quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Cartas para minha avó

Foi no início do mestrado que eu retornei ao candomblé. Sabe, vó, depois de sucessivas decepções com sacerdotes, minha mãe acabou abandonando a religião e num ato de fúria se desfez de tudo. Por conta disso passei muitos anos afastada do terreiro. Aceitava como cultura, participava de palestras na Casa de Cultura da Mulher Negra, mas me recusava a seguir nessa direção espiritualmente. Tudo começou a mudar quando minha amiga Flávia, aquela que mimava Thulane, decidiu se iniciar e me convidou para assistir a sua saída, o momento em que seria apresentada como Iaô. Ela morava em Santos, mas o terreiro que frequentava ficava em Taboão da Serra. Fui de carona com os pais dela.
Quando cheguei lá, a Ialorixá da casa, a grande Mãe Ana de Ogum, sem me conhecer, me olhou e disse: “Olá, Oxóssi, seja bem-vinda”. No momento em que Flávia, filha de Iansã, saiu aos toques do atabaque, tive uma intensa crise de choro. A mãe dela tentava me acalmar, mas em vão. Mãe Ana me observava do outro lado do barracão, assentindo com a cabeça. Terminada a cerimônia, ela veio conversar comigo: “Minha filha, você viu o estado em que você ficou? Isso é Orixá te chamando de volta, você é iniciada, precisa cuidar das suas coisas. Não precisa ser aqui comigo, mas você precisa cuidar”.
Aquelas palavras soaram como um abraço. Eu voltei algumas vezes ao terreiro de Mãe Ana, que tão generosamente me acolheu. Ela me disse que eu precisava fazer o axexê de minha mãe, ritual fúnebre no candomblé, pois na época não havíamos feito, já que minha mãe não pertencia mais à religião.
Pouco depois, um colega de faculdade me apresentou ao terreiro Ilê Obá Ketu Axé Om’Nila, perto de São Paulo. A primeira vez que estive lá foi numa linda festa de Oxóssi, orixá da casa e também o meu. A festa foi linda e me senti acolhida. Semanas depois marquei um jogo de búzios, e enquanto esperava o babalorixá Rodney William me chamar, fui acometida por uma paz. E ali o caçador voltou pra casa.
Babalorixá Rodney disse a mesma coisa que Mãe Ana: “Sua mãe te iniciou no candomblé, agora é você quem vai ser responsável por fazer o ritual pra ela voltar pra casa”. Doze anos já haviam se passado desde sua morte quando fizemos o axexê. Como parte do ritual, escrevi mensagens pra ela, e foi como se um ciclo se concluísse. Assim como faço com você agora, falei da minha vida, agradeci. A partir daquele momento, me senti reconectada com minha ancestralidade.
Orixá sempre esteve com você, minha filha, era você que não estava com Orixá”, pai Rodney me disse. E minha vida realmente ganhou mais sentido e passei a sentir mais sua presença, vó, de um modo que não me traz mais dor. Sinto que você está orgulhosa, e agora vai ficar mais ainda: Margareth Menezes, uma cantora baiana conhecida internacionalmente, fez uma música pra mim! Acho até que você sabe disso, pois Margareth me disse que, ao criar a letra, ela sentiu necessidade de falar de Nanã. E não sabia que você era de Nanã… O nome da canção é “Djamila, Ribeirão de Luz” e conta minha história, fala dos livros, da relação com meus pais e com os orixás. Quando ela cantou a música pra mim, eu fui pega de surpresa. Nós estávamos conversando numa rede social e ela simplesmente começou a cantar. Quando eu entendi que se tratava de uma música em minha homenagem, as lágrimas rolaram. Senti um carinho na alma, os ancestrais felizes, me comunicando essa felicidade. Uma música que fala de você, vó, da minha mãe, de como fui feita no candomblé, Iemanjá sendo a minha mãe do coração. Coisas que eu não havia dividido publicamente. Ogum é o orixá de minha mãe; Nanã, a sua. É interessante como esses orixás foram descritos na música, e isso só reforçou minha fé. Demorou, mas agora consigo entender. E me vejo como uma parte que se integra ao todo.
Quando Denis me mandou aquela sua foto vestida com roupa de candomblé, fiquei um bom tempo olhando para ela, com lágrimas nos olhos. Eu sabia que você frequentava o terreiro, mas eu nunca havia visto você usando os trajes. E ali tudo fez mais sentido, a linhagem feminina da nossa família foi a responsável por ser a guardiã e protetora da nossa ancestralidade. Você foi iniciada, filha de Nanã, minha mãe, filha de Ogum, eu, filha de Oxóssi, Thulane, filha de Iemanjá.
Ao escrever essas cartas, muita coisa mudou. Thulane decidiu conhecer o terreiro, jogou búzios com o babalorixá Rodney e se encantou com a religião. Até já chama Iemanjá de mãe. Aquela foto me impactou de uma forma muito forte, era como se você estivesse me contando mais sobre você para que eu pudesse descobrir mais sobre mim. Como meu babalorixá sempre diz, a dança dos orixás, o xirê, você sabe, acontece em círculo e em sentido anti-horário. Em um dado momento, a mais velha encontrará a mais nova. A mais nova precisa da mais velha porque a última pavimentou os caminhos que permitiram a existência da mais nova. E a mais velha também precisa da mais nova para continuar existindo. Não há mais fragmentos soltos, há continuidade e permanência.

O pássaro da liberdade chegou,
Planou por toda cidade, planou
Nasceu nos braços dos Santos
Voou por todos os cantos
Cruzou a fronteira é libertador

Seguindo seu pai
Tem os livros no altar
Uma luz de potente força no olhar
Ascendente de inteligência
Negritude profunda potência
Filha de Oxóssi
Coração de Iemanjá

Seu despertar
É de quem tem o dom
Mulher de fé
Capitã da Geração
Sua espada é sua Caneta
Claridade é sua competência
Ensinando ao povo
Pegar a visão

Djamila Ribeiro (hão) de Luz
Pra navegar nos mares do amor
Oxalá é quem te conduz
Tem guarnição de Ogum e Nanã Borocô

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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