah.
– Eu
sei – disse Jon. – Roubaram nossa TV, mas a gente não precisa de
TV por aqui.
– Eu
achava que isto era só um gueto negro – eu disse –, mas vi
alguns hispanos da última vez...
– Oh,
sim – disse Jon – temos uma das piores gangues mexicanas aqui, a
V-66. Pra pertencer a ela o cara tem de ter matado alguém.
Fez-se
uma longa pausa.
– Como
vai indo o filme? – perguntei, para quebrar o silêncio.
– A
produção está rolando. Eu estou lá todo dia, trabalhando muitas
horas com o pessoal. Em breve estaremos rodando. À medida que cada
dia passa, que a Firepower investe mais dinheiro, o filme se torna
mais realidade. Mas dá merda de todo tipo todo dia.
– Como,
por exemplo? – perguntou Sarah.
– Bem,
fomos alugar a câmera...
– Vocês
alugam a câmera?
– É.
Assim, fomos alugar uma câmera e a empresa disse que não alugava
pra nós.
– Por
quê? – perguntei, dirigindo-me à janela para dar uma olhada no
fusca.
– A
Firepower não pagou o último aluguel. A empresa insistiu em que a
Firepower lhe desse um cheque visado pelo uso da última câmera e
pelo aluguel da que a gente queria usar.
– Eles
deram?
– Deram.
François
levantou-se.
– Vou
contar as galinhas – disse, e saiu.
– François
não tem medo desse tipo de vida? – perguntou Sarah.
– Não
– disse Jon –, ele está louco. Outro dia estava sentado aqui
sozinho, e ergueu os olhos e viu dois caras parados ali. Um deles
tinha uma faca. “Passa o dinheiro!”, disse o cara. “Não”,
disse François, “você passa o seu!” Estava bêbado, e pegou a
vara e começou a bater nos dois com ela. Eles saíram correndo e
François correu atrás deles pela rua abaixo gritando: “FIQUEM
LONGE DE MINHA CASA! VÃO À CASA DE OUTRO. E NÃO ROUBEM MINHAS
GALINHAS!”. Correu atrás deles a rua toda.
– Podiam
ter matado ele.
– Ele
está louco demais pra ver isso.
– Tem
sorte de estar vivo – disse Sarah.
– É.
Mas eu acho que o fato de ser francês, e não americano, ajuda. Isso
confunde eles, pois não sentem o mesmo ódio que sentem por um
americano. Sentem que ele é doido, e nem todos esses caras são
assassinos. Alguns são simplesmente humanos tentando se virar.
– Não
são todos humanos? – perguntou Sarah.
– Humanos
demais – respondeu Jon.
François
entrou.
– Contei
minhas galinhas. Ainda estão todas lá. Conversei com elas.
Conversei com minhas galinhas.
Sentou-se.
Jon encheu o copo dele.
– Eu
quero um castelo – disse François. – Quero seis filhos e uma
esposa grande e gorda.
– Pra
que quer isso tudo? – perguntei.
– Pra
quando perder no jogo alguém conversar comigo. Agora, quando eu
perco, ninguém conversa comigo.
Eu
queria sugerir que quando ele perdesse no jogo talvez uma esposa
gorda e seis filhos tampouco conversassem com ele. Mas não sugeri.
François já sofria bastante.
Em
vez disso, eu disse:
– A
gente precisa ir ao hipódromo juntos um dia desses.
– QUANDO?
– ele perguntou.
– Breve.
– Eu
tenho um novo sistema.
– Todos
temos.
Aí
o telefone tocou. Jon atendeu na terceira chamada.
– Alô...
– Sim...
sim, aqui é Jon.
– Como?
Mas isso não pode ser!
Olhou-nos,
ainda segurando o fone.
– Desligou...
– Quem?
Jon
pôs o fone no gancho. Ficou ali parado.
– Era
Harry Friedman...
– E...?
– E
o filme foi cancelado – respondeu.
Charles Bukowski, in Hollywood
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