Foi
no início do mestrado que eu retornei ao candomblé. Sabe, vó,
depois de sucessivas decepções com sacerdotes, minha mãe acabou
abandonando a religião e num ato de fúria se desfez de tudo. Por
conta disso passei muitos anos afastada do terreiro. Aceitava como
cultura, participava de palestras na Casa de Cultura da Mulher Negra,
mas me recusava a seguir nessa direção espiritualmente. Tudo
começou a mudar quando minha amiga Flávia, aquela que mimava
Thulane, decidiu se iniciar e me convidou para assistir a sua saída,
o momento em que seria apresentada como Iaô. Ela morava em Santos,
mas o terreiro que frequentava ficava em Taboão da Serra. Fui de
carona com os pais dela.
Quando
cheguei lá, a Ialorixá da casa, a grande Mãe Ana de Ogum, sem me
conhecer, me olhou e disse: “Olá, Oxóssi, seja bem-vinda”. No
momento em que Flávia, filha de Iansã, saiu aos toques do atabaque,
tive uma intensa crise de choro. A mãe dela tentava me acalmar, mas
em vão. Mãe Ana me observava do outro lado do barracão, assentindo
com a cabeça. Terminada a cerimônia, ela veio conversar comigo:
“Minha filha, você viu o estado em que você ficou? Isso é Orixá
te chamando de volta, você é iniciada, precisa cuidar das suas
coisas. Não precisa ser aqui comigo, mas você precisa cuidar”.
Aquelas
palavras soaram como um abraço. Eu voltei algumas vezes ao terreiro
de Mãe Ana, que tão generosamente me acolheu. Ela me disse que eu
precisava fazer o axexê de minha mãe, ritual fúnebre no candomblé,
pois na época não havíamos feito, já que minha mãe não
pertencia mais à religião.
Pouco
depois, um colega de faculdade me apresentou ao terreiro Ilê Obá
Ketu Axé Om’Nila, perto de São Paulo. A primeira vez que estive
lá foi numa linda festa de Oxóssi, orixá da casa e também o meu.
A festa foi linda e me senti acolhida. Semanas depois marquei um jogo
de búzios, e enquanto esperava o babalorixá Rodney William me
chamar, fui acometida por uma paz. E ali o caçador voltou pra casa.
Babalorixá
Rodney disse a mesma coisa que Mãe Ana: “Sua mãe te iniciou no
candomblé, agora é você quem vai ser responsável por fazer o
ritual pra ela voltar pra casa”. Doze anos já haviam se passado
desde sua morte quando fizemos o axexê. Como parte do ritual,
escrevi mensagens pra ela, e foi como se um ciclo se concluísse.
Assim como faço com você agora, falei da minha vida, agradeci. A
partir daquele momento, me senti reconectada com minha
ancestralidade.
“Orixá
sempre esteve com você, minha filha, era você que não estava com
Orixá”, pai Rodney me disse. E minha vida realmente ganhou mais
sentido e passei a sentir mais sua presença, vó, de um modo que não
me traz mais dor. Sinto que você está orgulhosa, e agora vai ficar
mais ainda: Margareth Menezes, uma cantora baiana conhecida
internacionalmente, fez uma música pra mim! Acho até que você sabe
disso, pois Margareth me disse que, ao criar a letra, ela sentiu
necessidade de falar de Nanã. E não sabia que você era de Nanã…
O nome da canção é “Djamila, Ribeirão de Luz” e conta minha
história, fala dos livros, da relação com meus pais e com os
orixás. Quando ela cantou a música pra mim, eu fui pega de
surpresa. Nós estávamos conversando numa rede social e ela
simplesmente começou a cantar. Quando eu entendi que se tratava de
uma música em minha homenagem, as lágrimas rolaram. Senti um
carinho na alma, os ancestrais felizes, me comunicando essa
felicidade. Uma música que fala de você, vó, da minha mãe, de
como fui feita no candomblé, Iemanjá sendo a minha mãe do coração.
Coisas que eu não havia dividido publicamente. Ogum é o orixá de
minha mãe; Nanã, a sua. É interessante como esses orixás foram
descritos na música, e isso só reforçou minha fé. Demorou, mas
agora consigo entender. E me vejo como uma parte que se integra ao
todo.
Quando
Denis me mandou aquela sua foto vestida com roupa de candomblé,
fiquei um bom tempo olhando para ela, com lágrimas nos olhos. Eu
sabia que você frequentava o terreiro, mas eu nunca havia visto você
usando os trajes. E ali tudo fez mais sentido, a linhagem feminina da
nossa família foi a responsável por ser a guardiã e protetora da
nossa ancestralidade. Você foi iniciada, filha de Nanã, minha mãe,
filha de Ogum, eu, filha de Oxóssi, Thulane, filha de Iemanjá.
Ao
escrever essas cartas, muita coisa mudou. Thulane decidiu conhecer o
terreiro, jogou búzios com o babalorixá Rodney e se encantou com a
religião. Até já chama Iemanjá de mãe. Aquela foto me impactou
de uma forma muito forte, era como se você estivesse me contando
mais sobre você para que eu pudesse descobrir mais sobre mim. Como
meu babalorixá sempre diz, a dança dos orixás, o xirê, você
sabe, acontece em círculo e em sentido anti-horário. Em um dado
momento, a mais velha encontrará a mais nova. A mais nova precisa da
mais velha porque a última pavimentou os caminhos que permitiram a
existência da mais nova. E a mais velha também precisa da mais nova
para continuar existindo. Não há mais fragmentos soltos, há
continuidade e permanência.
O
pássaro da liberdade chegou,
Planou
por toda cidade, planou
Nasceu
nos braços dos Santos
Voou
por todos os cantos
Cruzou
a fronteira é libertador
Seguindo
seu pai
Tem
os livros no altar
Uma
luz de potente força no olhar
Ascendente
de inteligência
Negritude
profunda potência
Filha
de Oxóssi
Coração
de Iemanjá
Seu
despertar
É
de quem tem o dom
Mulher
de fé
Capitã
da Geração
Sua
espada é sua Caneta
Claridade
é sua competência
Ensinando
ao povo
Pegar
a visão
Djamila
Ribeiro (hão) de Luz
Pra
navegar nos mares do amor
Oxalá
é quem te conduz
Tem
guarnição de Ogum e Nanã Borocô
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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